DA LAMA AO CAOS E DO CAOS AO REAL: NIETZSCHE E CHICO SCIENCE PARA ENTENDER UM BRASIL EM CONVULSÃO

Eu jamais escolheria viver numa cidade grande como São Paulo ou Salvador. A única forma de me levar a uma cidade assim é por meio do uso da força. Morar em São Paulo, por exemplo, é cumprir pena. Sei que tem gente que discorda disso. Tem quem ache as metrópoles o máximo, apesar de tudo. Não perderei tempo discutindo esse tipo de preferência.

O que importa, aqui, é que todos os dias, as notícias trazem um contexto urbano de intensa violência, desordem nos meios de transportes e nos serviços públicos em geral. Ultimamente, aliás, os problemas de São Paulo têm sido agravados (e aqui poderia incluir Salvador, Recife, o Rio de Janeiro, já que tais vicissitudes também existem em qualquer grande cidade brasileira – eu só cito São Paulo por se tratar da maior e mais importante cidade do país).

Todo dia é uma greve nova, ou uma nova manifestação que torna ainda mais pesaroso o dia a dia dos habitantes que residem numa cidade como São Paulo. Não basta a já consagrada violência que brutaliza o cotidiano, fazendo com que o mal se torne algo banalizado, cuja coexistência com os nossos problemas comezinhos passe a ser algo visto como natural.

O retrato deste momento em que vive o Brasil pré-eleição, e que tomou dimensões de movimentos sociais (pautados ou não), estampa a lógica da inviabilidade do modelo adotado desde a proclamação da República. Um modelo perverso baseado no clientelismo e no patrimonialismo privado da coisa pública, que gerou e gera exclusão social, de um lado, e acúmulo concentrado, insustentável e injusto de riquezas, do outro.

O resultado é o que os jornais noticiam e que leva, inexoravelmente, à adoção de uma palavra que resume a vida hodierna: caos.

A realidade é caótica. O caos é a marca registrada da vida de uma cidade grande pós-moderna, dos países em desenvolvimento.

A mistura da realidade material, imposta pelo estilo de vida ocidental (que, infelizmente, se espalha, cada vez mais, pelo oriente, como consequência desfiguradora da globalização) que a humanidade foi levada a adotar, com a insanidade provocada pelos efeitos deste mesmo estilo de vida, eleva o caos ao maior e mais nítido estado de natureza já vivido na história.

Analisar realidade e caos, é, praticamente, a mesma coisa. São noções umbilicalmente indissociáveis.

Nesse contexto, é inescapável deixar de pensar num dos maiores filósofos que já existiu. Um sujeito que, concordemos ou não com suas ideias, mudou o modo de pensar a vida e aniquilou o mundo filosófico como, até então, era concebido.

Um alemão que entendeu essa miscelânea entre caos e realidade e inaugurou a filosofia pós-moderna, com seu pensamento desconstrutivista.

Refiro-me a Friedrich Wilhelm Nietzsche.

Criticado por muitos, estudado por todos e compreendido por poucos, Nietzsche contribuiu para a história da humanidade através da inoculação (essa é a palavra porque, para os inadvertidos, suas ideias são venenosas) de um pensamento poderoso, trazendo a noção de destruição de ideais e apego ao real.

Façamos uma breve e resumida inserção em suas principais teses.

Primeiro, a pré-compreensão.

Nietzsche despontou no final do século XIX. O pensamento filosófico daquela época estava passando por uma fase de transição. A Filosofia das Luzes (ou moderna), em que se pode citar as ideias de Kant e Descartes, pautada no racionalismo e na moral, que enaltecia a razão e a liberdade, como ideais de busca da felicidade humana, passou a ser duramente enfrentada e criticada por pensadores como Nietzsche, e, em certa medida, Marx e Freud.

O espírito crítico libertado pelos filósofos das Luzes, que negaram a filosofia anterior, principalmente a escolástica, que durou toda a Idade Média e tinha na religião e na busca da salvação por meio do amor em Deus, a própria fundamentação teórica, agora, iria experimentar do seu próprio veneno: este mesmo espírito crítico passaria a fomentar a desconstrução de toda filosofia até então experimentada.

A Filosofia das Luzes criticava as religiões e a noção da divindade como algo a ser execrado do mundo e que a razão, essa sim, é que seria a veia libertadora do espírito humano.

Nietzsche, entretanto, buscará apontar que tanto a noção do equilíbrio harmônico do universo (o cosmos, na filosofia antiga), quanto à noção de Deus (no pensamento reinante durante a Idade Média) e a própria razão (encartada pela Filosofia moderna) são conceitos de ideais que mantiveram prisioneiros todos esses movimentos ou escolas filosóficas.

