Thérèse

Thérèse

O leitor por certo já meditou acerca da multiplicidade de caminhos possíveis que a vida pode tomar. Cada vez que fazemos uma opção, abrimos uma infinidade de possibilidades. Uma escolha é uma bifurcação no nosso caminho e quando escolhemos uma, logo outras surgem progressivamente, formando uma ramificação quase infinita que só acaba quando morremos. É assim desde que nascemos. Incontáveis milhões de possibilidades. No entanto este é o que escolhemos. Esta é a vida que levamos e todas as opções que tomamos trouxeram-nos aqui. Ao momento em que escrevo estas palavras no meu caso, no caso do leitor, ao momento em que as lê.

Seria tão fácil as nossas vidas terem tomado um rumo diferente. Basta pensarmos um pouco nisso e logo encontramos uma série de pontos chave que teriam mudado irremediavelmente a nossa existência. Seguindo o que me parece o fio lógico deste pensamento realizamos que com os nossos progenitores passou-se o mesmo e questionamosas contingências extremas, a natureza acidental da nossa existência: e se eles nem se tivessem conhecido ou empatizado? Seria tão fácil! Um dia mau, um desencontro, um acidente...De facto, pensando bem nisso, o facto de existirmos é quase um milagre! A existência deste corpo que nos sustenta, com este aspecto e personalidade própria, era provavelmente uma hipótese entre milhões de milhões, ou biliões, triliões ou mais. Um grão de areia no extenso areal da praia das possibilidades.

Não vou continuar a alongar-me nesta introdução. Todo o ser pensante por certo já meditou sobre a imensidade de vias que poderia ter percorrido, as que percorreu e as que percorrerá. De resto, é tema de imensos livros e roteiros de filmes. Depois que me contaram a história que se segue, verídica, este gênero de reflexões tem assolado os meus pensamentos.

O meu bisavô partiu da aldeia aonde tinha vivido desde sempre, numa manhã de orvalho da Primavera de 1930. Destino: França. Antes, despediu-se da mulher, do filho mais velho, João, da filha Teresa, minha avó e narradora desta história, na altura apenas com 5 anos. O Toninho, que herdara o nome do pai, António, ainda dormia. Não valia a pena acordá-lo. Depois dos beijos, dos abraços, das lágrimas, a viagem até a fronteira com a Espanha.

Custava-lhe deixar a família, assim como a terra natal, e partir para o incerto, mas já não tinha outra opção. Portugal não oferecia estabilidade. A Primeira República tinha falhado completamente e a recém criada Ditadura Nacional ainda estava periclitante. Ele houvera assistido ao início da Revolução de 28 de Maio de 1926 em Braga. Teve oportunidade de ver a formação da coluna que partiria rumo a Lisboa e de ver o General Costa Gomes em pessoa. Pareceu-lhe um homem firme e autoritário nessa altura. Um bom homem para tomar as rédeas ao país. Mas o general já não estava no governo. E este caíra em descrédito. Talvez aquele moço que lá estava agora nas finanças, o Salazar, fizesse alguma coisa. O povo dizia que ele acabaria por governar, era esperto e, acima de tudo, que era um homem de Deus. Talvez, pensava, o melhor fosse voltar à monarquia. Mas depressa afastou todos estes pensamentos. Isso eram problemas para os das cidades.

Junto à fronteira encontrou-se com os homens encarregados de o levar a França, eufemismos à parte, os contrabandistas.Eram dois. Estavam também mais quatro homens, prestes, tal como ele, a tornarem-se clandestinos. Entregou o pagamento acordado de 80 escudos. Era uma quantia considerável para a época, o equivalente a dois meses de salário para o bisavô. Era também um tiro no escuro, não haviam garantias de chegarem a França e muito menos certezas de encontrar trabalho lá.

Esperaram as primeiras horas da madrugada e com um dos contrabandistas a guiar o caminho, transpuseram facilmente a fronteira e pisaram solo espanhol. Entraram no fundo de um camião de gado e daí seguiram até à fronteira com a França, todo o caminho sentados ou deitados no chão do camião, por entre os taipas e as vacas.

