"'A HISTÓRIA SEM FIM': Ensaio sobre a Teoria da Técnica psicanalítica na desconstrução da ficção de M.Ende"
“ ‘A HISTÓRIA SEM FIM’: Ensaio sobre Teoria da Técnica psicanalítica na desconstrução da ficção de M.Ende”
Por Marco Antônio de Araújo Bueno
Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar, aliás, nessa palavra é quase poder tocá-la... tocar o côncavo, sensual e distraidamente, eis um exercício de puro Princípio do Prazer.
Há o contato com o próprio livro, contato materialmente erótico, de cheiro de gráfica, de cores discretas e saborosas, de barulhinhos e sonzinhos da primeira cartilha, da infância. O livro vem de dentro do livro (“... ele agora está nas suas mãos...”) e o côncavo se oferece como um figo recém abocanhado. Suculento como um figo, misterioso como uma caverna.
O livro é um brinquedo novo e ocupa muito pouco espaço: ele ocupa o seu próprio espaço de dentro!
Côncavo, caverna, dentro, figo mordido... há também uma razão mais antipática para se propor uma quebra de encanto, uma “lize” do erótico. Trata-se, é claro, de uma razão acadêmica, exorcisante de prazer, que só faz restaurar o convexo. Puro Princípio de Realidade.
Assim, se a Psicanálise que Lacan reescreve, preciosista, barroco, passa como um feixe intrincado de conceitos complexos (se isso é, por certo, quase que metodológico nele), se o “lacanês” é pedante e chato e auto-centrado e delirantemente complicado, isso só acontece porque há um caso de amor. Não se deixa um objeto de amor em mãos inábeis, sob os olhares pervertidos de uma psicologiazinha do ego norte- americana, sob os carinhos grosseiros de um adaptacionismo pragmático e imbecilizante, no colo da mais ingênua “ilusão” do sujeito.
Não é complicado achar em Lacan a assunção de uma hábil e estratégica forma de sedução. A palavra freudiana o toca como uma flauta mágica. Ele não apenas escuta as notas, ele as nota deslizando... metonimizando-se. Entra floresta adentro na melodia, sabe-se perdido e torna-se perdinte instituindo a “beance” , a falta- carbono da palavra. Ele acredita nessa mística xamânica da palavra, e é pela palavra que nós nos perdemos nele.
Eu o reencontro nesse livro, um livro roubado ( “...La Letre Voullé” de Baudelaire), uma história sem fim, como a figura de um pai cristalizado em um subterrâneo dos sonhos esquecidos (o significante primeiro, inadmitido à consciência?), de esfinges que compendem toda a sabedoria e paralisam... pelo olhar.
Como a partir de uma igrejinha dogmática só se avista discursos confirmatórios, os discursos confirmatórios de Lacan estão aí para mostrar que, pior que o puchassaquismo da ortodoxia, é a chatice da ortodoxia do puchassaquismo, o que o próprio Lacan já denunciava como o “não estilo”.
O próximo passo poderia ser justificar as justificativas introdutórias. Prefiro, no entanto, sair pelo livro adentro para tentar sugerir uma semelhança: a que se insinua entre o texto (apesar das sinalizações de trânsito que, por questão talvez de segurança, alternam cores de impressão para legitimar ou não a entrada pela fantasia que, afinal, só tem sentido, se for a “minha fantasia”) e o percurso do sujeito no processo da análise.
A análise também tem sua concavidade. Não se pode usá-la a torto e a direito. Uma espécie de imanência. Entra-se numa análise pelo meio e começa-se pelo lado de dentro. Um exemplo de abuso dos recursos e instrumentos da análise, no caso, poder-se-ia se ilustrar com uma inquietação, meio anedótica, meio “lingüistérica” :Por que razões (o inconsciente é feito de palavras) alguém chamado Michael Ende (... Das Ende?!) se põe a escrever uma história sem fim? Algo mais sério poderia ser: porque sinalizar os caminhos em um texto mais próximo a uma Banda de Moëbios, sem lado de dentro, sem lado de fora, sem direito e sem avesso, como o próprio inconsciente em seu estado de sótão (tão só) onde Bastian lê o livro, em seus estado de discurso, de texto?
Tenho a intenção de propor aqui algo menos lúdico que esse patinar por livre- associações.Dentre as quatro consagradas modalidades de crítica psicanalítica ( voltar-se para o autor como na “Gradiva” de Jensen; para o leitor; para o conteúdo ou para a construção formal do texto) escolho a segunda, até para privilegiar ramificações intertextuais. Não perderia o lúdico de vista. A propósito desta visada, é bom que se lembre- Kafka disse algo como(...) um texto deveria chegar ao leitor como a notícia de morte de um ente querido...
