A morte e a morte na poesia modernista de Manuel Bandeira
  
                                                               “Lutar com palavras é a luta mais vã.”
                                                                               (Drummond de Andrade)
 
 
Pretendo, com este trabalho, me aproximar do poeta Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 1886 – Rio, 1968),  que, humilde por natureza, teima em se apresentar, ao longo de sua vida e obra, como “poeta menor”. Afirmação esta, considerada bastante controversa quando se tem a oportunidade de mergulhar em seus escritos. Ademais, há de  considerar a sua contribuição marcante, na Semana de Arte Moderna, de 1922, com o  seu exótico poema -  Os sapos -  cuja repercussão foi estrondosa.
 
 À medida que vamos lendo Manuel Bandeira, temos a impressão de que seria necessário mais de um par de olhos para desvendá-lo melhor.  E há quem afirme que ele não soube ser um poeta fingidor, conforme teorizou poeticamente Fernando Pessoa.  Talvez devido a sua pouca saúde e a morte ter lhe rondado desde cedo,  Manuel Bandeira fizera dela sua companheira predileta na arte de escrever. Chegou, inclusive, a encerrar o poema Desencanto, que faz parte de uma de suas primeiras obras, A Cinza das Horas, assim: “- Eu faço versos como quem morre.” Por conta disso, acredito eu, ele teve vida mais longa do que se esperava.
 
 Analisando poemas, a partir  da sua obra Libertinagem, de 1930, posso dizer que, agora, tenho um novo olhar com relação  ao legado de Manuel Bandeira. Pude sentir, em seus versos, traços concretos de uma  poesia humanista, voltada para o social como um todo. É diante desta sua grandeza, como poeta, que afirma o professor e  renomado crítico literário, Davi Arrigucci Jr., que ele próprio ajudou a redirecionar o pensamento que se tinha acerca da  obra bandeiriana,  por sentir que o poeta fora avaliado de forma equivocada.
 
 
Vou me esforçar para não cometer injustiça nesta breve análise a qual me proponho. Confesso que fui tocada pelo tema recorrente na poesia de Manuel Bandeira: a morte. E ouso em dizer que quando ele fala de morte, não fala da sua morte, mas também dela. Fala da morte miúda, da morte em dose homeopática que não se deixa ver. É esta morte que antecede a morte física que está impregnada da poesia cotidiana de Manuel Bandeira, e que vou tentar dissecar, convivendo com seus personagens. Para dar início, vejamos o poema, abaixo:
 
IRENE NO CÉU
 
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
 
Imagino Irene no céu:
­- Licença meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
 
Diante desta construção assimétrica, de versos livres, tão livres quanto impactantes no seu contexto, surge a imagem de Irene no Céu.  A cena que me vem é de um anjo de cor preta, sorrindo. É como se estivesse diante de mim um enorme arabesco – a arte dentro da arte – pintura feita de palavras vivas que, na primeira estrofe, causam rompimento de paradigmas cultural e religioso. E é nesta encenação de aparecimento e desaparecimento, traço do mundo  moderno, que o leitor se redesenha, alinhando a sua busca e o seu prazer. Mas não me atenho, aqui, ao prazer do strip-tease corporal nem do suspense narrativo. Porque a excitação se refugia na esperança de ver algo ou de conhecer o fim da história (Barthes, 2008). Ora, o nome de Irene ecoa nessa repetição desenfreada por três vezes. Não se trata de exagero nem descuido do autor. Talvez Bandeira quisesse colocar o dedo na chaga social, ainda aberta, o preconceito racial.
 
Ao adentrar a segunda estrofe, é como se ela nos tirasse da zona de conforto, pela tamanha ruptura estética. Há um deslocamento do eu poético, com a presença do diálogo. A fala bastante coloquial, tenta retratar o irretratável nesta transição misteriosa onde realidade e fantasia se confundem.  O verso “Imagino Irene no céu:” desestrutura toda uma proposta temática inicial, e faz lembrar um corte cinematográfico onde o espectador  é surpreendido pela ação seguinte, cuja rapidez é imprescindível para apreender e dar sentido ao que parece não mais ter sentido.
 
