"Tive um Sonho Estranho"

Tive um Sonho Estranho_ Ensaio p/revista "ETD-Unicamp

ENSAIO

Área temática: Estudos Piagetianos & Psicologia Genética e Educacional

© ETD. Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.1, p.107-111, dez. 2005 – ISSN: 1676-2592.. 107

TIVE UM SONHO ESTRANHO

Marco Antônio de Araújo Bueno

É curioso como esta expressão precede quase sempre a narrativa de um sonho!

Mesmo com pacientes acostumados a sessões de análise onde se procura, depois de

minuciosas explicações introdutórias, “desconstruir” essas engenhosas e intrigantes

formações da alma.

Não é por falta de espírito científico também,que emprego aqui esta palavra;ela foi

eleita pelo Dr. S. Freud para designar o “teatro das operações” (perdoem esta misteriosa

analogia bélica...) dos fenômenos psíquicos.

Não esperem cientificidade destes meus comentários. É que proponho apenas,

enveredarmos juntos pelos fascinantes meandros da cotidiana função de...sonhar. Não

queira, leitor pragmático, convencer-se de que não sonha;nem,leitor romântico, confunda o

sonhar com almejar ou idealizar.Como já estabeleci antes, trata-se apenas de uma função

psíquica, imprescindível à saúde da alma, tal como o dormir o é para a saúde do corpo!

Retomando o emprego da palavra alma, originalmente proposta pelo pai da

Psicanálise,é interessante constatar que, foi por ocasião da enlouquecida investida nazista,

quando não só os judeus e homossexuais foram perseguidos mas, também as idéias

“exóticas” e a obra de Freud, que estas, entrincheirando-se na Inglaterra e fugindo da

fogueira, foram revestidas por um criterioso e “mentalista” manto de cientificidade, dando

origem às difundidas palavras anglo-latinas “ego”, ”id” e “superego” em lugar de “eu”,

”isso” e “supereu”.

É, portanto da sua e da minha alma cotidiana que nos ocupamos em

desvendar.Menos ,em tratar aqui com um prudente afastamento do divã. A propósito,

quando o dr. Freud percebeu que, a julgar pela indiferença e desprezo da comunidade

científica da época por seus acha – dos teóricos, estaria pregand o no deserto ou falando às

paredes, deslocou o eixo de sua escritura,voltando-o imediatamente em direção ao grande

público, ávido desde sempre por conhecimentos dessa natureza.

Fracasso de crítica (pelo menos, da academia médica) estouro de vendas, o seu “Die

Traumdeutung” dobrou o novo século festivamente acolhido pelo leitor leigo,tal como

aconteceria com um outro texto fundamental para a Psicanálise1. Citei o nome do primeiro

em alemão em vista da duplicidade e abrangência de sentidos: ”A interpretação dos

sonhos” sugere tanto que os mesmos sejam passíveis de interpretação quanto que

funcionem como chaves de interpretação da própria vida anímica, ou seja, da almaliteralmente

– “seelen (alma)”e “lebens (vida,existência).

Era esta a idéia: os sonhos podiam interpretar ou lançar luzes sobre os subterrâneos

da motivação humana. Esta obra é amplamente apontada como sendo a certidão de

nascimento de uma nova teoria e prática clínica que atravessou todo o século XX, ora mais

encastela da nas ortodoxias excludentes das Sociedades Psicanalíticas, ora banalizada nos

manuais da cultura de massa ou até despersonalizada pela Psicologia do Ego norte–

americana.Entretanto, foi assim que a genialidade da obra sobreviveu ao impiedoso

vaticínio, segundo o qual a teoria de Freud (1972) continha elementos relevantes e

originais; porém o que tinha de original não era relevante e o que era relevante não tinha

originalidade!

Quando nos deparamos com a afirmação de que o sonho cumpre uma função

psíquica, via de regra, nos surpreendemos. Afinal, para que serviria sonhar com, digamos,

um homem com cabeça de borracha; ou com uma cobra, além de aproveitar para fazer uma

fezinha no bicho? Pois bem, Freud (1972) afirma ser o sonho “... a via régia para o

inconsciente...”. Nós psicanalistas,gostamos de contar com isso. De fato, contamos; e isso

movimenta o pêndulo do afloramento das significações no contexto da relação com nossos

pacientes. E fora deste contexto mais específico, para que serviria esse monstro horrendo

que invadiu com sua horripilante e grotesca figura o mais íntimo do meu recolhimento-o

meu sono!?

{{1Cf. FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana, 1901.}}

Bem, para início de conversa, ”ele” não invadiu; foi, pelo contrário,convidado a, aí,

se instalar e cumprir toda uma alegórica tarefa. Ele aí estaria para representar algo que me

aflige,sem que o perceba com nitidez, mesmo em vigília. Não se trata de uma equivalência

de símbolos, mas de uma complexa linguagem cifrada dentro da qual, no exemplo da cobra

acima mencionado, eu poderia estar aflito com alguém ou alguma situação que me “cobra”

isso ou aquilo.Também não se trata de alguma alucinada sopa de letrinhas;ainda que

analistas ditos “lacanianos” sublinhemos que o inconsciente se estruture como (ao modo

de) uma linguagem.