E a ideia libertadora, para Nietzsche, começa a partir do afastamento de todos esses ídolos. Repare que, com isso, Nietzsche coloca num mesmo patamar a ideia de cosmos, de Deus e de razão. Tudo isso para ele, são ideais (ou ídolos) que se contrapõem ao que realmente importa: a realidade. É o amor ao real que deve pautar o pensamento humano e que funcionará como sua salvação.

Sem querer imergir em profundas análises filosóficas acerca do pensamento nietzschiano, até porque, não sou filósofo, cabe, aqui, lançar mão de duas ideias essenciais para compreender o seu pensamento: a noção sobre o “niilismo” e sobre o “ grande estilo”.

Contudo, uma advertência se faz necessária: existe diferença entre o conceito de niilismo em Nietzsche e aquele conceito comum, ou mais difundido de niilismo.

Para o senso comum, o niilista é alguém desapegado de qualquer valor ou princípio superior, que não seja verificável na realidade. É o sujeito que não se pauta em nenhum princípio ou valor como honestidade, moralidade, etc e se deixar levar pelas situações e circunstâncias da existência.

Para Nietzsche, pelo contrário, Niilismo é um apego ao “além”, a valores superiores, a algo exterior à real existência humana, como se este “além” fosse melhor do que este mundo, do que esta vida.

E os instrumentos que são utilizados para atingir este “além” são vários e mudam de acordo com o contexto histórico do pensamento: na Antiguidade, a ideia de cosmos; na Idade Média, o apego às religiões e à noção da vida eterna após a morte, justificada apenas pelo amor a Deus e outros monoteísmos; e na Modernidade, o apego a ídolos como a razão, ou a moral, ou qualquer outa forma de certeza absoluta acerca da existência.

Nietzsche considera, como já disse, que todos esses conceitos que pregam algo que justifica a busca humana numa existência que não seja a própria realidade vivida, são ídolos, ou ideais que escravizam o pensamento e que, por isso, devem ser abolidos. Caso contrário, o homem permanecerá num “nada existencial”, que conduz a uma existência temerosa, pois nenhum ideal pode se concretizar ou substituir o real.

Na concepção nietzschiana, portanto, o niilista é quem é apegado a valores superiores, como os seguidores de doutrinas como o Cristianismo, ou o Comunismo, pois são doutrinas que buscam impor verdades absolutas, negando tudo o que pode ser vivido e sentido na existência real.

E, para Nietzsche, o real é caótico, como bem ilustra essa passagem da obra “Além do bem e do mal”: “Sabem o que é o ‘mundo’ para mim? Querem que eu o mostre em meu espelho? Esse mundo é um monstro de forças, sem começo nem fim, uma soma fixa de forças dura como o bronze, [...] um mar de forças tempestuosas, um fluxo perpétuo”.

Para escapar disso, o homem deve ser palco de uma batalha entre o que ele chama de “forças vitais”. De um lado, as forças reativas. Do outro, as forças ativas. Explico.

As forças reativas são aquelas que se impõem aniquilando outras forças. E Nietzsche tem como melhor exemplo de força reativa a busca pela verdade. Nietzsche abomina as tradições metafísicas, religiosas e científicas, pois, cada uma a seu modo, busca impor a sua verdade. Cada uma busca, de modo inteligível, atingir algo que não existe: verdades ideais. Daí vem a noção de reação: se a verdade é alcançada por meio de atividade intelectiva, tais forças atuam contra os sentidos, pois, estes não podem levar a verdade alguma.

Tem-se, portanto, que as forças reativas estão ligadas à noção de busca da verdade ideal, por meio de atividade intelectiva, reagindo contra a atividade sensorial, ou dos sentidos, já que, por meios destes, não se chega a verdade alguma, pelo contrário, a experiência sensorial tende a enganar o corpo e a inteligência.

Para ilustrar, valho-me de um exemplo trazido pelo filósofo francês Luc Ferry: caso se queira entender a água por meio dos sentidos, tal atividade seria infrutífera. Isso porque, de acordo com o estado da água, o conhecimento acerca desta substância poderia se alterar. O tato iria diferenciar o gelo, da água em estado líquido e do vapor. Do mesmo modo a visão. O olfato de nada adiantaria, pois a água não tem cheiro. Assim também o paladar, pois água não tem gosto.

Porém, a verdade imutável e mais universal sobre a água é imposta, de forma insuperável, pela razão, fruto da atividade inteligente: a água é, em qualquer estado, H2O.

Veja como a verdade científica tende à universalidade e se impõe em reação à experiência sensorial. É uma força reativa, pois aniquila a busca da verdade pela experiência dos sentidos.

Do outro lado, estão as forças ativas que são, exatamente, as que operam por meio dos sentidos. São mais libertárias e atuam no sentido de favorecer o que não se consegue explicar. Por exemplo, como afirmar que uma obra de arte é mais bonita do que outra? Ou, como definir o amor? Como tentou, inutilmente, Luís de Camões? Simplesmente, não dá. Não se busca a imposição de verdades universais.

