Uma boa ideia mal aproveitada

Ao vermos os problemas atualmente enfrentados pelos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, pensamos em como esse país tem dificuldade em reconhecer que perdeu uma guerra e não admite que cada nação tem sua cultura e deve decidir os rumos que tomará em seu futuro. Tanto é verdade que a essa nação não gosta de admitir seus fracassos na política exterior, que podemos falar sobre uma criação cinematográfica, para mostrar como pegaram uma boa ideia, que poderia ter rendido bons filmes, e terminou em algo um tanto patético.

Com certeza, quase todo mundo assistiu a Rambo, personagem interpretado por Sylvester Stallone, que ficou eternizado como a imagem do super-soldado, que lava a honra dos Estados Unidos e vence praticamente sozinho batalhões de inimigos. Hoje em dia, Rambo virou o estereótipo do brutamontes sem cérebro que resolve tudo com violência e não tem piedade, transmitindo uma mensagem ideológica um tanto simplista: a de que os Estados Unidos são superiores a todas as outras nações tanto em termos bélicos e políticos, como em culturais. Podemos ver isso muito bem em Rambo 2 e 3, onde os vietnamitas, afegãos e russos são retratados como atrasados e antidemocratas.

Porém, se analisarmos bem a criação da personagem e a fonte de sua inspiração, um romance escrito por David Morrell veremos que Rambo, em sua essência, não é tão simplista como os filmes posteriores ao primeiro da série, Rambo, programado para matar, personificaram. No primeiro, Rambo é um traumatizado sobrevivente da guerra do Vietnã, que não consegue se reintegrar à sociedade e sofre preconceito por parte dos "pacíficos" civis. Onde ele passa, as pessoas o rejeitam e ele é tido como vagabundo e encrenqueiro. Vemos bem que ele não cria confusão nenhuma, as pessoas é que o rechaçam e discriminam. Ele perambula de cidade em cidade, um andarilho sem descanso, lar, trabalho ou amigos, pois quase todos morreram em combate e o único que voltara com ele do Vietnã morrera de câncer.

Se virmos bem, há uma forte crítica à maneira como os Estados Unidos tratavam (na verdade, ainda tratam) os seus veteranos de guerra que iam a campos de batalha arriscar suas vidas em causas que não entendiam direito e sofriam ferimentos, viam a morte de perto, eram aprisionados, morriam e viam seus companheiros morrendo. Essa é uma imagem positiva da sociedade americana, uma sociedade que manda seus homens à morte quase certa e, se eles voltam, despreza-os como vagabundos?

Ao passar por uma pequena cidade chamada Hope(Esperança, uma ironia), Rambo já é desprezado pelo xerife, que, sem saber quem ele é, chama-o de vagabundo e causador de problemas. Por não acatar a ordem de sair da cidade, ele é preso injustamente, numa atitude bem arbitrária e preconceituosa do guardião da lei municipal. Na prisão, ele é brutalmente tratado e, em parte por causa da brutalidade dos policiais e em parte por causa das lembranças dos horrores vividos em guerra, ele surta, atacando os policiais e fugindo da prisão, dando início a uma caçada.

Escapando para a floresta, ele, que sobreviveu nas florestas do Vietnã, começa imediatamente a usar seus conhecimentos de soldado, derrubando cada um que se põe em seu caminho. Concluímos que, embora ele tenha saído da guerra, ela não saiu de dentro dele. A ferida ainda está aberta e a injustiça sofrida por parte dos civis o leva ao desejo de revidar.

Curioso é que, comparado ao personagem do romance, este Rambo é bem menos violento. No livro, ele mata vários enquanto, no filme, ele mata apenas um policial, atirando uma pedra, e não porque tenha a intenção de matá-lo, apenas quer se livrar dele, que, estupidamente, fica disparando tiros enquanto ele está pendurado num penhasco.

Ao longo do filme, Rambo vai causando pânico na cidade e, curiosamente, ele próprio está em pânico, já que sua mente, perturbada pela guerra, confunde o momento atual com os vividos no Vietnã. Sente-se perseguido e ressentido, como diz ao seu coronel Sam Trautman (único que se importa com ele): "Eles que começaram".

No final, ao desabafar com Trautman sobre seus traumas e o fato de não conseguir viver uma vida normal, ele nos mostra toda a sua dor. Sylvester Stallone, sem ser um grande ator, consegue transmitir o sofrimento de um homem perdido e perplexo e seu coronel se comove. Um detalhe interessante é que, no final original, Rambo cometia suicídio mas teve seu destino alterado, a pedido de Stallone, que disse que o personagem merecia uma chance.

Se o Rambo original se centrava no tema dos veteranos desajustados e considerados indesejáveis pela sociedade norte-americana, os filmes seguintes deturparam toda essa ideia. Em Rambo 2, o personagem é transformado num super-herói, que volta ao Vietnã e consegue, sozinho, o que um Exército inteiro não havia conseguido e, em Rambo 3, ele vence os russos ajudando o Afeganistão, divulgando ideologias nacionalistas e reacionárias de exaltação da superioridade dos Estados Unidos. No final, Rambo acabou servindo para que os americanos, ao menos na ficção, conseguissem "lavar sua alma" ressentida com a derrota no Vietnã.

Se os filmes que se seguiram ao primeiro nos renderam ótimas e inverossímeis (mas eletrizantes cenas de ação), alçaram Stallone ao status de astro de filmes violentos e arrecadaram ótimas bilheterias, por outro lado, desperdiçaram a chance de, com Rambo, aprofundar a discussão sobre o sofrimento dos veteranos de guerra, que não encontram mais lar nas suas próprias pátrias, como, ironicamente, o próprio Rambo diz ao final do segundo da série:"Queremos que nosso país nos ame tanto como nós o amamos".

E nos perguntamos como poderia ter sido se o desenvolvimento do personagem houvesse sido diferente.