Depois, alguém  há de se perguntar: “Mas Irene não está no céu?” Não. Ainda não. Respondo eu.  Mas alguém tem o dever de colocar a preta “boa”  e bem humorada, no céu. É óbvio que esta tarefa ficou para São Pedro; não porque ele seja bonachão como parece, nem por ter piedade da Irene Preta, mas porque São Pedro não poderia mais decepcionar Jesus Cristo. Negar a entrada de Irene no céu, seria não estar em conformidade com Seu ensinamento maior quando Cristo pede para amar o próximo como a si mesmo.  São Pedro, certamente,  não gostaria de perder o cargo de Patrono do Céu.
 
Considerando a figura central do poema, Irene, e trazendo-a para o tema recorrente em quase toda a obra  bandeiriana: a morte. Então,  proponho um confronto com os veros, abaixo, retirados do  poema Os nomes, do Livro Opus 10.
 
 Duas vezes se morre:
 Primeiro na carne, depois no nome.
 
Isso não se aplicaria à Irene. Irene é só Irene. É só prenome. Nela, não há nome para morrer, pois só morre o que é vivo. Na nossa cultura e no direito brasileiro, o nome compõe-se de forma genérica, de dois elementos: prenome e sobrenome. Este último, como indicador da origem genealógica a qual o sujeito pertence. A sua importância é tanta, que chega a ser motivo de confrontos familiares e, também, razão para  destaque na sociedade em que se vive. Nesta questão Irene fica aquém do “João Gostoso”, que, na sua simplicidade, tem visibilidade maior pelo nome.
 
E se a ela coubesse um nome, seria Irene Preta Boa.  Algo muito prosaico, talvez, para se chegar até o céu ou lhe reservar um lugar sacro. Ah! mas pensar e não dizer, é característica do poeta moderno. O jogo com as palavras, conduz o leitor a reescrever  o verso “Irene sempre de bom humor”, assim: “Irene bem humorada”. Dispensando os verbos de ligação, porque os adjetivos é que interessam para a boa performance do personagem, sem que haja  mudança de sentido e desfiguração. É assim que o  poema se torna uma obra inacabada. E a cada leitor lhe é facultado fazer inferências, preencher lacunas e tornar-se, além de leitor, autor.
 
Prosseguindo  pelos caminhos íngremes de Manuel Bandeira, cuja morte se faz peregrina maior, não há como não afirmar  que a primeira morte de Irene é a morte social; a segunda, é a morte física, contrariando, assim, os versos: Duas vezes se morre: /  Primeiro na carne, depois no nome. E, para corroborar tal pensamento, desta morte primaz – a social -  vamos até a sua criação ímpar: Um poema tirado de uma notícia de jornal, cuja audácia no fazer, tira-lhe daquela condição de ‘poeta menor’, e até lhe confere  status  ao se desarmar, de forma lúdica,  daquilo que parece lhe assombrar pela vida afora: a morte.
 
POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
 
 
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da
Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
 
É assim que salta aos nossos olhos, a poesia bandeiriana,     que nasce tal uma pérola - da impureza – dentro da fragilidade cotidiana, das mazelas sociais, e nos faz crer piamente na possibilidade de uma poesia que se apoia em algo alheio a si mesma. E o poeta como um bom tecelão recorta a palavra comum e tece o poema. Há uma dose de ironia ou um pouco de sagacidade, que talvez seja necessário para afugentar a  morbidez, o prosaico entranhado na  matéria jornalística,  que ora deixa de ser prosa para ser  poesia.
 
Ao alinhar o pensamento com o de  Massaud Moisés, poderia se dizer que esta evidencia-se como não poesia. Porém, não se explica de onde surgiram as razões para não se evidenciar, nem a assertiva de não se tratar de poesia. Assim, no intuito de responder o questionamento prévio que partirá do leitor, já se pode adiantar que “isto não é prosa”. Ora, se a prosa é linear, é porque o verso é cíclico.
 
