Arte e artifício
Dada a natureza da arte, volátil, flexível, mutável, conceitual... sequer os grandes especialistas chegaram a uma definição satisfatória do que ela é. Ademais, muitas coisas consideradas arte em determinada época ou cultura, podem não ser em cenário diverso.
Em dias antigos era filha do utilitarismo, e na maioria dos casos seus produtos nem eram considerados artísticos. Muitos feitos arquitetônicos, que olhamos como frutos de rebuscada arte eram vistos por outro prisma quando da execução. Uma escritura rupestre, por exemplo, lida agora será tida como arte. Em seu tempo era mera necessidade de expressão, comunicação de seu autor. Grafites há poucas décadas não passavam de pichações espúrias; hoje são veias artísticas. Um quadro surrealista visto por homens de antanho, possivelmente achassem inexpressivo, inútil, meros borrões.
O fato é que em meados da idade média a arte passou a assumir o conceito esteticista além do utilitário. Assim, a busca do belo, de usar o dom, a criatividade para comover, gerar sensações agradáveis via contemplação foi ampliando gradativamente o conceito.
Mas, o curso da arte é um eterno devir, como o rio de Heráclito, de modo que, não há como ser retratada de modo cabal. O que se pode é chegar a noções genéricas de seu ser, sempre aberto à possibilidade de outrem discordar de nossas noções.
Talvez seja mais prático definirmos o que ela não é, que seu ser tão vasto. Aí, chegamos ao artifício, que é a astúcia, engodo, engenho, o simulacro da arte. Não que o artifício não possa gerar grandes coisas; mas, falta-lhe a alma da arte.
Tomemos como exemplo o “Guinnes Book” o livro do recordes. Muitos figuram lá porque fizeram ao longo da vida coisas excelentes cujos resultados os tornam ímpares. Como os 1.283 gols de Pelé, a pontuação estupenda de Oscar Schimidt, etc... o talento, a excelência os colocou lá naturalmente.
Agora, imaginemos um grupo de estudantes que se reúne e decide bater o recorde de permanência dentro de uma piscina; via revezamento conseguem ficar dez dias ininterruptos nadando. Feito algo assim, terão seu nome no livro, mas, que valor tem isso? Tal arranjo está para a excelência de um atleta, como o artifício para a arte. Imita uma coisa grande, excelsa, feita com alma mesquinha, pequena. O fim deixa de ser a excelência profissional e passa à mera promoção pessoal.
A poesia, que só foi tida como arte tardiamente, hoje é multifacetada em sua possibilidade de formas. E a meu ver, conserva sua veia de arte quando a forma não sacrifica o teor. Imaginemos água correndo livremente como um regato qualquer, que, em determinado ponto sofre interferências; é canalizado para irrigação, consumo residencial, etc. Segue sendo água, sua essência não muda, embora, a forma do curso passe a ser condicionada.
Agora, a título de ilustração, façamos desse curso a inspiração, a alma da poesia. Pode correr solta segundo a veia do autor, ou, ser condicionada em “canos” de, versos, soneto, rondel, acróstico, trova, quadra, etc. a verdadeira arte passa por todos esses “canos” sem se poluir; digo, quem tem algo a dizer, e o dom para fazê-lo mediante a arte o faz, qualquer que seja a forma; claro que a forma tem lá sua beleza, mas, como acessório à arte não a própria.
Pois, essa também surge “espontânea” como os mil gols do Pelé. A arte desfila antes o conteúdo, e seu “modelito” usado no desfile acaba lançando moda. Quando alguém sente um desejo de notoriedade e em busca disso pensa, vou criar um estilo novo, deixa a arte e começa a confecção do artifício.
Mesmo um tautograma que é o “cano” mais estreito que conheço, ou, a forma que mais nos desafia a expressar de modo restrito uma ideia, ainda permite que a arte vá além de iniciar todas as palavras do mesmo modo.
Não pretendo ferir suscetibilidades, atingir ninguém; apenas, expor meu modo de entender a arte, sem pretensão de ser dono da verdade. Contudo, mesmo para quem possui o dom das letras latente, nem todo dia é sexta-feira; digo, nem sempre a inspiração está pulsando. Nessas horas damos um tempo esperando a água voltar. Afinal, só um louco tentaria mergulhar numa piscina vazia; e para evitar isso nem carecemos arte, apenas, enxergar.