O camião parou no sopé dos Pirinéus, no lado espanhol. A travessia seria feita a pé. Era a parte mais perigosa. Assustava mais que os guardas de fronteira que patrulhavam a montanha. Ouvira as histórias terríveis acerca da travessia da montanha. Haviam mudanças súbitas das condições atmosféricas. Tempestades que se formavam de repente e quedas súbitas de temperatura. Atravessar a montanha na escuridão era perigoso e difícil. As entorses eram frequentes e o risco de cair numa ravina um perigo sempre presente. Muitos não aguentavam a caminhada e a subida íngreme. Quando alguém ficava exausto da subida, nem o guia nem o grupo retrocediam ou paravam. O homem que parasse ficava abandonado à sua sorte. Podia descansar e voltar para trás ou tentar alcançar novamente o grupo. Mas muitas vezes nunca mais se ouvia falar dos que paravam. Haviam ainda histórias de grupos inteiros que desapareciam.

Felizmente o infortúnio não quis nada com o meu bisavô nem com o pequeno grupo. A noite estava clara, o frio era perfeitamente suportável e os companheiros eram, tal como ele, homens do campo habituados a uma vida dura e em excelente forma física.

Já em França, ficaram um dia em Pau para recuperar as forças. No dia seguinte seguiram para Paris, desta vez confortavelmente instalados nas traseiras (vazias) de uma carrinha que até tinha um banco de madeira afixado aos taipais!

Um dos contrabandistas viajou com os portugueses no banco de trás. “Aqui posso esticar melhor as pernas e não vou tão apertado” foi mais ao menos o que ele disse por entre um grande sorriso. O nome dele era Uchoa e era Basco. Era bastante jovial e muito mais amigável que os outros dois, ainda mais agora que também estava aliviado por os Pirinéus estarem para trás. Esses Pirinéus que ele adorava, palco e cenário de muitas das insólitas histórias que ele contava e que os seus ouvintes mal percebiam embora se rissem sempre com satisfação, contagiados pelas gargalhadas do Basco. Haviam histórias de bebedeiras, de primas, de moças primeiro perseguidas depois resignadas, músicas, cantigas, quedas, histórias de amantes, mal-entendidos, confusões, festas de aldeia, brigas, valentias, cobardias, lobos, muitos lobos, intrigas, amores, mortes, nascimentos, alegrias e tristezas. Um retrato da Guernica onde ele morava e a qual amava, descrito o melhor que ele pôde mas suficientemente, pois os quilómetros galgados pelo camião até Paris foram muitos e muitas horas foram precisas. “Um dia estas fronteiras acabarão, toda a gente vai circular para onde quiser e eu perderei este trabalho. Mas acho muito bem. Quando passo os Pirinéus nunca sei quando deixo de estar em Espanha e passo a estar em França e vice versa. Além disso o País Basco está em Espanha e na França também. Estas fronteiras, pensando bem,são ilógicas, não as entendo, é o Homem que as cria. Mas faço delas o meu sustento”. Esta era a visão peculiar de um homem que defendia a abolição das fronteiras e acreditava que isso fosse possível na Europa, embora o seu ganha-pão dependesse da sua existência e ele se considerasse absolutamente nacionalista e desejasse mais que tudo a independência do País Basco. “Foi pena não termos passado em Guernica, temos as mulheres mais lindas do mundo, haviam de ver. Fica para a próxima.” dizia ele enquanto o camião parava numa rua de Paris. “Apareçam um dia em Guernica e perguntem por mim! Toda a gente lá conhece o Uchoa!” gritou ainda.

Pararam na Rua de Cadix mesmo em frente ao Café Marquês. Desceram do camião. O vidro no lugar do condutor abriu e ouviram em espanhol:

- Entrem ali - movimentou o queixo em direcção ao “Café do Marquês” - falem com o Victor. Se tiverem sorte ele arranja-vos trabalho. Hasta!

Os portugueses acenaram em despedida e o ruidoso motor voltou a trabalhar, iniciando logo depois os primeiros movimentos que levarão Uchoa no sentido inverso, em direcção a Guernica, do outro lado da fronteira. Até voltar a atravessá-la novamente, com outro grupo de clandestinos. Estranho modo de vida.

Não posso especificar bem o que aconteceu nos meses seguintes. A minha avó não se recorda do pai ter falado de algo em especial acerca desses tempos. O tal Victor practicamente só arranjava trabalhos de ocasião, desenrasques. Fazer mudanças numa casa num dia, descarregar camiões noutro, pintar casas para alguém que precise de trabalhos só para acabar uma obra no prazo, lavar pratos num restaurante a seguir. Às vezes nem havia trabalho. A vontade de regressar surgiu muitas vezes. O bisavô, que a partir daqui vou chamar António, que me perdoe ele onde estiver pelo atrevimento deste bisneto, não gostava da cidade. Receava-a, não confiava nela, sentia-se encolhido, minimizado. Uma tarde, uma dessas tardes sem trabalho, numa altura em que já estava quase decidido a regressar a Portugal, descia a Boulevard des Maréchaux pensativo, quando ouviu alguém chamar pelo seu nome. Ali, em pleno centro de Paris, estavam a chamar por ele!