Para não adicionarmos alguns complicadores de natureza teórica, recorro ao

discernimento poético de Borges (1976) o genial escritor argentino, quando comenta

Coleridge2: ”...as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que no sonho os

sentimentos inspiram as imagens (...). Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo;

se sentirmos medo no sonho, engendramos um tigre.” Ou seja, para entender ou digerir uma

aflição ou um medo que, evocado por uma determinada experiência de vigília (“resto

diurno” como a definiria Freud) sobrevenha em pleno sono,para continuarmos descansando

pelo sono “...podemos projetar o horror sobre uma figura qualquer, que durante a vigília

não é necessariamente horrorosa.” Eis aí a forma que encontrei para convencer pacientes a

superar o embaraço inicial do “estranhamento” causado pelos sonhos e passar a anotá-los.

Alucinatórios que sejam,sempre trarão à tona à consciência-a preciosa dinâmica

inconsciente subsumida pelos nossos mecanismos psicológicos de defesa. Se não os

anotamos,o Inconsciente os “apaga”. Supondo agora que se desmistificou algumas idéias

errôneas a respeito do assunto,resta-nos esclarecer aqui o próprio estranhamento

experimentado ao acordarmos após um sonho dito...”esquisito”.

Ocorre que, ao adormecermos,desligamos por assim dizer, a porção nobre do

cérebro (no Sistema Nervoso Central) responsável pela racionalidade dos nossos atos,

pela vontade (volição), pela consciência e pela tomada de decisões, entre outras

atribuições. Por outro lado, como numa troca de grandes usinas de força, ativamos o

{{2 Cf. Samuel Taylor Coleridge – poeta inglês – versão de 1797.}}

Sistema Nervoso Periférico que manterá em funcionamento os batimentos cardíacos por

exemplo e toda a musculatura lisa do corpo. Entramos então em sono profundo e, na

seqüência, no sono do sonho.3

É então que, do ponto de vista psicodinâmico “repassamos” acontecimentos,

sensações e percepções vivencia dos no período de vigília, sucedendo que, entre estas

imperceptíveis ocorrências, as que lançaram alguma questão psicologicamente significativa

ao nosso registro inconsciente, receberão um “tratamento” semelhante a uma narrativa

ficcional calcada numa figurabilidade especial. Costumo usar em consultório uma

observação citada também por Borges (1976) e atribuída a Joseph Addison (num ensaio de

1712) segundo a qual “...a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, há um tempo,

o teatro, os atores e a platéia”. Borges acrescenta que é “...também a autora da fábula que

está vendo...” Sobre a referida figurabilidade é necessário esclarecer que o “tratamento”

dado ao material psicologicamente significativo já aludido (e para que continue “latente” e

censurado pelo consciente) constitui-se de algumas operações de natureza lingüística

(metáforas, ou,analogias condensadas,e metonímias,tais como tomar “a parte pelo todo”,

“o objeto pela pessoa que o usa”, o “continente pelo conteúdo e outras)e, por vezes,

imagéticas.

Para ilustrar esse mecanismo, menciono um desenho a mim oferecido pelo meu

filho em que,a cabeça de um presumido homem asiático,aparece transpassada pela figura

de uma aeronave civil ,de ponta à ponta,seguida no plano seguinte por uma alusão

estilizada às torres gêmeas recém atingidas em Manhattan. No “balãozinho” a inscrição:

“Saiu da cabeça dele!”. Neste caso, uma metáfora inscrita num grafismo,..”como se” o

avião a que alude o desenho ter-se-ia materializado e condensado na abstração de uma

idéia...a de arremeça-lo!

Se estiver claro que, para defender-se de uma emoção negativa ou ameaçadora de

medo ou aflição, o nosso inconsciente transforma, edita ou deforma o material latente (e

{{3 é a chamada fase REM do sono; abreviatura em inglês para o fenômeno dos movimentos rápidos dos olhos,

que corresponde em média a dez ou vinte minutos de sonho.}}

precioso para a análise!) até que ele possa ser resgatado pela memória consciente e

experenciado pelo sonhante (pra diferir de “sonhador”) como algo estranho,então podemos

afirmar que através de um bem sucedido trabalho de distorção e disfarce, o sonhante não

teve seu sono interrompido e a narrativa do sonho deu certo; funcionou. Quando,aliás,não

funciona, temos os a terrorizantes pesadelos - os sonhos mal elaborados, os que nos fazem

despertar subitamente numa angústia horrível (proveniente de nossos censurados afetos).

Pensando assim, tecnicamente, pesadelos são sonhos que não deram certo. Mas...se nos

embrenharmos distraidamente ,e mais uma vez, nas reflexões de Borges (1976): “[...] e se

os pesadelos forem estritamente sobrenaturais? Digamos que fossem fendas do inferno.

Dentro dos pesadelos,não estaríamos literalmente no coração do inferno? Por que não?

Tudo me parece tão estranho que até isso seria possível.”

REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luís. Libro del sueños. Buenos Aires: Torres Agüero, 1976.

FREUD, Sigmund. Obras completas. Trad. Luis Lopez Ballesteros de Torres. Madrid:

Editorial Biblioteca Nueva, 1972. (Titulo original: Die Traumdeutung)