ANTONIO MIR, UM NOVO MATAMOROS
Janeiro de 94, na mítica cidade de Santiago de Compostela, em plena Galícia, Antonio Mir expõe as obras de uma nova fase de sua carreira. Grandes telas, bem a gosto deste pintor de gestos amplos, de alma espanhola, de cores vibrantes e coloridas como jamais foram. Da técnica à temática tudo é novo para quem o conhece.
Conhecido pela pintura executada sobre chapas metálicas, ou trabalhadas com ácido numa técnica de gravador, onde a pintura era acessório, original pelo resultado, mas, sem dúvida com forte apelo artesanal, Mir parte para a pintura sobre tela, iniciada no Brasil, quando de sua última estada no ano passado. Entretanto em Múrcia, sua terra natal, encanta-se com a possibilidade de pintar a óleo usando tintas industriais, acredito que esmaltes automotivos, e esse novo material lhe traz resultados fantásticos. Estudando o caráter dessas tintas, sua viscosidade e contração diversa das tintas a óleo “próprias” para a arte, percebe que pode manipular os craquelados, as contrações que surgem dependendo da utilização do material e resolve sua pintura ora introduzindo rugosidades, texturas, linhas incisas, empastamentos, dando volume pelo próprio uso da película; ora apenas acariciando a tela, insinuando a forma, dando um caráter de pastel oleoso, de guache ralo, contrastando formas, sobrepondo e removendo superfícies.
Quanto à temática e ao resultado, quanta diferença! Mir reencontrou a pintura, se é que algum dia dela se afastou, mas digo reencontrou-a, porque utilizou seu vocabulário plástico, dentro de uma tradição de modernidade, que embora discutível não possa ser descartada. Sua linguagem é pictórica, a pintura como expressão dionisíaca do gesto, e dentro de uma tradição ligada à Escola Brasil, na linha palmilhada por Cildo Meirelles, Arthur Alípio de Barros e Ivald Granato, principalmente este último nas soluções de espaço. A visceralidade, a cor e a violência no gesto lembram também algo deste pintor, guardadas a distância de que Mir pinta sua terra, acima de tudo percebendo-se as raízes profundamente espanholas, o gosto pelas cores puras, também visíveis no Brasil quando Francesc Petit pinta sua adorada Catalunha. A limpeza da composição, a espacialidade e a síntese mostram também sua inserção no contexto europeu.
Na apresentação feita por Martin Paez Burruezo, diretor do centro de arte do Palácio Almunir de Múrcia, este enxerga Riveira e Siqueiros, Cícero Dias e Portinari. Permito-me discordar, porque é impossível reencontrar os muralistas mexicanos na obra de Mir, nada ali aponta para o muralismo, o nativismo e o decorativo mexicano. Portinari pode ser evocado em algumas telas como “Cactus de Múrcia” e “Paisagem do Mediterrâneo” pela saturação de cor, pelos amarelos violentos, pela composição com poucos elementos, que nos lembram meados da década de cinqüenta na obra do mestre Portinari. Também Di Cavalcanti poderia ser lembrado no desenho enxuto com que Mir resolve a “Cesta de Peixes”, embora repita, o tratamento é absolutamente original, aliás, maravilhoso compor uma natureza morta com peixes, com tamanha joie de vivre somente possível em terra espanhola onde não existe o preconceito temático, no Brasil supersticioso que fugiria do tema pelo azar: peixes mortos!Cícero Dias também pode ser evocado pela ingenuidade no tratamento das marinhas, mas nesse caso recordo também marinhas de José Antonio da Silva, o grande primitivo brasileiro. Quanto ao resto, nada há de ingênuo, pelo contrário, a ousadia das cores, a violência nos contrastes de violeta, azul de ultramar e amarelo são Emil Nolde, dentro de uma visão atual.
A meu ver existem pontos altos nesta exposição de 25 telas de grandes dimensões. É o caso da Cesta de Peixes já citada, das marinhas inspiradas no porto de Mazarrón extremamente bem resolvidas, com pinceladas largas verdes sobrepostas ao rochedo espatulado em ocre, e as pinceladas nervosas de branco formando as ondas da arrebentação. Noutra a construção vai de azul-cerúleo ao ultramar entremeado de vermelho e uma grande extensão do branco da espuma quebrando em primeiro plano, aplicada diretamente do tubo sobre a tela, o tubo extensão da mão dispensando o pincel.Nas flores, grandes vasos onde verdes, laranjas, vermelhos e azuis se confrontam com momentos de ousadia, noutros mais contidos vê-se a rapidez da execução e a decisão do traço. Em interiores com o título Janela, o espaço foi construído em linhas divergentes, contrariando a perspectiva clássica, opondo cores por natureza conflitantes e resolvendo de forma inusitada a banalidade do tema. Numa paisagem da Galícia, noturno que vai do verde oliva ao azul escuro aproxima-se da sensibilidade de Nicholas de Stäel preservando o calor latino e até brasileiro em toques de amarelo, verde e vermelho. Paisagem do Mediterrâneo, tela que é a chamada da exposição, composição de grande sobriedade, uma flor de dente-de-leão branca e uma folha verde-acinzentada sobre fundo amarelo é lição pela síntese e pelo contraste de faturas entre a flor densa e a folha quase transparente. Nas ânforas, duas se destacam, uma em tons de brique, diálogo entre duas ânforas que imediatamente nos lembram Massimo Campigli com sua herança etrusca, um quadro que remete à frase de Francisco Pablos sobre Mir : “ ânfora, insinuando erotismo, forma sugerida de mulher, curva macia, textura de epiderme que lateja, mais do que barro cozido no forno”. Noutra ânfora, esta em branco sobre marrom, Mir aproveitou a retração superficial da secagem da tinta industrial e com estilete sugeriu a mulher em gestos rápidos, lembrando Picasso na obra cerâmica em Vallauris, texturizou áreas, colocou a cor apenas onde era devida, no bojo da ânfora-mulher.
Diante desta mostra só posso esperar que Antonio Mir se consagre como um dos grandes de Espanha, que possa inspirado em Santiago de Compostela retomar o périplo do apóstolo, substituindo a espada do Matamoros pelo pincel, e deixando-nos um legado da matéria com que são feitos os sonhos.
Walter de Queiroz Guerreiro, Critico de Arte ( ABCA/AICA).