A leitura desse texto provocou-me certos lutos e algumas escotomizações, uma das quais insejou-me declinar de categorias tomadas às sociologias e às histórias, tão diacrônicas.
Se cada leitura é uma re-escritura, essa minha reflexão sobre o texto do alemão Ende, há de desejar, em fim, uma certa univocidade, um tanto singular; de espelhos, um silêncio potencializado, quem sabe.
Interessante- a linguagem de Ende é absolutamente pictórica e em “Signes”, Merleau-Ponty conclui: “... As vozes da pintura são as vozes do silêncio...”. Também há um pouco do Borges de “OJardim dos Caminhos que se bifurcam”; intertexto do lado íntimo , côncavo da obra- personagens que se citam de livro para livro do autor. Importa começar pelo meio e entrar pelo lado de dentro. A costura é costura de significantes e o bordado mora no seu avesso.
Bárbara O’Brian escreve também sobre uma viagem psicótica solitária e sobre o caminho de volta. Puseram o livro sob suspeita, afinal, ela ousou voltar e escrevê-lo, algo impensável para uma “esquisofrênica” . Em “Operators and Things”, Bárbara está numa estação de ônibus. As vozes (operadores, entidades persecutórias que desenham uma “grade” em seu cérebro e o manipulam como “coisa”, como nos “milagres” do presidente Schreber) ordenam-lhe que retire sua carteira de identidade da bolsa e a rasgue. Nesse momento, tudo fica escuro e o chão da estação ergue-se em direção a seu rosto. Bárbara passa seis meses viajando de ônibus pelos EUA e, já no final do “raptus” psicótico, sente que pode escrever à máquina sobre sua experiência... “É como se um pouco de praia seca voltasse após um tenebroso período de maré cheia...”
O cartunista de humor negro- Roland Topor- termina seu livro “O Inquilino” operando em seu personagem um duplo salto suicida da janela do prédio. Primeiro como seu duplo (a fantasia- Simone) e depois, alquebrado e sangrando por todo o corpo, como o próprio personagem (representado por Roman Polansk). Algo como não poder morrer por consignação; é preciso voltar da fantasia, nem que seja só para morrer.
Por aí se vê que as associações estão bastante livres e se retomo o indigesto Lacan é por estar intrigado com algumas contingências evocadas pela obra dele. Uma escritora como Hilda Hilst, para quem Deus é “... uma superfície de gelo ancorada no riso...” (segundo uma equação a que chegou um de seus personagens, Amós Keres, matemático) alguém assim, para quem toda a questão é uma questão de religiosidade (a da “Obscena Senhora D” por exemplo) alguém que sofre as agruras de ver seu texto tido e havido como uma espécie de “tábua etrusca”(sic), tem verdadeira ojeriza ao tom frio, quase que maoísta de Lacan.
Pensando assim, que, de um Lacan autodificultado, não se tira frutos. É uma árvore seca que acaba por esterilizar as livre- associações. Haveria de se tornar, aqui, enquanto instrumento, apenas um breve artesanato de metonímias pluralizáveis, circulares e compulsivas, sem fim? Eis, então, uma história sem final pelos caminhos de uma crítica sem finalidade. História e crítica sem fim.
Ao contornar também o hedonismo festivo, proponho algo como um play-game. Tanto assim, que as regras da segmentação que passo a operar, criam a segmentação como um artefato, ligeiro como um caleidoscópio pode ser, se as mãos que o girarem forem ligeiras igualmente...
Tal segmentação vale-se de palavras chaves, apenas por seu caráter remissível, então:
I) Atreiú – As três portas mágicas
II) O velho da montanha errante
III) A casa dos loucos
IV) A Dama Aiuola – A casa mutante – A mãe
V) O pai – Caverna dos sonhos esquecidos
VI) Volta para o mundo
Se pode ser surpreendente certa obediência à própria cronologia do texto (já que sugiro uma aproximação ao processo da psicanálise) chega a ser espartana a disciplina para não ceder a sedução da simbologia explícita.
A crítica aqui, se infla de indolência. Por uma questão de tropismo, estaria até feliz em tender ao poema. Prefiro, no entanto, segurar-me no nível do “espinafre amarelo”, “salsicha escova” ou “pinta-pescoços” (p. 339- fala de Argax) por não dispor de centenas de milhares de anos. E só o tempo dá sentido a uma combinatória de significantes.