Nesse contexto, para Nietzsche, o “grande estilo” vem a ser a necessidade de convivência entre essas duas forças. O choque entre elas gera o bloqueio do espírito humano. É nesse conflito que a vida se torna mais perturbadora, menos alegre e menos viva.

Por isso, não se pode pretender que uma exclua a outra. Deve-se buscar a interação entre ambas. Assim, apesar de se dizer imoralista, pode-se concluir acerca de uma moral em Nietzsche: o “grande estilo” conceitua a conciliação daquelas forças em conflito como forma de se alcançar a harmonia necessária para lidar com o caos da realidade.

Pois bem. O contraponto harmonioso entre as forças reativas e ativas (razão e sensibilidade) leva a uma possibilidade de organização da humanidade de forma a evitar bloqueios do espírito, podendo proporcionar uma existência menos tormentosa.

E isso se faz cada vez mais necessário, visto que, a realidade social brasileira é caótica e, sinceramente, na minha opinião, a saída para o caos começa pelo abandono dessa vontade de querer mudar o mundo.

As situações cotidianas afirmam que devemos nos organizar e mudarmos a nós mesmos. E nisso Nietzsche tem toda razão: devemos abandonar esse niilismo que nos impõe o ideal de que todos os problemas serão resolvidos atacando os governos e as instituições e de que, num futuro que nunca chega, viveremos uma realidade justa e feliz. A filosofia de Nietzsche não busca trazer resposta a ninguém, nem quer melhorar a humanidade, apontando referências até então desconhecidas, como novas religiões.

Temos que nos organizar a partir da nossa própria consciência. A lição sobre o “grande estilo” nietzschiano nos dá a dica: tentemos harmonizar no nosso íntimo os nossos conflitos bloqueadores, ativos e reativos. Tentemos organizar ideias e sentidos que nos permitam ver a realidade como ela é, caótica, e tentar organizar a nossa “vontade de poder” em prol de uma realidade factível, afastando práticas que, infelizmente, em se tratando de brasileiros, nos levam a optar pelo privilégio, ao invés de buscar o que é certo.

Devemos nos organizar para afastar a noção de individualismo, e buscar privilegiar uma realidade em prol do coletivo. Devemos nos organizar para tentar sair dessa lama e volver nossas atenções e pensamentos para o caos da realidade que nos é (foi) imposta.

E aqui entra Chico Science, complementando o “grande estilo” de Nietzsche: é me organizando que posso desorganizar.

É organizando as nossas forças vitais, que podemos desorganizar a realidade caótica que somos levados a ter que engolir cotidianamente.

É desorganizando as verdades até então consagradas que poderemos organizar uma existência real, talvez menos caótica e mais justa, sem apegos a ideais, como socialismo, capitalismo, direita e esquerda. Enfim, conflitos estéreis, inúteis e bloqueadores.

Não quero dar certeza absoluta aos pensamentos de Nietzsche. Apenas gosto de conhecer os ensinamentos filosóficos, sem desmerecer ou endeusar nenhum deles. Porque todos possuem algo importante a ensinar e tendem a diminuir a minha eterna sensação de que “tudo que sei é que nada sei”.

Tudo isso, para fugir do senso comum que cerca as interpretações desses acontecimentos recentes que, no Brasil, parecem que tomaram maior fôlego a partir de junho do ano passado, e, agora, às vésperas da eleição, podem anunciar um trauma profundo de revoluções sociais.

Os processos históricos são marcados por cismas drásticos de realidades, quando a situação de mazelas atinge uma parcela razoável da sociedade, submetendo-a a uma vida insuportável. O caos instaurado na França do século XVIII, e a Revolução sangrenta que dele adveio, talvez seja o maior exemplo disso.

Não existem mudanças significativas sem reviravoltas dramáticas. A história não alimenta a queima de etapas. E o Brasil ainda não passou por uma etapa de Revolução, apesar de ter se separado de Portugal e, posteriormente, de ter afastado o regime monárquico. Tudo no mais perfeito marasmo diplomático.

Não sou e nem quero ser um arauto do caos. Mas, não posso deixar de reverenciar Nietzsche, quando ele nos aponta a necessidade de encararmos a nossa realidade caótica e afastarmos a busca por esses ideais inúteis, que foram os mesmos que nos conduziram até aqui.

A atitude, como eu disse, deve ser organizada individualmente, partindo do particular para o coletivo, organizando intimamente para desorganizar as estruturas políticas e sociais falidas e, assim, como uma cobra que troca de pele, quem sabe podermos vivenciar uma realidade social renovada e menos caótica.

Porém, a continuar do jeito que está, provavelmente, ainda veremos caranguejo saindo do mangue para virar gabiru. Isso se ele não morrer no meio do caminho, esmagado pelos transeuntes de uma manifestação qualquer.

Adriano Carvalho Souza
Enviado por Adriano Carvalho Souza em 27/09/2014
Código do texto: T4978120
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