Spinoza e o Panteísmo - Parte III -
A expulsão da comunidade
 
O primeiro dos vários preços que o indivíduo dotado de inteligência tem de pagar é o de viver em permanente confronto com a versão imposta – e aceita pela maioria – aos assuntos políticos, religiosos, filosóficos e outros semelhantes.
Para o homem de intelecto mediano é fácil acreditar naquilo que outrem diz ser “a verdade”, “o bom” etc., mas o mesmo não se repete com quem possui mais luzes, já que ele sempre acrescenta dúvidas pertinentes e revelações de erros crassos ao que é imposto pelas Classes dominantes, nos diversos setores. Ao indivíduo de gênio, não basta a opinião alheia, pois ele necessita chegar à “sua” verdade.
É, com efeito, um alto custo, pois, além de viver em permanente conflito, o indivíduo genial deixa de gozar do consolo e da esperança que as falsas “verdades” ofertam aos homens comuns. Ademais, ele tem que conviver com a hostilidade da maioria boçal, que não hesita em insultá-lo diretamente, taxando-o de insolente, arrogante; ou indiretamente através de zombarias primárias que buscam ridicularizar a sua sapiência. E não é raro que até o excluam de seu meio social.
Se esses obstáculos, nos dias atuais, não acarretam maiores danos ao sujeito genial, exceto pelo desconforto de ser julgado pelos inferiores e, claro, equivocadamente; em épocas passadas, a descrença ou a divergência com os dogmas, que alguns próceres se atreveram a declarar, causou-lhes graves consequências como a prisão, o exílio, a expulsão das comunidades e até mortes horrorosas nas fogueiras católicas da Santa Inquisição, nos apedrejamentos islâmicos ou nos sombrios calabouços, fuzilamentos e guilhotinas dos déspotas governantes, dentro os quais os recentes tiranos stalinistas, fascistas e nazistas.
Assim sendo, não causa surpresa que a genialidade de Spinoza tenha sido punida pela “ousadia” de ter se insurgido contra a ortodoxia da religião.
Embora aparentasse ser um homem sereno, sabe-se que Baruch se contorcia intimamente frente a tantas incongruências, improbabilidades e até falsidades que existiam na prática religiosa e social de sua comuna. Um funesto conjunto de superstições, boçalidades, fanatismos e quejandos. E esse cesto de absurdos agastou-lhe de tal forma que a partir de certo momento ele não pôde se conter e iniciou uma série de discursos que contestavam aquela gama de impropriedades e hipocrisias.
O impacto de suas perorações não tardou a surtir efeito e ante o risco de que pudessem fomentar em larga escala o questionamento e a incredulidade entre os ouvintes, os velhos Rabinos convocaram-no para lhe repreender, sendo, contudo, debalde qualquer tentativa, haja vista que ele derrubava com espantosa facilidade os argumentos que lhe eram colocados. Aturdidos e frustrados, os Doutores da Sinagoga propuseram-lhe, então, uma substancial ajuda financeira anual para que ele ao menos fingisse ser crédulo aos seus ensinamentos, mas novamente a tentativa fracassou e ante a inflexibilidade e honestidade do filósofo, decidiram excluí-lo da Comunidade Judaica, conforme decreto de 27 de Julho de 1656, emitido pelo Conselho Eclesiástico, a ser cumprido em consonância com o antigo ritual, que Van Vloten descreveu do seguinte modo:

“Os chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber que, já bem convencidos das nocivas opiniões e atos de Baruch Spinoza, procuraram, de diversas maneiras e por várias promessas, desviá-lo de seus caminhos desastrosos. Tendo em vista, porém, que não conseguiram fazê-lo adotar qualquer maneira melhor de pensar; que, pelo contrário, a cada dia tem mais provas das horríveis heresias por ele nutridas e confessadas, e da insolência com que essas heresias são promulgadas e difundidas, com muitas pessoas merecedoras de crédito tendo testemunhado isso na presença do citado Spinoza, este foi considerado plenamente culpado das mesmas. Por isso, realizada uma revisão de toda a questão perante os chefes do Conselho Eclesiástico, ficou resolvido, com a concordância dos Conselheiros, anatematizar o referido Spinoza, isolá-lo do povo de Israel e, a partir do presente momento, colocá-lo em anátema com a seguinte maldição:
Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com a concordância de toda a sacra comunidade, na presença dos livros sagrados com os 613 preceitos neles contidos, pronunciando contra ele a maldição com a qual Elisha* amaldiçoou as crianças e todas as maldiçoes escritas no Livro da Lei. Que ele seja maldito durante o dia, e maldito à noite; que seja maldito deitado, e maldito ao se levantar; maldito ao sair, e maldito ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou o reconheça; que a ira e a indignação do Senhor queimem daqui por diante contra esse homem, carreguem-no de todas as maldições escritas no Livro da Lei e apaguem seu nome sob o céu; que o Senhor o afaste de todas as tribos de Israel, coloque sobre ele todas as maldiçoes do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que fordes obedientes ao Senhor vosso Deus sejais salvos nesta data.
Ficam, portanto, todos advertidos de que ninguém deverá conversar com ele, ninguém deverá comunicar-se com ele por escrito; que ninguém lhe preste qualquer serviço, ninguém resida sob o mesmo teto que ele, ninguém se aproxime dele mais de quatro côvados e que ninguém leia qualquer documento ditado pó ele ou escrito por sua mão. (...) durante a leitura do castigo, ouvia-se de vez em quando a lamurienta e demorada nota de uma grande trompa; as luzes, vistas brilhando forte no inicio da cerimônia foram extintas uma a uma à medida que ela prosseguia, até que no final a última se apagou – típica da extinção da vida espiritual do homem excomungado – e a congregação ficou em completa escuridão”.


Observa-se no texto acima a citação à “maldição de Elisha” que consta no Antigo Testamento cristão ou Torá israelita. Será oportuna uma palavra sobre a mesma para bem ilustrar sobre o quê Spinoza se rebelou:

“Elisha (ou Elias), certo dia, percebeu que um grupo de crianças ria e zombava de sua calva. Irritado, ele as amaldiçoou e clamou pela ajuda divina, que se materializou sob a forma de um urso selvagem que devorou os pequenos”.

É claro que os textos bíblicos não devem ser interpretados literalmente, pois são essencialmente simbólicos, mas esse simbolismo não era explicado pelos Rabinos que preferiam manter a versão literal para que com isso pudessem aterrorizar as pessoas ignorantes, tornando-as mais dóceis ao seu jugo. Comportamento, aliás, que ainda hoje é utilizado em várias ocasiões por pastores, padres, rabinos e outros.
Era, pois, precisamente contra essa manipulação sórdida e covarde que se rebelou o filósofo e não contra a religião em si.
Mas os Rabinos que o julgaram não consideravam que agiam errados, pois argumentavam que sem uma pátria, um idioma comum, a única coisa que mantinha os laços entre os judeus era a sua Religião e, portanto, qualquer um pudesse representar a mais tênue ameaça contra ela deveria ser expurgado imediatamente. Além disso, argumentavam que as perorações de Spinoza não atingiam apenas ao Judaísmo, mas também ao Cristianismo e isso poderia indispor os generosos holandeses contra a comunidade. Como explicar-lhes as ponderações de Uriel Costa e, depois, as de Baruch Spinoza que propunham abertamente teses que lançavam dúvidas sobre uma Crença que havia custado guerras e outras tantas dificuldades?
Aqui, sem a intenção de advogar ao diabo, será preciso dar-lhes algum crédito, pois como se viu e como é sabido, a hostilidade contra os hebreus era quase que geral e seria uma temeridade perder o único porto que lhes oferecera algum abrigo.
Porém, a marcha do pensamento não pode ser interrompida e dessa sorte Spinoza deixou de pertencer a um só povo e se tornou um patrimônio intelectual de toda a humanidade. Um gênio a serviço da verdade, como bem demonstrarão os próximos capítulos.

Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP., do Rio de Janeiro em Junho de 2014.