I – Pensem no processo de uma análise. Em que pese toda uma gama de motivações pessoais, há apenas uma entrada possível: quando se está captado no próprio jogo de imagens. Vitimado pelo narcisismo, apostando toda a verdade num ego que se acha fonte de significações. Não é à toa que se adoece nesse social, que é uma casa de espelhos cujo morador não mora lá.
Todo o esforço do analista é o de possibilitar via “atenção “Flutuante”,distraidamente (já que o social é tão pregnante) uma certa transição- da esfera do pedido (dessa mímica social jubilatória que leva o analisando a identificar-se narcisicamente com o duplo de si mesmo, a uma miragem que lhe permita apenas reconhecê-lo) à esfera do desejo. É dessa alienação que se parte. É por um apelo que ela se dá.
Atreiú, o duplo de Bastian no mundo da fantasia ,funciona como um guia a conduzi-lo para uma nomeação.
Ora, a nomeação funda a própria possibilidade do que Lacan chamou de simbólico e o coloca como a saída do imaginário especular, narcísico, relação de presença. O símbolo que instaura a relação de ausência (já que é presença da ausência da coisa) se dá pela permissão de uma possibilidade de se nomear, agora sim, na esfera do desejo, do deslocamento, de metomímia.
Bastian precisará gritar:- “Filha da lua”. É a sua parte no acordo , já que inserido nesse inconsciente-tour intrigante; em alemão “Die Tochter von der Mund”. Teria escapado ao alemão Ende a homofonia Lua/Boca – Mund/Mond?
A saída desse imaginário é a palavra. A princípio pede-se ao analisando que apenas fale (já que se encontra captado em sua fala) e se o enxergará caminhando para uma palavra plena- “la parole pleine”, conforme Lacan.
Rompe-se o imaginário pela boca. Há uma rainha-criança(!) que compende toda a órdem (Simbólico) no mundo da fantasia. Bastian caminha, como numa análise, em busca de providenciar sua própria inserção nesta Órdem simbólica. D
Antes, porém, Bastian-Atreiú haverá de se confrontar com as esfinges, o espelho e a porta do silêncio Prova-certificado da saída do imaginário? A propósito Lacan afirma que não basta que o in-fans se veja “se”vendo no espelho, é preciso que ele se veja sendo visto pelo olhar comprobatório de um outro.Isto o retira da fragmentação do Imaginário.
Até então, Bastian-Atreiú se vê claramente subjugado à mãe (detentora do falo). O reencontro com o pai (cristalizado tal como se pode pensar de um significante primeiro) reporá o falo em seu devido lugar. Para chegar a essa substituição de significantes, para chegar a essa metáfora paterna que lhe permitirá, por fim, voltar ao mundo, Bastian deverá passar pela prova dos olhares das esfinges (... “E elas não vêm nada. Mas o olhar delas a tingiria da mesma maneira” (Enguivuck) -a prova do espelho (penetrar em si mesmo como na análise) e a última das portas, a que... “só aparece depois de se ter passado pela Segunda” (idem, p. 85). A passagem por esta porta, esbarra no silêncio da fantasia (o analista comete silêncios significativos) que é para Enguivuck “absolutamente indestrutível”.
Se isso não lembra a recusa do analista em fazer concessões ao “pedido”, ao sintoma enquanto queixa, o trecho que se segue torna a analogia mais clara: “Quanto mais queremos entrar mais hermética se torna a porta. Mas se alguém conseguir se esquecer de todas as suas intenções (Ego, imaginário, ilusão do sujeito) e não quiser absolutamente nada (associar livremente idéias)... a porta se abrirá sozinha perante essa pessoa.”.
É claro que me recorda Nietzsche (o meu corpo-grande razão-tem idéias diferentes de mim) mas há de se reconhecer também certa esterilidade de algumas das aproximações aqui sugeridas. Daí, penso que seja infrutífero julgá-las dogmática ou canonicamente. Afinal, a “curiosidade puramente científica” de Enguivuck não o levou a conhecer Uiulala!
Tentadora a aproximação entre o “diálogo” de Atreiú com Uiolala e a Teoria da Técnica psicanalítica no que diz respeito ao contato analítico (vide Freud, in “ Conselho aos Médicos...”)
“Quem sou eu? Murmurou (Atreiú, que à pergunta “quem é você” recebeu um eco “quem é você”?) Um analista poderia dizer como Uiulala:
“ Pois aquilo que não escuto em verso (relevo fônico do significante) entendo sempre de modo diverso (pregnância do social)”; ou, “Quem sabe é quem? Agora te entendo bem”. Uiulala, a voz do silêncio, continua como em um contrato analítico: -“Mesmo que não me vejas/ Ainda estarei lá”. Mostra ainda que é apenas um ponto na cadeia de significantes, um representante da ordem simbólica, um semblante, fazendo o gosto da rima: “... não sou visível na luz/ Como tu és ao te olharem (social)/Pois meu corpo é nota e tom/Por isso apenas audível/ E nesta voz tens o som “do meu único ser possível”.
