MITOPOÉTICA E ESSÊNCIA

Esta apresentação panorâmica discorre sobre dois assuntos que afetam o ser pensante, e como tal a própria arte, nosso objetivo primordial. Buscaremos lançar algumas luzes sobre a essência do ser e do ente, tema amplamente discutido na filosofia, e sobre a mitopoética, área afeta à origem da arte. Lancei uma questão aberta, como conectar-se com as próprias origens, ou seja, com a essência do ser, nesse caso negando o significado da própria época vivida e ao mesmo tempo alcançar a essência individual, dualismo intrínseco ao exercício da arte. Surge aí uma questão correlata, até que ponto essa essência individual se identificaria com a mitologia universal, transformando os sinais de diferentes modos artísticos em significados no mundo contemporâneo. Parti dessas premissas para duas perguntas que estão no cerne do desafio: pode a arte ser verdadeira como processo se não se funda no próprio individuo? e, como processo, se não dialoga com os observadores poderá sua essência ser atingida?

Falar em essência significa falar de uma questão recorrente sobre o ser humano e a consciência do existir, surgindo de imediato a pergunta o que é a consciência e qual seu objeto. Há duas formas tradicionais de abordar o problema, uma cartesiana, a outra diria materialista. Na versão cartesiana concebe-se o homem com o corpo material e uma alma-mente imaterial, sendo nessa que ocorrem estados conscientes que identificam o ser como ser humano. Essa identificação surge através da introspecção, experiência rememorada de sensações, sentimentos e associações. Na versão materialista parte-se da afirmação que a realidade deva remeter ao corpo, e a estados físicos, em que a mente é um processo físico particular, lastreado em reações bioquímicas ocorrendo em nível celular. Nesse ponto as duas versões convergem, entendendo consciência como estado de uma substância, a mente, que poderá ser imaterial ou material. Ora, se a mente é a sede da consciência e que nos identifica como seres humanos, é ela a essência do ser humano. Cria-se dessa maneira um paradoxo, a essência resulta de um “arquivo” de expressões vividas automaticamente e conectadas com a cronologia da pessoa como indivíduo, inexistindo assim uma essência pura, uma vez que esta interage com sua época; por outro lado como alcançar a “própria” essência uma vez que essa é permeada pela existência? E mais, isso nos interessa muito, como alcançar essa essência pura negando os mitos com seu caráter universal?

Quando falo em mitos falo numa linguagem, numa forma de expressão, uma vez que o mito não é apenas o mito arcaico, tudo pode se constituir em mito, desde que passível de discurso transformado pela história, o mito é uma mensagem, imagem realizada visando um significado. Como lingüística os mitos podem ser analisados pela semiologia, estudados como formas cujos significados não são fixos, com valores de equivalência em termos psicológicos. O significado do mito é um conceito, sua significação tem dupla função: designa e notifica, impõe e fornece uma compreensão. Ao dar uma significação já impõe um sentido completo, uma memória, uma seqüência comparativa de idéias. Entretanto não nos esqueçamos que partimos de um conceito de significado do mito, de uma série de associações abertas, cuja coerência advém da função emprestada, do mesmo modo que na análise freudiana o conceito mítico é uma intenção, e aqui grifo: uma intenção de comportamento.

Para nós esse é o ponto importante, a significação mítica jamais é arbitrária, tem sempre uma motivação, que contem uma analogia de sentido e de forma, não existindo mito sem forma motivada. Se na linguagem a função do mito é transformar sentido em forma, portanto uma apropriação de signos, na arte contemporânea ocorre processo inverso, a poética aparece como um sistema semiológico regressivo. O mito enquanto mito visa uma ultra-significação, uma generalização do sentido, na poesia atual ocorre uma infra-significação, quer se transformar o signo em sentido, não o sentido das palavras, mas das próprias coisas.

