O que está errado com a ciência contemporânea? (Um recado a jovens físicos)

A palavra “ciência” tem sido muito pronunciada e pouco compreendida. Os meios de comunicação anunciam grandes avanços científicos quando alardeiam, de fato, novidades tecnológicas. A ciência, na verdade, encontra-se bastante estagnada. A relatividade, por exemplo, já é centenária, a mecânica quântica quase isso; as novidades na física, embora muitíssimo alardeadas, como bosons de Higgs e outras não passam de detalhes.

Comparada à ciência do século XIX, a contemporânea parece estática; nada de realmente novo sob o sol. Apesar da predominância de um discurso inflamado enaltecendo os avanços científicos recentes, reconhece-se não haver modificações teóricas relevantes há décadas. Credita-se tal fato, muito ingenuamente, penso, às descobertas anteriores. Já teríamos desvendado a natureza fundamental da matéria, restando pouco por fazer, seria a desculpa. Tendo já descoberto quase tudo, dizem crer uns sonsos e uns ingênuos, temos que nos contentar com as pequenas novidades, a descoberta dos detalhes ainda desconhecidos.

Acho extremamente improvável que tenhamos descoberto a natureza fundamental das coisas. Essa ilusão, paupérrima, a meu ver, advém da incapacidade de nos livrarmos do ponto de vista dominante; explicarei.

Cada linguagem propicia uma visão de mundo, ou um conjunto delas. A mecânica clássica propiciou descrições baseadas em palavras como: espaço, tempo, massa, energia. Einstein alterou o significado de todas essas palavras e propôs a relatividade baseada em outras diferentes: espaço relativístico, tempo relativístico, massa relativística e energia relativística, todas elas diferentes das grandezas clássicas análogas.

As linguagens humanas se baseiam em um conjunto de restrições que permitem a comunicação entre nós, humanos. Sem tais restrições nunca conseguiríamos adivinhar o significado das palavras pronunciadas por outros, viveríamos numa Babel inexpugnável. Precisamos limitar a quantidade de significados possíveis, e partir das mesmas restrições de significados para construir uma linguagem, algo que possa ser compreendido por quem ouve. Essa mera restrição impede nosso acesso, de toda a humanidade, a um imenso conjunto de linguagens possíveis, algumas das quais, talvez, propiciem uma descrição completa de determinados aspectos, restritos, da totalidade das coisas. É bastante improvável que tenhamos tido a sorte de ser contemplados com uma linguagem que permita abarcar, por exemplo, a mecânica, em sua totalidade. Penso que, no futuro, uma nova mecânica virá a ser proposta, revolucionando todos os conceitos anteriores, alterando o significado de todas as palavras utilizadas anteriormente e modificando a maneira com que se relacionam, de modo análogo ao ocorrido com o advento da relatividade.

Acredito, desse modo, que a“ciência” é uma atividade drasticamente revolucionária, iconoclástica, demolidora.

O século XX, no entanto, pareceu contradizer minha visão: a relatividade foi proposta em 1905 e permanece inalterada até hoje; a mecânica quântica, da mesma época, se consolidou nos anos 20, e já estava pronta em 32.

De lá para cá, nada digno de nota, apenas detalhes. Essa constatação surpreendente se torna espantosa quando atentamos para o número e empenho de pesquisadores existentes no período; devemos ter hoje mais de 1000 profissionais em ciências para cada cientista existente um século atrás, além de verbas bilionárias; os grandes laboratórios de 100 anos atrás são francamente superados hoje pelos laboratórios de qualquer instituição adequada de ensino médio.

Há algo errado.

Tem que haver uma fortíssima razão para que os imensos enxames de cientistas contemporâneos, muito mais aparelhados que os antigos, não consigam superá-los. A constatação avassaladora parece refutar minha argumentação anterior: a existência de um contingente tão imenso, e tão bem aparelhado, de tantas mentes empenhadas no desenvolvimento científico, contingente tão absurdamente maior que o do século XIX, parece afastar qualquer dúvida sobre a perfeita adequação das teorias contemporâneas. Parece que, de fato, encontramos a verdade, o desenvolvimento último. Parece que descobrimos, de fato, como a natureza funciona, restando assim, só a descoberta de detalhes a ser feita, razão pela qual nunca mais atingiremos descobertas tão imensas e desconcertantes quanto as obtidas pelos cientistas do passado.