Faz-se o convite ao simbólico: “Porém, se novo nome encontrar-mos/ Seu mal será logo banido” (a relação dual, o imaginário na relação simbiótica com a mãe romper-se-ia e daria lugar a palavra). Lembra, também, a essência do processo:- “E tudo dependerá/ de seres capaz, ou não”; e, finalmente, propõe-se como ausência:- “Tal resposta a ti te cabe/meu dever é avisar/chegou a hora, já é tarde, já é tarde/ temos de nos separar”
Poder-se-ia também aproximar a concepção lacaniana de Tempo lógico, com a fala de Enguivuck (p. 104):
“O espaço e o tempo, disse Enguivuck, eram talvez diferentes no lugar onde você esteve...” O inconsciente desconhece tempo cronológico e categorias de negação!
II – O velho da montanha errante.
Nessa passagem, Bastian emerge aos limites do consciente, e mergulha na fantasia, como leitor e personagem, numa infinita cadeia de ler-se lendo. É o ponto de tensão maior, quando em ultima cartada desvenda-se o eterno retorno, o fim e o princípio que deixam de existir em pró do círculo: são as cobras se comendo que formam o Aurin. Voltando a questão da análise, refaz a vivência da compulsão da repetição, que traz sempre o presente resignificando o passado e lançando para o futuro o que se fez em passado. Isso engatilha a idéia de que os futuros vindouros serão apenas nostalgia de algo perdido. Assim é que, na seqüência d’A História sem fim”, quanto mais Bastian “cumpre” seus desejos, mais seu passado é apagado e menos capaz de desejar ele se torna, ou seja, não há desejo sem memória: “a esperança é a saudade virada ao avesso.”
O paralelo traçado aqui entre o processo de análise e a trajetória de Bastian aponta necessariamente para uma diferença sutil: Bastian não inventa seu percurso, ele o recria e o refaz. A busca aparentemente eufórica no texto corresponde a um desejo de busca que perpassa o texto, refaz um percurso e ancora num significante.
No mundo da fantasia, portanto, não há lugar para o acaso, que só se dá na diacronia e no sintagma(vide Jakobson, um outro Roman...in “Lingüística e Comunicação”) e precisa do contrapondo da realidade para a concessão de toda a sua carga de “loucura” que dele deriva. Ou seja, ali onde os significantes podem dançar em entrechoques, atropelarem-se e saindo de cima voltarem por baixo (Banda de Moëbios) não há lugar para surpresas. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:- “Ora, na realidade estamos à sua espera há muito mais de cem anos, respondeu a mulher. Já a minha mãe, e a minha avó, e a avó da minha avó esperaram por você. Veja bem... estou contando à você uma história que é nova e, no entanto, refere-se a tempos muito remotos”.
Enfim, é como se o passeio de Bastian fosse a hipérbole de um reconhecimento que, em dado contrato, corresponderia aos “insights” do analisante , rumo à idéia (“Angst”) de como a sua liberdade é algo muito mais restrito do que ele supunha. Só há liberdade, a propósito, dentro dos limites deste confinamento estrutural, lingüístico (vide “Cours de Lingüistic General” de Ferdinand Saussure), aliás!
III – Se a única possibilidade de liberdade radical reside na loucura (na medida em que ela se instale no “reino da semelhança”, no “eixo paradigmático”, conforme explica Michel Foucault n’As Palavras e as Coisas”) e se nada ao acaso ocorre, Bastian tinha de se defrontar com o medo da insanidade, pelas mãos irônicas de Ajax. E aí que ele se encaminha para a “Cidade dos Antigos Imperadores”. Local reservado àqueles que, ao perderem totalmente sua memória, são desligados do “mundo” e tornam-se incapazes de “desejar”. Só se deseja aquilo que já se conhece. Apagar o passado é impossibilitar o futuro, e se perder no paradigma, que é a própria loucura. Para eles só resta brincar da paradigma (jogo de letras, o “estado de dicionário” a que aludia Drummond, a palavra “in absentia”) até que alguns sintagmas comecem a surgir, e quem sabe forme-se outro livro. Há sempre a alusão a princípios, nada é final absoluto.
