Tentativas inacabadas de narrar
Tentativas inacabadas de narrar
Eliane Accioly, março, 2014
Podemos perguntar: o que é a Arte? O que seria fazer Arte? E como seria receber a Arte?
(3° pergunta) _ Começando pela última pergunta _ temos o artista que criou a obra de arte, o objeto de arte, e o espectador. Três termos em relações no campo transicional, no qual o objetivamente percebido, poderá tornar-se subjetivamente concebido. Vir-a-ser. (Winnicott). O objeto de arte estará entre seu criador, e o receptor. Com sorte uma forma de percepção expressiva pode vir-a-ser para o expectador, o que o fará sentir que cria o mundo, como o bebê o seio. O paradoxo que não pode ser perguntado, pois, não é para ser respondido. Paradoxos são para conviver.
(3° pergunta) _ Evocando Imagem:
Proponho a metáfora-imagem de uma sala de concertos _ OSEP, Teatro Municipal, o antigo Cultura Artística, Outros. Fomos assistir o concerto de Igor Stravinsky, música sacra, de seus tempos posteriores. No conjunto da apresentação escutamos o Requiem Canticles. O compositor tornou-se mais exigente (ele fora sua vida inteira muito exigente com seu trabalho, e assim, com ele mesmo). Stravinski foi enxugando sua composição, e segundo suas próprias palavras, reduzindo sua técnica composicional até os ossos e tendões. Réquiem de Bolso, duração de 15 minutos, sua última composição, aos 84 anos. Sua morte 5 anos depois. Após os 70 preocupações em refletir da morte, ironicamente constatava sua perda de vitalidade. Réquiem de Bolso foi tocado em seu enterro.
(3° pergunta) Evocando Imagem: Em uma sala de concertos há o espaço do público, e o espaço dos músicos. O público é avisado mediante três chamados, como que trombetas. No terceiro sinal os músicos começam a entrar no palco. Os instrumentos mais pesados lá se encontram a espera: contrabaixos, o piano, o órgão, a arpa, e quando há a bateria. Outros. Os violinistas entram com seus violinos, e o último a entrar é o 1° Violino. O Coro entra. Por último o Maestro e os tenores. Foi assim no dia em que descrevo para vocês. Não havia bateria, claro. (Aqui as 3 perguntas se misturam).
(2° pergunta) Pintar é da ordem da imagem que evocamos. Na imagem, pintor seria o maestro. A tela o palco. O pintor precisa de rigor poético _ como o rigor ao qual nos referimos em Stravinski. O pintor e as cenas invisíveis encontram-se na tela em branco. Os músicos convidados pelo maestro vão aparecendo. Cada pincelada, cada cor, cada forma ou ausência de forma seriam os personagens convidados. Alguns personagens surgem, e a tela conta: essa cor, ou essa forma não é desejável aqui neste contexto, no contexto desse espetáculo. Aqueles não convidados para a composição, poderiam vir-a-ser apagados ou desconstruídos apagados/desconstruídos pelo maestro. Embora as pegadas dos acontecimentos sejam importantes, e permaneçam na tessitura da tela. A pintura é camadas sobre camadas, criação de temporalidade na tela. Segundo Sergio Fingermann, trata-se de tentativas fracassadas de narrar.
(1° pergunta) _ A palavra é o material plástico do poeta, e também o material do analista. A palavra, no entanto, é o material de todas as artes. Se o pintor tem suas tintas, pincéis e outros materiais plásticos, e se a ilusão primária da pintura é o espaço-tempo, que a tela lhe apresenta, a palavra poética atravessa o pintor e a pintura. Simplesmente porque seres da palavra (e da linguagem) na precisão de nomear as coisas. Certamente mais complexo que isso...
Na arte o mundo é recém-nascido, em perene vir-a-ser. Assim, saímos neste mundo ainda sem palavras perguntando: é rio? pedra? e aquela coisa estranha e brilhante é o que? Alguém diria _ neve? É mais ou menos assim que começa o livro de Gabriel Garcia Marques, “Cem anos de solidão”.
A palavra poética não é a língua. Nem a linguagem. A fala seria da ordem da vocalidade, ou seja, da voz humana (Paul Zunthor).