Não acredito nessa possibilidade e reitero a argumentação anterior: novas linguagens propiciarão, um dia, pontos de vista revolucionários, novas descrições do mundo, da mecânica, por exemplo, diferentes e mais ricas que as atuais; negarão seus pressupostos, redefinirão seus termos, reconstruirão toda a ciência!

Mas, sendo assim, e havendo a possibilidade de negar e superar as teorias atuais por que isso não tem acontecido?

Uma pista para essa resposta se encontra, creio, em um tema em voga atualmente: os emaranhamentos quânticos.

Em 1935, Einstein, Podolsky e Rosen propuseram um argumento (EPR) que contrapunha a visão ortodoxa da mecânica quântica à relatividade. O argumento, surpreendentemente simples, consiste basicamente no seguinte:

A mecânica quântica não permite uma descrição completa de determinados fenômenos; imagine, por exemplo, uma vitrola que destruísse os discos nela tocados, nesse caso, seria possível ouvir apenas um de seus lados, então, ou se ouviria o lado A, e se perderia o B; ou se ouviria o B, perdendo então o A. Os aparelhos usados para medir as partículas se comportam dessa maneira, destruindo-as quando observadas, desvendando-se apenas um de seus "lados".

Einstein, Podolsky e Rosen idealizaram uma maneira de construir pares de partículas homólogos, como se fossem pares de discos idênticos. Tendo dois discos idênticos, seria possível ouvir o lado A em um deles, e o B em outro, ou seja, os dois lados do disco poderiam ser ouvidos usando-se a vitrola que os destruísse durante a audição. Do mesmo modo, as duas informações complementares sobre as partículas poderiam ser desvendadas, descobrindo-se uma em cada partícula homóloga, revelando a incompletude da mecânica quântica, que mostraria apenas um dos lados do fenômeno.

Em contrapartida, os quânticos alegaram que a descoberta de um dado sobre uma partícula (a audição de um disco) seria comunicada à outra, destruindo a conexão do sistema, o que salvaria a mecânica quântica. Quero dizer, segundo eles, a medida efetuada em uma das partículas homólogas seria imediatamente transmitida à sua homóloga, destruindo a conexão do sistema, do mesmo modo que a audição de um disco alterasse, imediatamente, o outro disco.

Einstein, no entanto, havia mostrado anteriormente a inexistência de algo que pudesse ser chamado “simultaneidade”, esse é um dos fundamentos da relatividade. Na visão relativística, isso de “simultaneidade”, simplesmente, não existe. Para garantir a força da versão ortodoxa da teoria quântica, no entanto, os quânticos se obstinaram em sua defesa, talvez confiando na indecidibilidade da questão. Poderiam ter, simplesmente, concordado com Einstein, admitindo que a teoria não era o retrato último e definitivo do universo, mas que pontos de vista posteriores poderiam vir a reformular a teoria. Preferiram, no entanto, se aferrar à defesa da ferrenha da teoria quântica, asseverando sua completa adequação: a teoria seria tão completa quanto a realidade permitiria que fosse. Sua indeterminação, sua aparente incompletude, seria um retrato fiel da indeterminação do próprio mundo.

Umas décadas depois, surpreendentemente, creio, vislumbraram-se possibilidades empíricas de execução do teste aventado pelo trio EPR, Einstein, Podolsky e Rosen, e as medições começaram a ser efetuadas.

As medidas em jogo são sutilíssimas, os tempos envolvidos nas medições são ínfimos, nenhum atraso é permitido. As medidas das partículas homólogas devem ocorrer, antes que a luz tenha tempo de se deslocar de uma para a outra, trata-se de átimos absurdamente pequenos.

A maioria dos resultados foi tendendo a confirmar a “conexão” entre as partículas; a medida de uma das partículas homólogas parecia, instantaneamente, baratinar a outra, como se ambas permanecessem emaranhadas uma à outra.

No início, os resultados eram dúbios; quanto mais precisas, no entanto, foram ficando mais tendentes à hipótese do “emaranhamento” entre as partículas, como passou a ser chamado o fenômeno aventado por Einstein.

Pois bem: essa “constatação” (muitos já a consideram assim) parece eliminar a última forte objeção à mecânica quântica, parece excluir qualquer dúvida que ainda restasse sobre a completude da teoria, e estabelecer, em definitivo, a verdade da teoria quântica, reiterando a indeterminação fundamental da matéria, e a impossibilidade de compreensão do mundo por parte da mente humana, reafirmando uma espécie de incompatibilidade entre ambos.

