RUAS, AVENIDAS E VIADUTOS

Aí disseram que tudo aquilo passava. Esperei, esperei, mas não passou.

Os dias não cessaram seu curso, o tempo avançou e sem que eu percebesse. Já havia se passado 20 anos!

E continuavam dizendo que tudo aquilo passava.

Outras gerações se formaram, novos sonhos, novas decepções, mas tudo continuava sem alteração.

E veio a jovem urbe com seus cânticos e hinos. De mãos erguidas anunciavam novos tempos.

Pega de surpresa, porém, não tão surpresa assim, a rua, e depois avenidas e viadutos, foram tomando formas humanas.

Emissoras de rádio e TV, tomadas de assombro e famintas por furos,

escalaram seus melhores repórteres. Editorialistas dos mais renomados

foram contratados por polpudos salários.

O silêncio, que há tempos imperava sem grandes queixas, não suportou; e o vaso se quebrou.

Ruas, avenidas e viadutos perderam sua função. O trânsito, que antes congestionava a acidade, tornou-se apenas esparsa lembrança. A companhia de trânsito cedeu seus funcionários para outras repartições. Diretores indicados foram dispensados. E empreiteiros corruptos decretaram falência.

Ai disseram que tudo aquilo passava. Que não duraria um mês. Esperei, esperei, mas não passou.

A névoa que encobrira minhas esperanças por mais de 20 anos, refugiou-se num canto qualquer de minha existência. Senti a brisa da liberdade como se fosse um adolescente que fuma seu primeiro cigarro, ou que descobre no beijo sensações antes ignoradas. Não podia esperar, 20 anos haviam se passado. A meus olhos algo de estranho e novo estava acontecendo. Eu estava feliz!

Repetiram que tudo aquilo não duraria dois meses. Esperei, esperei, mas não passou.

Emissoras de rádio e TV, obcecadas por novos furos, transferiram suas equipes técnicos para as ruas. Estúdios foram montados, mais comentaristas foram contratados por polpudos salários.

As universidades suspenderam suas aulas. Mesas redondas, com as mais variadas opiniões, foram se tornando parte da arquitetura. Não havia um professor sequer disposto a cumprir o calendário; não havia professores. Todos estavam compondo ou organizando mesas redondas.

A cidade, antes cinza e tomada por carros, transformou-se num gigante palco colorido. Ela era de todos e para todos.

Tornaram a repetir que não duraria três meses, que tudo ia passar.

Esperei, esperei, mas não passou.

A órfão, antes triste e chorosa, encontrou seu primo na avenida, que naquela altura, ninguém mais sabia o nome. Saíram e se misturaram naquela massa de gente que avançava.

Emissoras de rádio e TV, enlouquecidas por mais furos, contrataram mais técnicos e mais comentaristas. Os polpudos salários saltavam em centenas de milhares.

A prostituta que só saia à noite em busca de clientes, se juntou à multidão. Não faturava mais nada com seus préstimos amorosos. Executivos com seus carrões não a procuravam mais, porém, misturada à avalanche de gente, repetia para cada um a seu lado, que em toda sua vida não sentia tanto prazer. Demonstrando incontida alegria, dançava, vez ou outra, de braços abertos como se quisesse abraçar o mundo. Sua alegria, aliada a sua irreverente beleza, atraía a atenção de jovens e velhos. E já não era mais somente ela que dançava com seus braços abertos; um mar de bailarinos improvisados tomou as ruas e bailavam numa sincronia que impressionava. Tudo observado por emissoras de rádio e TV, que, não satisfeitas com os índices de audiência, contratou dançarinas e coreógrafos profissionais para ensinar novas danças. E também, por polpudos cachês, artistas se misturaram à multidão.

E houve que dissesse que aquilo tudo não duraria mais uma semana.

Esperei, esperei, mas não acabou.

Inebriado com o que estava acontecendo, já não mais importava por quanto tempo durasse. Não importava que havia passados 20 anos, não importava que eu parecesse um adolescente extasiado com a descoberta de sensações que um beijo pode causar. Não. Nada mais importava. Eu sabia que sensações iguais aquela nunca mais experimentaria. Sabia que o tempo não volta. Sabia que cada um que ali estava compartilhava aquele momento como se fosse o último da sua existência.

Um menino, descalço e com frio, juntou à multidão. Atônico com o que via, não dizia uma palavra; tremia. Seus tristes olhos denunciavam anos de privação.

Um pai, que trazia à mão uma sacola com uma caixa de tênis, presenteou o menino dando-lhe pacote que era para seu filho. O menino agradeceu.

Surpreendido por um garoto que lhe entregara uma de suas blusas, o menino vestiu e agradeceu o presente. Sem saber de quem teria vindo, chegou as suas mãos, um conjunto de moleton. Agradeceu com um estrondoso "Obrigado!".

Emissoras de rádio e TV, ensandecidas por furos, correram para perto do menino. Um famoso locutor foi contrato para narrar a história daquele menino. Seu salário não foi divulgado, mas, a considerar de quem se tratava, especulou-se que a soma passava de milhão.

E, ainda, havia quem dissesse que tudo aquilo não demoraria muito. Que aquilo era um breve fenômeno sem significado que pudesse dizer o que era.

Esperei, esperei, mas não acabou.

Aquele momento continua vivo e latente nos corações de quem viveu; só está sendo maturado para se quebrar novamente o vaso.

Posso não estar vivo quando isso acontecer, mas sei que, ao contrário do especialistas dizem, fenômenos assim não são sem significado. Eles trazem algo que, às vezes pode até não estar à mostra, mas, quem deles compartilha, sabe que o alvoroço que causa, fica para sempre na memória.