Julien Greimas discutindo a semiótica diz que duas tradições culturais, uma estética, outra lógica concorrem para fazer o conceito de representação o ponto de partida para reflexão sobre a visualidade. Essas configurações visuais se puderem ser lidas seriam sistemas de comunicação ou de concepção? E, se reconhecidas como tal, se constituem em linguagens? Podem elas falar de outra coisa que não seja de si mesmas? Seria possível uma análise semiótica plástica em relação a seu conteúdo? Ele nos afirma que o estatuto da linguagem é a articulação de seu significado, e que se acha organizado num sistema conceptual coerente. Nas artes plásticas contemporâneas acontece o mesmo, busca-se fugir das analogias, negando o significado mítico expresso pela forma, ocorre, porém que a imagem é a linguagem fundamental do mente e os símbolos são o meio para compreensão das imagens, é impossível ir contracorrente, pois os mitos são histórias simbólicas que expressam em imagens significativas os processos psíquicos. Massimo Carboni, numa reflexão crítica diz ser necessário teorizar o resquício da imagem na palavra e sua reconstrução, tramada em níveis da mais alta complexidade, cujo caminho seria o de uma linguagem metaforizar a outra a partir da diferença. Ora, esse caminho é o do isolamento, o da essência individual que se opõe à prática atual que parte do princípio da arte como exercício social dentro do campo da comunicação, em que o efeito estético se manifesta como ato solidário de pertinência ao mundo. O próprio Carboni assume a impossibilidade de aproximar obra-receptor pela intermediação de uma análise simbólica, uma vez que o ato é isolado, a experiência particular e seu discurso vêm de encontro à questão da mitopoética: “ajudar a ver, essa insistência em realçar o próprio, querer desvelar uma identidade exige elaborações teóricas de uma racionalidade não excludente, mas, ao contrário, capaz de envolver realidade e magia, o passado e presente simultaneamente. Essa simultaneidade é também oscilação e sobreposição, mutabilidade, flagrantes de nexos simultâneos que podem acontecer ao relacionarmos textos de diferentes naturezas e que, no entanto incidem como elos na trama simbólica”.

Pierre Bourdieu, possivelmente dos mais destacados filósofos na área do estruturalismo construtivista, englobando sociologia, antropologia e áreas diversas do conhecimento nos diz: “dado que a obra de arte só existe enquanto tal, quer dizer enquanto objeto simbólico dotado de sentido e de valor, o será se for apreendida por espectadores dotados de atitude e de competência estéticas tacitamente exigidas. Pode-se dizer que é o olhar do esteta que constitui a obra de arte como tal, mas com a condição de ter,de imediato,presente no espírito que só pode fazê-lo na medida em que ele próprio é o produto de uma longa convivência com a obra de arte.” Em oposição, o pesquisador de arte e processos visuais Armando Silva afirma que “ as imagens afinal não nascem do nada, são geradas pelo patrimônio comum e pelas contingências que envolvem o artista”... e “a constatação da existência de uma expectação simbólica, entendida como um vir-a-ser de lembranças e de vidências, coloca-nos diante da memória”. Sobre a experiência poética moderna, cujo discurso vale para todas as artes, Umberto Eco sugere que o interprete da obra sabe que não irá atingir uma verdade externa, mas irá acessar seu próprio universo da “enciclopédia” simbólica, sendo que esse caminho direciona ao nível mítico, portanto antropológico. Gilbert Durand, na via de pesquisadores como Jung, Bachelard, Piaget estudando as estruturas antropológicas do imaginário nos afirma isso: as leis da representação são homogêneas e a representação é metafórica em todos os níveis uma vez que tudo é metafórico, e no nível de representação todas as metáforas se equivalem. Essa convergência proposta mostra que se formam em torno de um arquétipo, são praticamente constantes e aparentemente estruturadas com qualidade formal. Esses arquétipos ele nos diz, ligam-se a imagens muito diferenciadas pelas culturas e nas quais vários esquemas se vêm imbricar; enquanto o arquétipo está no caminho da idéia e da substantificação, o símbolo está simplesmente no caminho do substantivo, do nome, e desta reaproximação semiológica o símbolo se fragiliza, perde sua polivalência, tende a se tornar simples signo, emigra do semântico para o semiológico. Dá como exemplo o arquétipo da roda, que origina o simbolismo da cruz, que por sua vez se torna sinal, ou outro exemplo a partir de Jung sobre a palavra libido em sânscrito que significa experimentar um violento desejo, portanto o sentido de desejar e sofrer as conseqüências desse desejo.