Era o primo Mário. Já não via o primo Mário há mais de 5 anos. Julgava que ele estava em Lisboa a estudar. De facto tinha quase a certeza que essa era a convicção geral de toda a sua família. O Mário era mais novo alguns anos. António não o conhecia profundamente. Mas conhecia bastante bem os seus pais, boa gente, muito laboriosa. Sem ser filho de pais extremamente ricos, o Mário tivera acima de tudo a fortuna de ser filho único. Não era algo habitual no início do século XX, principalmente em meios rurais, mas proporcionou a Mário um começo de vida sem grandes sacríficos. Isso fez dele também um jovem mimado e prepotente. Um dia o Mário comunicou aos pais que queria seguir medicina. O sacrifício para poderem propocionar esta oportunidade ao filho foi imenso. Os pais então venderam um hectar de excelente terreno de cultivo, para o menino Mário andar na escola de Lisboa e tornar-se doutor.

O Mário, naturalmente, andou em Lisboa a estourar dinheiro em mulheres e vinho. E agora, ao invés de estar em Lisboa, aprendendo a anatomia humana, estudando os diferentes vírus e doenças ou as propriedades dos medicamentos, trabalhava esporadicamente, a lavar pratos ou a trabalhar numa fábrica a embalar peças. Esporadicamente, pois ainda tinha a mesada que a família lhe enviava. O Mário continuava a receber a mesada que a família lhe enviava e a fazê-los acreditar que estava em Lisboa. Como? Perguntará o leitor. Bem, o processo era muito simples. O Mário escrevia cartas para os pais. Colocava os envelopes com as cartas para os pais dentro de outro envelope, este com uma morada em Lisboa. Em Lisboa, uma cúmplice abria o envelope e tinha apenas que colocar um selo português no envelope que estava no interior e expedi-lo para o Minho. A mesada chegava a França da mesma forma, mas no sentido inverso. A cúmplice era uma prostituta que, segundo o Mário, “se tinha apaixonado por ele”. Está-se mesmo a ver que a tipa lhe ficava com uma parte da mesada.

Prosseguindo, quando o primo Mário recebia a mesada ou os rendimentos pelos seus trabalhos temporários, gastava logo tudo o que tinha ganho, nos dias seguintes, à grande e à francesa, sendo que o termo “á grande e à francesa” assenta que nem uma luva neste caso. Não houve prazer parisiense que o primo Mário não experimentou.

Não me vou alongar mais acerca do primo Mário. Não quero que o leitor perca o fio à meada ou se sature. E como tenciono manter-me nos limites do conto, começo a esticar-me demais. Finalizando, assim vivia o primo Mário em Paris e assim viveu enquanto teve meios e engenho. Como podem calcular, sendo por demais previsível pois acontece sempre nestes casos, poucos anos depois voltou para o Norte de Portugal, para a terra natal. O tio Mário foi ainda meu contemporâneo e ainda me recordo, em memórias enevoadas da infância, um pouco desse velho que acabou os dias na miséria. Só quando ouvi esta história é que soube que era meu parente.

- António! Eras a última pessoa que eu esperava ver aqui na magnífica cidade luz!

- Posso dizer o mesmo! - respondeu.

Depois seguiu-se a conversa habitual nesse tipo de situações. “Estás bem?” “Há que tempos que não te via!” “Como estão as coisas lá por casa”... as perguntas do costume disparadas reciprocamente, um mecanismo social automático bastante útil, especialmente nestas situações em que existe um claro desconforto entre os interlocutores. Estranhamente esse desconforto era mais evidente por parte do António, que se via na eminência de entrar numa cumplicidade com o Mário, ao saber que ele andava a vagabundear por Paris e não o poder dizer aos pobres dos seus pais, do que propriamente no primo Mário, na medida em que era ele o prevaricador. E quando surgiu a também muito previsível “ Que é que tens feito?” impiedosa na sua inevitabilidade e na obrigação que existia em a soltar, o Mário desembaraçou-se da seguinte forma: “Tenho andado por aí a conhecer o mundo, fiz uma pausa nos estudos e tal, os velhos não sabem nem precisam de saber, sabes como é, eles não percebem estas coisas.”

