Voltaire e o Iluminismo Francês - Parte II - as Obras
 
Voltaire foi um homem assaz singular e, talvez, essa condição justifique o seu rito de passagem para a idade adulta, já que uma temporada na prisão não é um ritual comum na sociedade de qualquer época.
Contudo, a par de sua singularidade, o seu recolhimento involuntário acrescentou-lhe dotes importantes, tanto no plano intelectual, quanto no nível pessoal, pois, ali, ele conviveu com uma realidade miserável que só conhecia indiretamente.
Essa tomada de consciência não lhe diminuiu a irreverência e a fina ironia, mas acrescentou densidade em suas críticas à Religião e aos Políticos, já que o sórdido resultado das práticas de ambos esteve-lhe ao alcance das mãos. Ele pôde, então, experimentar diretamente o horror que a ignorância e a miséria causam aos homens explorados.
Assim, imbuído de uma visão realista do mundo, tão logo deixou a prisão, em 1718, escreveu suas obras com a gana de quem se utiliza do talento que possui para reverter as injustiças do mundo e promover uma vida mais digna a todos.

Édipo
 
Sua primeira obra formal foi a peça teatral intitulada Édipo; uma tragédia que bateu todos os recordes de público nas quarenta e cinco noites em que esteve em cartaz. Seu enredo básico constituía-se em reflexões e questionamentos sobre as incongruências sociais e teológicas, seguindo o cenário da Grécia clássica.
Fiel ao seu estilo, o texto não poupava o clero, como, por exemplo, nos seguintes trechos:

“Nossos padres não são o que pensam os (homens) simples. (...) Sua erudição nada mais é do que a nossa credulidade”.

(na voz da personagem Araspe):

“Confiemos em nós mesmos, vejamos tudo com os nossos próprios olhos; que sejam estes os nossos oráculos, nossos trípodes e nossos deuses”.

Esse trabalho, além de prestigio, rendeu-lhe uma boa recompensa financeira que ele investiu com sabedoria, o que é raro entre intelectuais. E essa boa gestão financeira acompanhou-lhe durante toda a vida, permitindo-lhe conforto material até nos momentos atribulados que se sucederam com razoável frequência em sua carreira e em sua vida pessoal. Tornou-se, aliás, proverbial a sua sagacidade nas finanças, como na ocasião em que se aproveitou de um descuido nas regras da loteria, comprou todos os bilhetes e ganhou um prêmio muito superior ao valor que investiu.
Porém, o enriquecimento não o tornou mesquinho nem indiferente ao sofrimento alheio. Ao contrário, ele sempre foi pródigo em auxiliar os que necessitados, prática que lhe angariou várias e sinceras amizades e gratidões até o fim da vida.
 
Artemire

Nessa sua segunda peça teatral, o sucesso não se repetiu e ele se ressentiu enormemente pelo fracasso, pois sempre foi muito sensível e carente da aprovação de terceiros. Ademais, nessa ocasião, ele foi acometido por um grave ataque de varíola. Foram tempos difíceis, mas quando a bonança chegou, ele pôde constatar que o sucesso anterior ainda lhe dava o crédito necessário para ver-se consagrado como grande dramaturgo. E como a modéstia não era uma de suas virtudes, não perdia ocasião para jactar-se de ter elevado a poesia ao centro da ribalta.
Sua presença destacava-se no meio social, sendo a sua companhia disputadíssima nas festas da nobreza. E como esse convívio com as elites refinara-lhe os modos, o prazer de sua convivência, na maioria dos casos, era genuíno.
Assim, durante anos ele brilhou nos salões, mas sem fazer qualquer concessão artística. E a sua intransigência, ou a sua integridade, acabou fazendo com que alguns dos atingidos, passassem a diminuí-lo pelo fato de ele não ser de origem fidalga.
Em uma dessas ocasiões, ele participava de um jantar no Palácio do Duque de Sully, que, após uma de suas as arengas características, indagou: “quem é o moço que fala tão alto?”. Sem hesitar ele respondeu: “Senhor, ele é alguém que não tem um grande nome, mas (que) angaria respeito pelo nome que tem”.
Responder ao “Cavaleiro de Rohan” já era considerado uma impertinência e como a resposta foi naquele tom e com aquelas palavras, soou com uma “blasfêmia” que deveria ser severamente punida. Assim, logo após, o Duque mandou que seus capangas o emboscassem e lhe surrassem, mas, preservando a sua cabeça, pois, em suas palavras: “alguma coisa boa pode sair dali”.
No dia seguinte à surra, do alto de sua indignação, ele foi ao camarote do Duque, no teatro, e o desafiou para um duelo, alegando que a sua honra fora atingida. Em seguida recolheu-se à casa e treinou obsessivamente com o florete com o qual pretendia vingar-se.
Mas o Duque não estava disposto a tal embate e apelou para um primo seu que era Ministro da Polícia. Imediatamente, o Ministro decretou a prisão do erudito e com isso ele viu novamente “o interior da Bastilha”.
Poucos dias depois, foi-lhe oferecida a opção de seguir para o exílio na Inglaterra, ao invés de cumprir o restante de sua pena atrás das grades e ele aceitou, já planejando ludibriar a justiça e permanecer na França. Porém, seu intento foi descoberto e ante a ameaça de voltar para a cadeia, resignou-se em permanecer em Londres por três anos (1726 – 1729) onde escreveu uma de suas obras mais importantes, como veremos na sequência.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, inverno de 2014.