A MERCADORIA DESPIDA DE SEU CONTEÚDO FETICHISTA

O presente ensaio, como o próprio título indica, não pretende discutir a Mercadoria dotada de seu caráter fetichista. Para isso, seria obrigatório, tomá-la na perspectiva marxista, o que levaria o pretendido para outra direção.

O ensaio que segue, buscará abordar a mercadoria sob a óptica estritamente sociológica, e num certo sentido, até ontológica, isto é, o quanto nos dias atuais ela tem se sobreposto ao indivíduo, num crescente tamanho, que ele mesmo já não se reconhece. Quando ele, tomado por essa entidade, não se reconhece como um ser, mas, e ao contrário, quando se dá conta que toda sua existência se resume naquilo que produz e consome.

A mercadoria como elemento identificador do indivíduo. Sem corpo e sem alma, a mercadoria adquire, por uma aliança sem compromisso, a mente e o corpo do indivíduo. Ela se apodera de todo o ser, como algo sem controle, porém, dotada de poder absoluto, que o invade até as entranhas.

Nada lhe escapa às suas mãos. Como um deus, sua onipresença é sentida mesmo por aqueles que lhe negam a existência. Nada, por mais forte que seja, pode suplantá-la. Ela se mostra irremediavelmente superior a tudo e a todos que estão a sua volta.

Deus, o tão temido e amado Deus, perto dela perde sua magnificência. Perto dela, Deus, igualmente se contamina do esplendor com que a mercadoria se mostra, logo, Ele, também perde sua natureza para se tornar a outra; também mercadoria.

A mercadoria fascina pelo que não é, pelo que poderá vir a ser ou pelo que já foi. Dotada de certa realeza, a mercadoria engole nobres e plebeus. Tudo que dela se aproxima, como num rodamoinho, é tragado para depois ser regurgitado como excremento. Expelir o que já não presta para, logo no instante seguinte, colocar outra no lugar. Eis, a suprema metafísica que dá à mercadoria elevação, quase divina. Eis, a divindade reverenciada pelo marcado. Eis, a materialidade do trabalho morto, do homem morto; do trabalho sem face, do homem sem face. Do homem despossuído de si, do homem que só existe se compartilhar amigos na rede; amigos que nem ele conhece, amigos expostos na vitrine virtual à procura de quem lhe dê um “sim” para transitar por bytes. Eis o espetáculo onde todos e ninguém tem importância, eis o narcísico desfile do efêmero.

Todos pedem, todos imploram, todos compram. Essa tríade de desejos não se esgota nunca. Todos, em dado momento de sua vida, quer queira, quer não, se deparará com essa questão ética. O paradoxo nessa relação, a considerar o que ela traz, é saber quando a coisa/mercadoria assume, perante a vida e os homens, sua malinidade, isto é, quando a coisificação do ser se impregna nele, ou seja, a tal ponto que ele já não se reconhece nele mesmo. É nesse instante que a mercadoria se apossa do ser. É nesse mágico momento que a mercadoria se reveste de um brilho, quase cegante, que o ser não consegue dela desviar seu olhar. Com o olhar hipnotizado, a vítima, e todos são vítimas, se deixa levar.

Andar à deriva, como um barco perdido no oceano, eis, o estado em que o homem se transformou, tão logo, a mercadoria entrou no seu mundo.

O mundo, se um dia pudesse vislumbrar algo de belo e tenazmente colorido, isto é, dotado de outras matizes em que a vida não fosse apenas, e tão somente, um linear acontecimento. É preciso outras tonalidades, com nuances, ainda que sutis, de magenta ou mesmo um filete que seja de verde-oliva. A mínima alteração, que seja imperceptível, assim como um fraco sopro do vento, não importa, a alteração deixará sua passagem.

O mundo, enquanto sinônimo de vida, se revestiria de algo mais simples, porém, mais autêntico e docemente mais alegre. Mas, desde o dia em que o parto civilizatório, não satisfeito com o que até então conhecia, pôs-se a andar por entre descobertas e outras mais, nada mais seria o mesmo. Foi preciso, foi deliberado que era fundamental avançar. Coisas foram criadas. A roda, o tear, o arado, a máquina a vapor, enfim, a transformação da natureza, antes um só corpo amalgamado com o homem, impôs a confecção de tais maquinários para que a produção saísse das mãos de um, que produzia para poucos, para as mãos de um produzindo para muitos. Eis o grande salto! Eis o abismo sob os pés. Eis o capitalista. Eis, a luta de classes. Eis a mercadoria!