A “torcida” favorável a esse resultado comemora entusiasticamente essa comprovação. Existe entre os físicos uma espécie de lenda que advoga uma condição libertadora da mecânica quântica, supostamente defendida por libertadores; contrários a ela haveria os conservadores reacionários, arraigados a antigos conceitos, tentando o retorno ao determinismo clássico, reza a lenda.

Tendo comemorado os resultados experimentais favoráveis à existência dos emaranhamentos quânticos, deram breve satisfação sobre a objeção de EPR, algo do tipo: localmente, haveria a possibilidade de comunicação em velocidades superiores à da luz, o que parece satisfazê-los.

Aqui retomo o argumento EPR: o emaranhamento quântico impõe uma comunicação SIMULTÂNEA entre as partículas. A relatividade, no entanto, revolucionou, entre outros, o conceito de tempo de uma maneira tal que elimina concepção de simultaneidade. Tal conceito se dissolve na concepção relativística, deixa de fazer sentido, simplesmente, devido à natureza maleável, elástica, do tempo.

Assim, a “constatação” (se já se pode usar essa palavra, afirmam os quânticos) do emaranhamento quântico deveria impor o retorno da noção de simultaneidade e o consequente abandono da teoria da relatividade!

Esse era, exatamente, o posicionamento de Einstein, aliás. Estranhamente, no entanto, os quânticos calam-se sobre tal fato.

Retomo agora os pontos iniciais desse texto: em 1935, logo após a consolidação da mecânica quântica, o trio EPR apresentou o argumento contrapondo a interpretação ortodoxa da mecânica quântica à relatividade; pressupondo a veracidade da relatividade, o trio expunha o que considerava um erro na interpretação quântica. As evidências empíricas, no entanto, favorecem agora o ponto de vista oposto, ou seja, parecem asseverar a veracidade da interpretação quântica; ora, nesse caso, teríamos uma refutação da relatividade!

Tente, o leitor, escapar desse dilema: assumindo o EPR, como seria possível coadunar o emaranhamento quântico à inexistência de simultaneidade?

Era esse, exatamente, o ponto de Einstein, o grande revolucionário. Ninguém, em todos os tempos, revolucionou tanto as ideias vigentes quanto ele.

No entanto, essa constatação, bastante óbvia, creio, vem sendo abafada há quase um século! Uma vertente a afastava impingindo-lhe um caráter reacionário: Einstein havia ficado velho e se tornado um amargo reacionário, em consequência. A suposta confirmação empírica do emaranhamento quântico permite agora a divulgação generalizada (antes bastante contida quase somente a círculos filosóficos) do EPR. Estranhamente, a meu ver, não se explicita o caráter excludente das duas teorias hoje dominantes.

Ou seja, a física padece de uma contradição fundamental: a relatividade é incompatível com a mecânica quântica! Isso deve ser explicitado.

Essa constatação, ensinada já por Einstein, deveria ter bastado para jogar os físicos em um empreendimento revolucionário. Deveria ter incendiado as comunidades científicas, espicaçado os físicos a uma atividade febril em busca da solução do paradoxo.

O resultado, no entanto, foi absolutamente decepcionante: após um revolucionário início de século, com o advento das duas grandes teorias contemporâneas, os anos 30s consolidaram e enalteceram uma geração de carneirinhos a balir, passivamente, pela aceitação da teoria capenga; entoavam em coro: a natureza é incompreensível para a mente humana, o melhor que podemos ter é essa teoria capenguinha, parcial, incompleta; devemos nos contentar com isso, devemos nos limitar a ela.

Também insistiam para cercear as perguntas, um dos pontos centrais do ensino da teoria quântica! Os estudantes deveriam ser moldados para fazer apenas as perguntas adequadas, nada de perguntas constrangedoras: deveriam aprender a fazer, apenas, as perguntas para as quais os físicos quânticos sabiam apresentar respostas, outras perguntas deveriam ser silenciadas! Um dos pilares centrais do ensino de física quântica consiste em explicitar as perguntas que devem e as que não devem ser feitas.

Tendo aprendido quais as perguntas a serem repetidas, e quais as proscritas, os jovens de então passaram a balir a mesma cantilena, obrigando seus alunos a entoar apenas as mesmas perguntas, evitando sempre as constrangedoras. Desde então tem sido assim o ensino de física, produzindo um enorme rebanho de ovelhas a balir a mesma cantilena, a entoar o mesmo refrão, repetindo apenas as mesmas perguntas; proibidas quaisquer outras.

