Construindo ilusões
Sabemos que todos os textos trazem mensagens, sejam implícitas ou explícitas e, muitas vezes, faz-se necessária uma leitura atenta e minuciosa para perceber a ideologia contida nestas mensagens, que podem transmitir uma imagem mascarada e ilusória da realidade. Um exemplo de texto que pode nos dar lições distorcidas é o cordel "Zezinho, o brasileirinho que tinha tudo para ser bandido", publicado na revista Nosso Amiguinho.
Basicamente, a história é simples. Zezinho, menino de favela, cujo pai morre em consequência do alcoolismo, trabalha como engraxate para ajudar a mãe, estuda em escola pública e, depois de muitas dificuldades, torna-se médico. Qual seria a moral da história? Que, com esforço, sempre se vence, mesmo que todas as circunstâncias sejam desfavoráveis.
Entretanto, este texto não mostra toda a cruel realidade que envolve meninos como Zezinho, vítimas de um sistema perverso de exclusão social. Não há espaço para questionar o porquê de algumas crianças terem uma infância privilegiada, enquanto outras, como Zezinho, têm que começar a batalhar cedo pela sobrevivência. Outra irrealidade presente no texto é que o menino sempre sorri, mesmo levando uma vida dura, trabalhando, estudando e fazendo serviços domésticos, sem se revoltar com sua condição nem se perguntar o porquê de não ter uma infância normal.
Ao mencionar a escola, o cordel apenas diz que "era pobre, com poucos recursos, mas a professora era legal." E Zezinho estudava, porque sabia que, no estudo, estava o seu futuro. Ora, sabe-se muito bem que a realidade não é assim. Estamos vendo gente com diploma universitário desempregada ou lutando para conseguir empregos muito abaixo do seu nível de instrução.
O texto, ainda por cima, não aborda aspectos comuns presentes nas escolas públicas brasileiras: professores desmotivados, alunos com baixo nível de instrução, indisciplina, desinteresse, repetência e evasão escolar. E como Zezinho, trabalhando e fazendo o serviço de casa, ainda tem energia para estudar, aprender e só tirar nota 10? Crianças como ele que, na vida real, estudam e trabalham, costumam ter pouco aproveitamento escolar pois, além de enfrentar duplas ou triplas jornadas, não costumam ver utilidade nas matérias ensinadas.
Textos como este, que têm uma pretensa função educativa, acabam por deseducar os leitores, dando a entender que qualquer um que queira pode superar a situação de pobreza e sair de um ambiente degradante, onde impera a criminalidade.
Será bom que se lance uma pergunta: e os que, ao contrário de Zezinho, acabam se tornando bandidos? Tornam-se bandidos por serem fracos e não terem força de vontade? É tão simples assim? Embora, na realidade, haja pessoas que conseguem vencer as adversidades e melhorar de vida, deixando ambientes como as favelas, vale lembrar que elas são exceções.
A regra é crianças como Zezinho serem absorvidas por um ambiente de poucas oportunidades, miséria, desesperança e criminalidade. Em uma sociedade que não oferece oportunidades iguais para todos, é justo dizer que essas crianças são as únicas culpadas por não superarem as dificuldades em que vivem e sucumbirem à tentação da vida criminosa?