E assim depois de consumado o trato, o meu bisavô teve por sua vez de responder ao “E tu?”.

- Vim para aqui a ver se me safava. Isso não está a acontecer. Mal ganhei para me sustentar. Vou até Bordéus. É altura das vindimas. Não faltará trabalho por lá durante um mês. Com o que ganhar, vou voltar a Portugal.

- Não precisas! Eu tenho exatamente o trabalho ideal para ti! Perto de um local onde morei,fora de Paris, em Sévres, ali quem vai para Versalhes, um casal que vive numa casa enorme precisa de um homem para tratar do jardim, que é imenso. Ocupa toda a frente da casa, tem um chafariz, peixinhos e tudo. Nas traseiras tem um terreno bastante grande, tendo em conta que está tão próximo da cidade, mas abandonado, sem tratos, e sei que o homem gostaria de plantar lá coisas, uma horta e tal. olha… o campo é tipo o campo do tio Zé, tás a ver? Falaram-me disso ontem. Eu próprio aceitava o emprego mas não tenho jeito para essas coisas, tu sabes…

- Sim eu sei…

- E o melhor sabes o que é? A mulher do tipo tem uma doença qualquer, não consegue andar direito - daqui se depreende a vocação para a medicina do primo Mário -, portanto também sei que precisam de uma mulher que lhes faça a lida da casa e ajude a senhora. Com sorte trazes a tua mulher para aqui! O António não precisou de ouvir muito mais. Despediu-se apressadamente do primo, agradecendo a informação, e virou costas em direcção a Sévres. Estava quase a virar a esquina quando ouviu: “António!”. Voltou-se. “Esqueci-me de te dizer, eles são judeus!”. O bisavô acenou a despedir-se e retomou a marcha.

Não percebeu o porquê da alusão ao facto de o casal ser judeu. Nunca havia conhecido um. Nunca vira sequer um lá em Portugal, vira-os pela primeira vez em Paris. Reservados, vestidos de escuro, olhados de soslaio pelo povo. Não tinha sequer claramente definido o que era o judaísmo. Sabia que não acreditavam em Jesus Cristo. O que era um pouco estranho pois os romanos chamaram a Cristo, Rei dos Judeus. Mas sabia que tinham em comum com eles o mesmo Deus. Deus gostava de todos por igual. E todos somos irmãos.

Teria que sair da cidade e andar cerca de 3 horas para chegar à morada que o Mário lhe indicara. Mas isso pouco importava. Movia-o a certeza inabalável que aquela era a solução. Sem sequer ver Sévres, a casa ou o judeu. Não sabia falar Francês e não tinha aprendido mais que algumas palavras e frases mal arranhadas. Sentia-se determinado e capaz de tudo. Um daqueles inexplicáveis momentos da vida, em que tudo parece possível e alcançável, infelizmente pouco frequentes no comum mortal. Quando não é o “porque sim” que nos move mas sim o “porque não”, se é que me entendem e se faz algum sentido. Quando a ausência de possibilidades tem um efeito contrário, fazendo, ao contrário do costume, aumentar a nossa confiança. António pois, acreditava no destino naquele momento, e eu, humanamente, estou a partilhar da sua convicção ao escrever todas estas linhas, apesar de me propor na introdução a expor as diversas e incontroláveis variantes que a vida pode tomar. Assim somos.

António sentia-se leve. Não andava, flutuava em direcção ao seu destino que lhe parecia tão certo. Paris, pela primeira vez desde que havia chegado, deixou de lhe parecer hostil ou ameaçadora. Era de facto uma cidade magnífica, com as suas imensas boulevards bem alinhadas, os seus edifícios bem cuidados, imensos monumentos e construções atestando o engenho do Homem, e acima de tudo, a sua imensa massa humana. A diversidade de raças, culturas e credos que se cruzava com ele nas ruas e coexistia naquela cidade era assombrosa. Era realmente fácil uma pessoa sentir-se no centro do Mundo em Paris.