A saúde mental de Bastian está no horror que a cidade dos loucos lhe causa. É só o seu pavor ao vazio que o breca em seu insano caminho pela fantasia. Restam-lhe apenas poucas lembranças, mas agora compreende sua peregrinação. Até então considerava-se o mais sábio da Fantasia, tanto que almejou o poder supremo pertencente a “ilha da Lua”. E torna-se, agora, o mais miserável na fantasia, pois busca algo que já não se recorda, e vislumbra, no futuro, o desvario. Tal como Édipo, cujo drama, bastante próximo, se desenrola todo no decurso de apenas um dia.
IV – Todo o percurso na análise não passa de uma revisitação, via transferência, às figuras parentais, arcaicas. Se, pelo início dessa reflexão, falou-se de imaginário e simbólico, nessa ordem, é porque a primeira tarefa existencial é alienar-se num desejo de um outro materno. É enquanto a criança almeja tornar-se objeto de prazer e gratificação de uma mãe, marcada pela carência do “falus” (“penis-neid”, para Freud)) que se pode pensar no registro do imaginário: a criança vive simbiótica e indiscriminadamente, o drama de submeter-se à mãe como representação do falus que lhe falta. É exatamente o que Bastian, num primeiro momento, vivencia: Veja-se o diálogo sobre a questão das frutas: -“Não sei, disse Bastian perplexo. Não se podem comer coisas que crescem em outra pessoa. Por que não? Perguntou a Dama Aiuola. Os bebes também mamam o leite de suas mães. É uma coisa muito bonita./ pois é, interrompeu Bastian, corando um pouco, mas só enquanto são muito pequenos./ Então, disse Dama Aiuola radiante, você precisa se tornar outra vez pequenino, meu lindo menino”. Toda essa dinâmica tem início em uma separação: a mãe vê separar-se de seu útero a criança. O útero “é maior por dentro do que por fora” (p. 356), como a casa mutante do livro de Ende.
A Dama Aiuola é a imagem da sedução que se constituiu para o intrigado Bastian na idéia de uma mulher gerando frutos de seu corpo inesgotavelmente. É a própria captação no “Éden” do Imaginário. No entanto, na dinâmica do Édipo está implícita a idéia de que só se pode sair do narcisismo, do erotismo simbiótico e dual, enfim, só se consegue amar (no sentido de investimentos objetais) quando se rompe o idílio do imaginário com o estabelecimento de uma triangulação. Deverá haver um terceiro social a mostrar à criança que ela poderá ter o falus e o amor se renunciar a ser o falus materno, e sucumbir às instâncias pré-simbólicas. Novamente há o paralelo com o caminho de Bastian que, ao sentir necessidade do amor, está pronto para quebrar o idílio da casa mutante e partir em busca das águas da vida.
Bastian descobre seu último desejo: amar. Para isso deve se encaminhar para a Fonte da Vida:- “Só poderá fazê-lo quando tiver bebido das Águas da Vida, respondeu ela, e não pode voltar ao seu mundo sem levar dessa a um outro” (fecha-se outro círculo). Bastian deverá separar-se de Dama Aiuola:- “Só preciso de alguém a quem possa dar o que tenho a mais”’, ela lhe diz, quando a mensagem poderia ser: “a minha carência constitui você como objeto da minha falta, daquilo que tenho a menos”.
V – É preciso que se escave fundo no terreno das fantasias para que se chegue ao que Lacan chamou de “point de capiton”. Lá, onde se ancora o significante primeiro, o significante “Nome do pai” (“Le nom du pére”). Bastian deverá descer mina onde jazem os sonhos esquecidos- substrato da fantasia- para alcançar esse Pai que é possibilidade de nomeação. Tendo, portanto, contornado a psicose (é por não ter “foracluído” tal significante que seu retorno é bem sucedido) e emergido do imaginário, que Bastian descobre esse rosto triste de pai cristalizado na placa de mica. As últimas linhas do livro dão conta do retorno de Bastian à realidade e da presença de um pai que também precisou ser redescoberto e que, por fim, lhe concede e lhe permite a possibilidade de autonomia: agora Bastian pode se autonomear e nomear sua própria falta, última etapa de uma análise. Bastian é, então, essa espécie de pervertido, porquanto a sua viagem toda não tenha passado de uma versão da fantasia em direção ao simbólico. De uma versão para o pai. De uma “pére version”.
-“Há muitas portas para a fantasia meu rapaz. Há muitos outros livros mágicos. Muitas pessoas nunca percebem isso. Tudo da pessoa em cujas mãos o livro vai parar”.
Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar,nessa palavra é quase tocá-la... tocar o côncavo, sensual e distraidamente- eis um exercício de puro Princípio do Prazer...