O APROVEITADOR

Da paquidérmica espécime diluída em Homem, eis, que despossuído de mínimas razões para se indispor contra aqueles que se alimentam do sangue alheio, surge o mais abjeto dos seres: o aproveitador.

Ele é aquele que nada faz senão em benefício próprio. Vive sua mesquinha existência sem conexão com a vida coletiva, e por isso se comporta como se fosse um solitário numa solitária ilha no oceano da existência.

Existem muitos deles. Eles se renovam como se a disputa que a vida nos impõe, fosse ela, tão somente um campo de batalha. Porém, mesmo assim, se comprazem escondidos nas trincheiras. São covardes e viram condecorados senhores; enquanto, lá na campina, o cheiro doce do sangue e partes espalhadas, do que um dia fora gente, putrefazem e saciam os urubus. Não se envolvem, e mais ainda, como os urubus, esperam a oportunidade para se empanturrarem do cadáver. Esse é seu habitat.

O aproveitador é, em essência, um dissimulado. Nunca se deixa levar por paixões, e menos ainda, por algum, senso de ética, mínimo que seja. Ele não tem peso de consciência nem, tampouco, nenhum lampejo de remorso. Ele é impassível diante do sofrimento alheio. Nada lhe atrai mais do que a possibilidade de se dar bem.

Sempre à espreita, não titubeia. É comparável ao macaco, no que tange à agilidade de imiscuir nos mais inacessíveis lugares. Com impressionante desenvoltura e alheio ao que se passa a seu lado, o aproveitador age possuído de uma única certeza: a desatenção da sua vítima.

Essa espécime diluída em Homem, é tão desprezível que quem com ele se depara merece cuidados. Na maioria das vezes é agradável e simpático ao primeiro contato. Possui certa fluidez corporal e seu vocabulário, senão primoroso, nunca está aquém da média do círculo que atua. Ademais, de gosto "refinado" insere-se com relativa facilidade nas altas rodas.

A considerar sua índole camaleônica, é requisitado tão logo se nota sua ausência, pois, conhecedor da fraqueza humana, não vacila em ter sempre à boca uma palavra agradável. Sabe que, ao contrário de mostrar-se convicto em suas posições, não as apresenta com receio de não ser o consenso do grupo. Assim, compará-lo ao aspecto do animal que consegue fazer-se imperceptível a seu predador, o aproveitador, como tal, se adapta ao meio social. Difere do animal num único aspecto: o animal se iguala ao meio para proteger-se, enquanto o aproveitador o faz para dar o bote.

A indiferença com que demonstra ao sofrimento alheio, faz do aproveitador um ser em tudo frio. Porém, sua frieza não decorre de falta de sentimento; não é insensível por alguma patologia que o caracteriza. Essa frieza decorre de uma estratégia para que seu plano funcione, ou seja, o aproveitador age movido por um cálculo ardilosamente elaborado. E a distração da sua vítima, para ele, é o elemento fundamental para que a somatória do plano, e seu sucesso, lhe rendam saldos positivos.

Para este ser, em tudo abominável, pensar no lance seguinte, como um jogador cuidadoso e atento a cada movimento do seu "adversário", faz dele um personagem dotado de certa excepcionalidade se se considerar que o padrão médio da sociedade se configura de comportamentos pré-elaborados. Nesse sentido, o aproveitador se compararia ao "desvio". Porém, não se trata disso. O aproveitador surge como aquele execrável ser que não quer ser o oposto do padrão da sociedade (ele não pensa nesse termos). Mas, tão somente, em ser aquele que se dará bem; mesmo que para isso tenha que ludibriar uma velhinha cega e indefesa. Ele não tem escrúpulos.

Dotado de excepcional racionalidade, o aproveitador não se pauta por critérios que possam servir de parâmetros reconhecidos como aqueles esperados pelo conjunto da sociedade. Solidariedade, senso crítico, responsabilidade, ética, moral, enfim, nenhum dos pressupostos esperados para o bom convívio social, são encontrados no aproveitador. Todos lhe são caros e ignorados. Sua natureza não se coaduna com tais ideais.

Convicto da certeza de que ninguém possa lhe será obstáculo, o aproveitador, age provido e alimentado por duas ferramentas fundamentais que sem elas seu projeto de sucesso naufragaria na sua primeira incursão: a distração da sua vítima e a simpatia. Pode-se, até, afirmar que as duas, em separado, não lhe servem de nada, pois, ao conquistar sua vítima pela simpatia que ele desperta, a vítima se descuida, se distrai; é o momento de o aproveitador entrar em ação.

Essa abjeta personagem, por tudo que já se disse, e por muito do que se possa dizer, não está extinta. Ela sobrevive e se expande. Seu aspecto resiliente, lhe garante adaptar-se sem sobressaltos ao sinal de qualquer contra-tempo. Tão logo esse surja, o aproveitador, dotado dessa incrível capacidade, sabe que as coisas, por mais difíceis que sejam, não serão eternamente. Sabe que tempos tempestuosos tendem a encontrar seu eixo e as coisas vão se acomodando para que o horizonte comece a ser visto; como manchas de óleo no mar que procuram as margens para que o centro fique livre.