Afastou-se do centro de Paris e começou a percorrer a periferia. A paisagem aqui já era um pouco diferente. O céu era maior, haviam mais espaços entre os edifícios. Alguns tinham até um pequeno jardim. Surgiam campos e pequenos bosques. Não havia a confusão da cidade ainda mais porque o velho caminho ainda era em terra. Uma mulher passou por ele a pé, circulando quase no meio da estrada. Pouco antes apenas um cavaleiro passara por ele. Uma placa a dizer Sévres. As primeiras casas. As lojas de porcelana. Estava já bastante perto. Contornou a esquina e viu a casa.

Era bastante opulenta. E antiga. Bastante diferente das casas mais próximas. O António soube depois que a casa havia sido parte de uma grande propriedade. As casas e edifícios em redor haviam sido construídas em terrenos que haviam feito parte dos seus domínios. A falta de interesse por parte dos anteriores proprietários em cultivar a terra, aliado claro ao inexorável avanço da cidade tinham contribuído para que a quinta progressivamente encolhesse, até ao tamanho actual. Uma mansão, com um pequeno terreno atrás e um jardim à frente.

O jardim correspondia às expectativas criadas pelo primo Mário. Era bastante amplo, em estilo francês, mas necessitava de manutenção urgente, parecendo mais, devido ao estado que se encontrava, um jardim “à Inglesa”. O chafariz era imponente, do tamanho de um quarto grande, mas não estava a funcionar bem. Apenas saía um fiozinho de água da cornucópia de uma estátua em mármore da deusa Fortuna, que dominava o centro do chafariz. Miraculosamente ainda tinha peixes, a julgar pelas manchas alaranjadas que se moviam por entre o lodo da água. O António ficou um tempo a ver se via alguém. Como não sabia quem chamar, ou como chamar, empurrou o grande portão ferrugento, que logo se queixou ruidosamente, e foi bater à porta.

Passaram cinco anos. O jardim estava agora viçoso e florido. A Primavera fizera bem o seu trabalho assim como o bisavô. A fonte jorrava água exuberantemente. A Fortuna, ostentando um puro branco marmóreo, parecia sorrir. No interior o campo estava trabalhado. De um lado milho, do outro batatas, todos os anos trocando as posições para não cansar a terra. Toda a extensão do terreno plantada principalmente pelo meu bisavô, com ajuda da mulher e dos filhos. Para a apanha das batatas, o senhor da casa contratava alguns aldeões para ajudar. Num pequeno canto uma horta, feijões, tomates, alface, nabos, couves. Nos limites haviam videiras, plantadas pelo António no ano em que chegou e que no ano passado já tinham dado uvas para vinho. Haviam macieiras,particularmente de maçã reineta, castanheiros, laranjeiras e pereiras na quinta há cinco anos atrás quando António chegou lá. Entretanto ele plantara dois pessegueiros, uma ameixoeira, um marmeleiro, uma nespereira e morangos e os frutos desse trabalho estavam a tornar-se visíveis. Tudo isto era feito numa rotina de labor própria das gentes do campo, quase rivalizando com as próprias formigas, sem folgas, sem férias, com um certo desprendimento das suas próprias pessoas, não sendo esta vida motivo de infelicidade, antes pelo contrário. Este tipo de pessoas vive sempre satisfeita consigo mesmo e com a vida que levam e parece-nos sempre que não conseguiriam ser felizes de nenhuma outra forma.

A Teresinha teve a irmã que tanto desejava. A Fátima nasceu em França. Os Oliveiras ocupavam quase metade do piso inferior da mansão. Tinham três quartos e uma cozinha, para além de uma casa de banho interior, um luxo que não tinham em Portugal. Não tinham sala de estar ou de visitas, mas isso não os incomodava muito. Gostavam de conviver na cozinha, isso mantinha a família unida e de qualquer forma, eles nunca tinham visitas. Estavam bem acomodados, sentiam-se confortáveis. Apesar de criados, tinham um nível de vida nos anos 30 em França que só almejariam conseguir décadas depois em Portugal. As crianças, que não conheciam ou não se lembravam de outro lugar onde tivessem morado, sentiam-se em casa. Os pais nem tanto, principalmente o bisavô. Dava graças pela sorte que tivera, por poder ganhar a vida da forma que gostava, junto com a sua família. Mas as saudades do Minho, do Norte de Portugal, de casa, dos seus que ainda lá estavam, apertavam-lhe o coração. O plano sempre foi voltar.