(1° pergunta)_ Compreendo a arte como uma forma de percepção e de consciência expressiva, apresentativa. Outras formas apresentativas são os sonhos, os mitos, as religiões, a escuta analítica, a sessão analítica, outras. (Susanne Langer). (1° pergunta) _ As formas apresentativas são criadas por procedimento estético, ou seja, para elas não há referências fora do contexto, elas são significadas pelo contexto que as apresenta.
(1° pergunta) Essas leis são poderosas no sentido de criar uma obra de arte. Mas elas regem apenas o contexto de uma tela, ou de um poema. Ou o contexto maior da obra de um artista. E por incrível que seja, o contexto de uma sessão. O acima: as leis servem ao contexto _ não é pouco, mas ao contrário de dominar o mundo com sua arte, o artista renuncia ao mundo, renuncia a ele mesmo, pois, não tem ele a precisão de se entregar à arte? Ao mesmo tempo, o contexto de uma sessão, por exemplo, se desdobra em outros contextos, criados pelo paciente, em sua vida, em suas concepções criadas na escuta analítica, no contexto de outras sessões...nas mil e uma histórias vividas, contadas.
O conceito da percepção-orgânico-estética começou, então, a me rondar e interessar particularmente. Da psicanálise me chegou lendo Gilberto Safra. Da pintura, através das aulas com Sergio Fingermann.
(Item 4° _ O que é Arte e psicanálise) Em “A face estética do self”, Gilberto Safra revela a analogia do orgânico não material, com o organismo vivo. Para ele as vivências e percepções humanas são vivas, têm vida própria, no sentido virtual, imanente, e transcendente. Cada elemento da composição possui singularidade, o que o torna indispensável ao contexto da composição. (É assim na constituição do sonho, na fala e na escrita ideogramática, e no procedimento estético que é o poema).
Gilberto cita as formulações do russo Solovyov (1878) sobre “organismo”:
“Não há fundamentos para limitar o conceito de organismo somente aos organismos materiais. (...) nós chamamos de organismo qualquer coisa que seja composta de uma multiplicidade de elementos que são absolutamente imprescindíveis e necessários para o todo, e uns para os outros; pois cada um desses elementos tem seu conteúdo determinado e, consequentemente, sua significação particular em relação a todos os outros elementos.” Safra: pag 25
As concepções de Solovyov, me parece, podem ter influenciado Kandinski, o pintor russo que buscou criar uma poética da arte de pintar. Kandinski pintor, professor de pintura, pensador, deixou textos escritos. Fingerman conta, é de Kandinski o conceito de transcendência para a pintura,
e para a arte em geral. Ou seja, o conceito do sagrado não religioso.
Na arte a intuição é dom, mas sozinha ela devaneia... A intuição nos leva à arte. E fazendo arte, entregamos a intuição ao comando da consciência. O método de trabalho, ou procedimento estético é único. Cada artista desenvolverá o seu na duração de seu processo. E a duração do processo é o vir-a-ser conjunto da obra de um artista, as diferenças no contexto do estilo.
Mark Rothko trabalha com cores, mais do que formas/ou e desenhos. Não se trata em Rothko de pintar paredes, uma brincadeira entre colegas... Rothko cria com as cores camadas sobre camadas, entremeaduras, tessituras, e através dos entremeios pode-se ver o interior do interior, sem nunca ter fim. Ou seja, ver o que não vemos. Sergio chama as pinceladas do(s) artista(s) de narrativas fracassadas de narrar. Kandinki, por seu lado, usa formas/desenhos no seu método de transcender. E por aí vamos adentrando no desconhecido que podemos conhecer. Um pouco.
As perguntas no texto são insidiosas, não podem ser respondidas. Elas foram, entretanto, os arautos norteadores para a criação de uma cartografia possível ao nos locomovermos nas cidades desconhecidas do fazer arte, psicanálise e vida, estrangeiros que somos. (Pierre Fèdida)
O procedimento estético é a estrutura não discursiva, que permite ao artista o suporte de suas escolhas do método, e da consciência conquistada passo a passo. Assim, segundo Sergio Fingermann, a arte não é expressão, é consciência do artista. (31 de março de 2014 _ 24° h).