Ao mesmo tempo, o rebanho denunciava a postura reacionária de Einstein e de seus seguidores que insistiam nos questionamentos constrangedores, proscreveu-nos, juntamente com suas perguntas e seus argumentos incômodos. Desde então, as sucessivas gerações de físicos vêm aprendendo, desde muito jovens, a fazer as perguntas adequadas e a evitar todas as outras.

Talvez tenha sido esse o principal artifício utilizado para emperrar o avassalador desenvolvimento científico implementado no séc. XIX e que transcorria a pleno vapor no início do XX.

Impedidos de fazer perguntas constrangedoras, repetindo sempre as mesmas cantilenas, os novos físicos interromperam a façanha luminosa de seus mestres solidificando a visão das gerações passadas.

Paradoxalmente, esses mesmos jovens envelheciam repetindo lamúrias por não terem vivido em época melhor; lamentam-se, os tolos, por não terem nascido antes, em uma época efervescente quando a física estava sendo construída. Lastimam a sorte de terem chegado tarde, tendo já a física sido criada, devendo contentar-se, tão somente, com a finalização de detalhes teóricos, tendo o fundamental sido descoberto pelos antigos. É essa a cantilena que repetem, desde os anos 30s, todos aqueles que aprenderam a fazer as perguntas adequadas e a evitar as constrangedoras, mantra lamentável. Tendo sido cegados por seus mestres, tratam de fazer o mesmo com seus alunos, furando-lhes os olhos. É esse rebanho de ovelhas cegas que ensinará os jovens de amanhã a evitar perguntas constrangedoras.

Penso que as mesmas perguntas tendem a gerar sempre as mesmas respostas.

Penso que ideias revolucionárias só advirão de novas perguntas.

Penso que a natureza é infinita e aberta, e que nunca chegaremos a conhecê-la completamente; que as mentes livres conseguirão sempre, mais e mais, fazer novas perguntas e descobertas inovadoras sobre o mundo, essa imensa cornucópia de fantásticas surpresas.

Também penso que a estagnação da ciência contemporânea apesar da quantidade imensa de cientistas existentes hoje, e dos recursos astronômicos de que dispõem decorrem de sua passividade, de sua resignação ante a imposição de evitar novas perguntas: só as novas perguntas suscitarão novas visões de mundo.

Para os jovens, creio que tais suposições serão alvíssaras; os que se rebelarem contra os balidos reiterados por seus mestres sonharão com novos mundos e com novas explicações desses mesmos sonhos.

Mas talvez haja um entrave sombrio.

A ciência não se adequa muito claramente nem ao poder nem ao capitalismo. Ao contrário da tecnologia, fonte inesgotável de lucros, a ciência não propicia ganhos financeiros imediatos. As teorias não são patenteáveis, e ideias revolucionárias podem amedrontar os poderosos.

Junto com isso, a ciência move hoje, anualmente, um montante de muitos bilhões de dinheiros, provavelmente trilhões. Quase todo esse montante aplicado em pesquisas baseadas na física quântica. Qualquer leve abalo na credibilidade dessa teoria, qualquer mínima dúvida, pode ocasionar redução nessa verba, hipótese aterrorizante para muitos. A esses, os que mediam as verbas, a repetição dos balidos soa tranquilizadora; tentarão calar qualquer voz destoante do coro obediente.

Os que ousarem desobedecer, saibam, serão proscritos; tentarão calá-los, ou, ao menos, abafar suas vozes. Serão caluniados, taxados de reacionários, isolados. Serão os mesmos percalços lançados contra os revolucionário de todas as épocas. Ponham tudo na balança. E sonhem.

Eu me sentiria irresponsável se não pudesse mostrar a existência de um caminho mais ameno. Creio que os jovens devem aprender a fazer as perguntas que os quânticos recomendam, jogar o jogo que eles propõem. Acho importantíssimo que os novos físicos conheçam a ciência contemporânea, naturalmente. Mas reitero que não devem se resignar a isso; devem conhecer as respostas atuais mas, ao mesmo tempo, buscar respostas para suas próprias perguntas. Serão as novas perguntas que farão a ciência avançar. Creio estarmos prestes a presenciar um período de enorme florescimento cultural em todos os campos. acredito que, em breve, veremos o surgimento de novas teorias, de novas visões de mundo; felizes os que participarem de tal empresa.

Também gostaria de explicitar minha crença, baseada apenas na lógica e contrária aos "fatos" alegados pelos experimentadores contemporâneos, de que os emaranhamentos existem apenas na cabeça dos físicos quânticos.