Os Cohen eram um casal abastado. Jacob, o marido, era banqueiro. Havia subido várias posições na hierarquia do banco ao longo dos anos e agora ocupava uma posição confortável como um dos principais gestores. Podia dar-se ao luxo de por vezes não ter que se deslocar a Paris para trabalhar, embora essas ocasiões fossem raras. Quando assim era, trabalhava em casa. A casa tinha telefone. Jacob era um homem bastante inteligente e culto. Formara-se em economia na Universidade de Genebra. Era alto e magro. Parecia ser bastante mais velho que o António embora tivesse talvez apenas 5 ou 6 anos mais. Os gabinetes envelheceram-no e amareleceram-no. Saturado de anos a fio vivendo no bulício da cidade, comprara esta propriedade nos arredores de Paris. Raquel, a sua mulher, padecia de uma doença que, embora não a impossibilitasse totalmente de andar, como a descrição do primo Mário fez crer, tornava o simples facto de estar de pé algo extremamente desconfortável e andar um suplício. Estava quase sempre na cadeira de rodas ou num cadeirão junto à lareira, principalmente nos meses frios, mais penosos para ela. Era uma doença de ossos, pelas palavras da minha avó, provavelmente osteoporose. A senhora Raquel era uma doçura. Ajudava as crianças com os trabalhos da escola e foi practicamente ela que lhes ensinou o Francês. Quando as crianças estavam com ela haviam bolachas pela certa ou fatias de bolo, feitos pela própria senhora, que tinha um imenso jeito para fazer doces. Tinha um vigor impressionante para alguém tão condicionado. Era 10 anos mais nova que o seu marido, o que tornava de certo modo mais trágica e difícil a sua situação.

A senhora Raquel afeiçoou-se bastante à Teresinha. Ensinara-lhe a bordar e passavam horas nisso. Quando acontecia de o senhor Jacob ausentar-se por alguns dias, a Teresinha passava a noite na casa da senhora, para esta não se sentir sozinha. Passados mais de 60 anos e bastante ternas são ainda as palavras da minha avó em relação a essa senhora judia e por elas faço esta descrição mais elaborada, com um pouco de ficção também (como poderia não ser?), baseando-me nos ecos da memória da minha avó, quando menina, em França, crescendo nos arredores de Paris, no início dos anos 30. Numa análise mais fria a essa relação é fácil perceber porque houve empatia entre a senhora e a menina. A minha bisavó, coitada, com cinco filhos para criar, um deles bébé, não teria por certo muita disponibilidade para estar com os filhos frequentemente, enquanto a senhora, ainda para mais com pouco tempo naquela localidade, sem conhecer ninguém, poderia perder-se com aquela portuguesinha em tardes de bordados, bolos e leituras. A Teresa, não dominando a lingua também não teria por certo muitos amigos.

Nunca houve problemas quanto à religião. Era até frequente os Oliveiras jantarem com os Cohen ao Sábado e estes também com os Oliveiras no Natal e na Páscoa.

Os tempos em França foram pacíficos e harmoniosos. Mas o pai de António morrera e ele tinha a oportunidade de ficar com a casa onde ele morava, já tinha a confirmação dos senhorios do pai. Poderia voltar a Portugal.

Informou Jacob. Este ainda o tentou demover mas sem êxito. A França, que tanto precisara de mão de obra nos anos 20, agora olhava de soslaio todos os estrangeiros. Começaram a ser propostas políticas de extradição e tinha sido criado à pouco um cartão de identidade especial. Os estrangeiros também não podiam ter negócios próprios ou empregos em posições relevantes. Não que o António pretendesse abrir um negócio, ou almejasse a mais que a quinta dos Cohen, mas sentia-se indesejado e meditava sobre se queria criar os filhos ali. Este sentimento xenófobo estava a tornar-se comum um pouco por toda a Europa Central.

- Isto ainda vai acabar num grande mal. - dissera uma vez a Jacob.

Os Cohen compreenderam e conformaram-se. Uma manhã, alguns dias depois, Jacob acercou-se de António e principiou uma conversa. Começou a falar com uns certos rodeios, nada habituais nele, até que finalmente, como que ganhando coragem depois de inspirar fundo, disse quase de um fôlego só:

- Antoine, não te quero convencer a ficar. Sei que não queres e compreendo. Não te sentes em casa. O meu povo também procurou a sua casa. Vagueou anos e anos pelo deserto em busca da Terra Prometida. Sei que tens de ir, mas quero fazer-te uma proposta. Uma proposta não. Proposta é uma palavra ignóbil se aplicada no contexto do que te quero pedir. Sim, quero fazer-te um pedido. Quero te pedir que deixes a Thérése connosco. A Raquel vai continuar a precisar de alguém para a ajudar e para lhe fazer companhia. A Thérèse é esperta. Ponho-a a estudar na melhor escola de Paris. Ela pode visitar-vos no Natal e nas férias de Verão um mês inteiro. Nada lhe faltará, tu sabes.

