Impulsos reprimidos
Ler Êxtase (Bliss) de Katherine Mansfield, é uma boa oportunidade de visualizar o embate entre desejos latentes e convenções sociais que oprimem um indivíduo, impedindo-o de se realizar plenamente.
Basicamente, a história é muito simples: Bertha Young, mulher na plenitude dos seus 30 anos, bem-casada, em boa situação financeira, vai receber amigos para um jantar. Entre eles, Pearl Fulton, mulher lânguida e misteriosa, por quem se sente estranhamente fascinada. Neste dia, Bertha está em inexplicável estado de êxtase. Considera-se tão feliz, que se acha absurda. Porém, devagar, vamos vendo que sua vida aparentemente perfeita não é tão satisfatória. Embora seja uma mulher adulta, ela é imatura, ingênua, não sabe lidar com a emoção intensa que se apodera dela e vive presa a restrições que são obstáculos à manifestação dos seus desejos mais íntimos e ao desenvolvimento da sua personalidade.No seu êxtase, ela está cheia de ternura por sua filha bebê, da qual não pode se aproximar porque, segundo as regras sociais, os filhos deviam ser cuidados pelas babás.
Um elemento interessante é a pereira no jardim. Neste dia, ela está florescente, não um botão ou flor caída. Todas as flores estão abertas. As peras têm o formato de úteros, sendo símbolo da feminilidade. A pereira em todo o seu viço simboliza a própria Bertha, que está com toda a sua sexualidade em flor, desabrochando. Entretanto, por ser despreparada, ela fica angustiada, tensa.
O desespero de Bertha é uma crítica da autora à educação imposta às mulheres na época. Através da personagem, Mansfield quis denunciar o sistema patriarcal que criava as mulheres apenas para casar e se submeter aos maridos e às regras hipócritas de convívio social. Como as mulheres eram educadas não para cuidar de si mesmas, mas para entregar suas vidas a um homem, elas não desenvolviam suas autonomias nem seus potenciais. Bertha, apesar dos 30 anos, é um ser infantil. Sendo infantilizada, ela é artificial, não é, realmente, uma mulher, pois não dirige sua vida, deixa-se conduzir cegamente, sem questionar ou se impor.
Ao avaliar sua vida, pensa na sua bela casa, situação estável, nos amigos, eventos de que participa e conclui que tem uma boa vida. Vê-se logo que ela evita refletir sobre suas necessidades mais profundas e tem medo de se encarar e se descobrir.
Mais tarde, quando estão jantando e recebem Pearl, Bertha se percebe desejando-a com ardor. Pearl é muito loura e se vestiu toda de branco, numa alusão direta às flores da pereira. Ao mesmo tempo em que se vê desejando Pearl, Bertha deseja o marido, com quem vive uma relação desprovida de paixão. O casamento de ambos é uma farsa.
Outros fatores mostram a insatisfação de Bertha, a mentira que é sua vida e o artificialismo em que está envolvida: o piano que ninguém toca, representando seu desejo sexual nunca saciado, a aparente má-vontade de seu marido para com Bertha, os gatos que se movem sorrateiros no quintal, querendo dizer que algo se move às escondidas.
No fim do conto, Bertha desvenda a verdade: Pearl e seu marido são amantes. A verdade lhe é dita brutalmente, causando-lhe perplexidade e indecisão. Bertha percebe que não vive de verdade, apenas atua, como uma marionete num palco. Está casada sem amor, reprime sua sexualidade e suas carências para satisfazer ao mundo de aparências em que vive e, sob o exterior adulto, não passa de uma menina frágil e vacilante.
Não que isso seja sua culpa. A culpa é era do machismo, que condenava as mulheres a um único destino: casar e ser esposas. Lendo Êxtase, concluímos que tal educação mutilava a individualidade, a força criativa e a confiança das mulheres, não lhes permitindo crescer como seres humanos, com aspirações pessoais e sociais, obrigando-as a corresponder a um padrão de comportamento e impedindo-as de viver com sinceridade sentimentos e emoções, fazendo-as negar suas personalidades.
Talvez, ao optar por um final aberto, Mansfield quisesse dizer que, assim como o destino final de Bertha dependerá de sua atitude, cabe a cada mulher decidir sua história. Bertha pode optar por continuar um ser passivo, exercendo tranquilamente seu papel de marionete, ou romper com os grilhões de hipocrisia que a escravizam. Portanto, as mulheres poderiam decidir se rebelar contra os padrões machistas ou não, submetendo-se a uma eterna servidão e renegando sua capacidade de começar uma mudança crucial nas suas existências. Toda pessoa, ao resolver se rebelar, começa a dar fim a um ciclo.