É bem provável que o leitor não queira mais se perguntar se está lendo um fragmento de jornal ou um poema. Neste caso, fica evidente que o poeta não concorre, em momento algum, com o propagador da  matéria quando  a função do jornalismo é  de investigar, alertar e  levar a notícia   “quente” ao seu leitor. No verso “Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro”,  trata-se de um passado remoto,  com tempo indefinido,  algo despretensioso, vago, que  só caberia ao texto poético.
 
O poema sendo um produto histórico, que nasce num tempo, num lugar, é, por natureza, transcendente a tudo isso. Na sua construção ímpar do Poema tirado de uma notícia de jornal, a poesia de Manuel Bandeira  é carregada de ação pelos verbos beber, cantar, dançar, e vai distribuindo emoção como são  distribuídas as palavras nos pregões das feiras livres. Chega a Imprimir um ritmo completamente antagônico à ideia de morte.
 
Analisando o contexto por outra ótica, João Gostoso, carregador, pessoa humilde, foi, na sua hora final, um grande homem. Não precisou de sobrenome, coisa que a vida toda lhe negara, para ser manchete de jornal. E João Gostoso soube escolher o seu “podium”. É como se a Lagoa Rodrigo de Freitas tivesse lhe dado status  e lhe jogado  para cima, depois da sua morte, enquanto que o morro da Babilônia, apesar da evocação bíblica,  lhe jogou, em vida, para baixo.
 
Prosseguindo dentro do tema, vejamos a seguir, na sua obra Lira dos Cinquent´Anos,  o poema  Mozart no Céu. Eis o fragmento abaixo:
 
No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart
                       entrou no céu como um artista de circo,
                       fazendo piruetas extraordinárias sobre um
                                                 mirabolante cavalo.
 
 
Mais um vez, uma construção de formato assimétrico, marca do modernismo,  com versos livres se aproximando da prosa. Neste pequeno excerto há um misto, uma profusão de mundos artísticos que perpassa, primeiro, pela arte literária, envereda pela música  e faz um resgate da arte circense. As expressões: “artista de circo”, “piruetas extraordinárias”, parecem querer desestruturar ou anarquizar um plano  hermeticamente traçado que ficou lá no passado com o parnasianismo. É notável a forma lúdica encontrada para  mostrar, também, traços reais da irreverência de Mozart. Isso é bem marcante no pensamento modernista do século XX, que Manuel Bandeira faz questão de imprimir no decorrer da sua obra.
 
Para melhor entendimento, basta que se leia o primeiro verso do excerto, em epígrafe, sem querer comparar os três personagens aqui elencados: Irene, João Gostoso e Wolfgang Amadeus Mozart. Pois, ao meu ver,  seria um ato de covardia. O estilo crítico do autor já nos é perceptível no início da estrofe quando este faz questão de escrever o nome completo do personagem morto(?), Wolfgang Amadeus Mozart.
 
Ao retomarmos o poema Os nomes, veremos que os versos “Duas vezes se morre: / Primeiro na carne, depois no nome”,  fazem oposição à ‘realidade’ poética de Mozart no Céu.  É evidente que o autor sabe disso quando faz questão de registrar completamente seu nome, dia, mês e ano em  que Mozart  entra no céu. Ora, Mozart é universal; Irene, uma preta; João Gostoso era um carregador de feira livre.  É óbvio que somente um deles, o Mozart, tem uma só morte, a da carne (do corpo físico). Os outros, são acometidos por duas mortes: a social e a da carne.  E se ao poeta cabe ler o ilegível, a  outro homem  não cabe dizer o indizível.
 
  
REFERÊNCIAS:

BANDEIRA. Manuel. Antologia poética:12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
BARTHES. Roland. O prazer do texto: 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BOSI,  Alfredo.  História concisa da literatura brasileira: 37.ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CULT REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA. São Paulo: Bregantini, 2010 - .Mensal.  - n. 143. ISSN 1414707-6.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: 18 ed. São Paulo: Cultrix, 2008.