Convém esclarecer alguns aspectos que poderão chocar o leitor contemporâneo, tal como me chocaram a mim, pouco conhecedor da realidade em 1934. Actualmente, parece inconcebível alguém deixar filho ou filha de 10 anos apenas, na casa de outra família, para a servir. Mas era bastante comum na época, as raparigas das famílias pobres serem acolhidas por famílias mais favorecidas para aprenderem e ajudarem nas lides domésticas logo após terem terminado a instrução primária. Maior parte das vezes não recebiam sequer nenhuma remuneração. Simplesmente tinham uma dormida, eram vestidas e alimentadas. Aliviavam as dificuldades financeiras das suas famílias, normalmente numerosas. Que tempos eram e que barriga cheia temos hoje.

Este caso da minha avó tinha algumas diferenças. A Teresa não iria ficar apenas na casa de outra família, iria ficar também noutro país. Esta era também uma grande oportunidade para ela. Como já referi os Cohen tinham muitas posses. Tinham possibilidades de viver muito mais faustosamente, mas optavam por não o fazer. Judeus. Havia outro motivo um pouco mais complexo. O meu bisavô sabia que a Teresa seria bem tratada. Não punha isso em causa, já conhecia suficientemente bem os Cohen. No fundo, estranhamente ou não, apoquentava-o o saber intimamente que os Cohen desejavam mais uma filha que uma criada. Temia perder a filha de uma forma mais profunda.

Não disse que não. Disse que ia falar com a mulher, pensar no assunto e amanhã dir-lhe-ia a resposta. À noite, quando as crianças já dormiam, a mulher ficou a saber. No princípio disse que não, que não. A sua menina ficar sozinha em França? Tão novinha? Enquanto o António discorria acerca dos prós e dos contras. No final contudo a lógica já imperava e o bom senso começava a dominar friamente sobre o coração. Os papéis até se tinham invertido um pouco, sendo agora a mulher, que entre um choro incontido enumerava as vantagens ao marido. E de facto a proposta, ou melhor, o pedido, dos Cohen era algo impossível de desconsiderar. Quando se deitaram, a mulher encolheu-se na cama de costas para o marido e ficou a chorar em silêncio. Toda a noite o António ouviu os seus suspiros, enquanto pensava, com os olhos fixos nos pormenores do tecto, iluminado por um feixe de luz vindo do exterior, proveniente de uma fantástica lua cheia, que invadia o quarto através de uma frincha da janela. Tinham decidido que a Teresa ficava em França.

O feixe de luz azulado começou a ficar mais claro e depois amarelado. Surgiu o primeiro chilrear dos pássaros da manhã bem antes do despertar do velho galo que pachorrentamente cumpriu mais uma vez o seu dever. O dia nasceu numa manhã orvalhenta. Jacob assomou à varanda cheio de olheiras. Também não devia ter dormido grande coisa. Desceu o vão de escadas das traseiras e percorreu a horta até começar a ver uma figura cada vez mais definida por entre o nevoeiro. O António estava junto à plantação de feijões espetando estacas de madeira finas e enrolando os pés de feijão em seu redor.

- Antoine, vais-te embora amanhã! Não precisas de estar a fazer isso!

- Estou-me a despedir das coisas. - replicou.

Jacob assentiu e ficou em silêncio a observar. Mas era impossível esconder o que lhe ia na alma.

- Jacob, és muito boa pessoa e tenho a certeza que serias bom para a Teresinha, mas eu não posso viver sem a minha filha. - disse António num tom não agressivo e cordial mas definitivo.

Jacob não conseguiu esconder o desapontamento na sua face mas não disse nada.

Não poderia ficar zangado com o António. Compreendia as razões de um pai, mesmo sem o ser. Não estava propriamente triste. Não que a sua mulher não fosse ficar ou que ele não desejasse também a companhia da Teresinha. Lamentava isso sim, talvez pela primeira vez na vida, não ter optado por ter filhos. O que Jacob estava a ter naquele momento era uma reflexão semelhante à que apresentei na introdução. Ele gostava de crianças e a mulher também. Qual terá sido a altura em que decidira não ter filhos? Várias. Primeiro era muito novo, depois era muito velho, agora eram os estudos, depois o trabalho e subir de posto. Era preciso dinheiro, depois de haver dinheiro era preciso tempo. Por fim, a doença da Raquel…

Mas pensava sobretudo quais as portas que se teriam aberto e quais as se teriam fechado. que caminhos teria seguido e onde estaria agora. Fundamentalmente: seria mais feliz? Tal como nós nos nossos dilemas, nunca o saberá.

O António acordou-o do transe ao dar-lhe alguns conselhos práticos sobre o jardim, a casa e o campo. Pequenas coisas que lhe tinha ensinado e que Jacob poderia fazer sozinho caso o desejasse. Passaram assim a manhã e a tarde.

No dia seguinte despediram-se na varanda, para conveniência da senhora Raquel, confinada à sua cadeira. Desejaram mutuamente felicidades. Depois, os Oliveiras atravessaram o jardim pela última vez, todos carregados com trouxas. Junto ao portão, que agora parecia quase novo, António deitou um último relance ao jardim, acenou uma última vez aos Cohen, que ainda estavam na varanda, fechou suavemente o portão e partiu.

Passaram 18 anos. António, morrera há 5 anos. A Teresinha conhecera o meu avô, casara e por esta altura já haviam nascido dois tios meus. O João saíra de casa primeiro, estava casado à 10 anos. A Fátima ainda lá estava com a mãe. O Toninho, que me perdoe o meu tio-avô padre António por me referir a ele desta forma, se o faço é para conforto do leitor, para não estar António pai para aqui, António filho para ali. Retomando, o Toninho descobriu em si uma enorme Fé. Estudou no seminário para se tornar padre e logo após o seu Rito de Ordenação, enquanto não lhe atribuíam uma freguesia para ministrar, empreendeu uma viagem de carro pela Europa com destino ao Vaticano, com 3 outros colegas padres recém-ordenados. No regresso, planearam outro trajecto, mais demorado, um périplo por algumas cidades europeias. O plano era visitar Roma obviamente, subir até Florença, Milão, Zurique na Suiça, depois entrar em solo Francês em Estrasburgo, Paris, Bordéus, Lourdes e finalmente Santiago de Compostela antes de voltar a Portugal.

Em Paris a atracção por voltar a ver a casa onde passara uma parte da infância deve ter sido irresistível. Tinha também uma certa curiosidade em saber se os Cohen ainda estavam lá.

A pequena cidade permanecia quase inalterável. O Toninho ainda se lembrava de muitos locais e não foi difícil ver-se em frente ao enorme portão da entrada, tal e qual o seu pai à 25 anos atrás. O portão estava descolorado e novamente atacado pela ferrugem. Estava fechado mas não trancado. Era bastante óbvio que não era aberto frequentemente. Apósnuma breve hesitação, o Toninho empurrou o portão, mais uma vez tal como o seu pai não ligando aos seus protestos estridentes, e entrou.

O jardim era um cenário desolador. As ervas daninhas haviam vencido há muito tempo a batalha contra a relva. Alguns canteiros ainda davam flores a custo, ressequidos. Um enorme silvado começara a ocupar um canto do jardim. O chafariz estava seco, completamente seco e cheio de folhas putrefactas. A Fortuna estava sem um braço. Junto à escadaria da frente, um cartaz da prefeitura a anunciar que se apoderara da propriedade.

Uma vizinha curiosa e meio desconfiada por certo ouvira barulho e assomara a uma varanda com vista para o jardim. O Toninho aproximou-se e cumprimentou-a em francês. O Toninho não se lembrava da senhora. Já estava na meia-idade, se vivera ali há 25 anos, por certo ainda se lembraria dos Cohen.

Perguntou-lhe, em francês escusado será dizer, se conhecia um casal judeu que ali vivera, monsieur Jacob Cohen e a sua mulher Raquel, o que acontecera com eles ou se sabia onde estavam. Ela disse que não, há muitos anos que não os via. Desde a ocupação alemã.

- Les Allemands… - disse encolhendo os ombros, em jeito de dúvida e mau presságio - Les Allemands…

O Toninho agradeceu e despediu-se com um aceno. Saíram do jardim. Já na rua, puxou o portão vigorosamente, que mais uma vez gemeu até se fechar com estrondo.

RDA Peixoto
Enviado por RDA Peixoto em 24/06/2014
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