A forma arquetipal é o mito, que Claude Lévi-Strauss afirma ser uma forma particular de apreensão da realidade dando ao homem a ilusão extremamente importante de que pode entender o universo, e de que ele entende, de fato, o universo. Entretanto, ao analisar o primeiro texto mítico, o de Édipo, reconhece que a situação é a mesma defrontada diante de uma obra plástica: existe uma leitura figurativa evidente, e ao mesmo tempo destituída de sentido, tamanha a distância entre a perenidade dos mitos e a insignificância de seu aparente sentido. Reconhece então que existe uma significação mais profunda, verifica recorrências da narrativa, contrastes como “ruídos” que devem ser ultrapassados para postular então uma apreensão mítica atemporal, que dá o significado global. Essa estrutura mítica de base é a co-relação de duas categorias semânticas, e a apreensão acrônica da significação nas superfícies plásticas fechadas das artes surge como predisposta às manifestações míticas.

T.S. Eliot, ao comentar “Ulisses” já falara que o mito serve à arte como “ modo de controlar, e ordenar, dar forma e uma significação ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea, em vez de um método narrativo nós podemos agora usar o método mítico.” Eduardo Sterzi complementa sobre as mitologias pessoais na arte, dizendo que o recurso ao mito é uma das respostas viáveis à percepção do processo histórico como crise ou trauma, expediente para garantir a significação e a relevância de sua “mensagem” partindo de um contexto imanente.

Vejamos qual a expectativa do surgimento do nível mítico na obra de arte – este como construto apresenta algo completo, de tal forma que o problema está em nos inserirmos em sua lógica presentacional, o dialogo aberto que só se revela durante a apresentação. Na verdade esse dialogo nunca se inicia, pois nunca se interrompeu, uma vez que vivemos imersos na tradição, como deixa bem claro Hans-Georg Gadamer. Essa imersão é o que Susane Langer define como inconsciência coletiva, a criação de formas simbólicas do sentimento humano, uma continuidade do pensamento de Wittgenstein ao nos falar que as artes articulam o que as outras linguagens não conseguem mostrar aquilo que não pode ser dito. O que não pode ser dito é o simbólico visto por Gadamer como a essência da arte, ela é o que aparece e muito mais, depende do outro, do interprete, do que poderá o olhar do observador seguir nas sinalizações da obra e essa a razão pela qual entre o observador e a obra existe uma simultaneidade temporal em que podem se reificar os mitos. Na experiência da arte a obra possui sempre seu próprio presente independente da criação intelectual e seu autor, ela vem a nosso encontro através da tradição.

Quando Goethe afirma genericamente “tudo é símbolo” sinaliza que todas as coisas se interrelacionam, em que tudo não é um simples enunciado sobre todo e qualquer ente, mas sobre o modo como o ente vem ao encontro da compreensão, algo que se solidifica na experiência da arte, na hermenêutica, no jogo de interpretação do que a obra quer nos dizer. O que Goethe sinaliza aponta para o processo do conhecimento, estarmos prontos para uma tomada de consciência, procurar a essência da verdade, saber o que é a verdade do ente. Esta verdade Heidegger diz ser uma operação em que se alcança a verdade quando um enunciado expressa a coisa que julgamos, uma vez que o ser em sua existência total está oculto e a realidade humana é dominada por uma não-verdade.

Isso remete à nossa proposição original, a essência do ser como essência individual, deixemos então de lado a longa peregrinação desde Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant, Sartre e fiquemos com Heidegger quando interroga a realidade humana, interpretar o que está além das aparências, da existência quanto à explicação do tempo e do papel de ser-no-mundo. Assim, mundo e realidade humana se revelam idênticos no logos (razão), a historicidade se constrói na existência, e o ser, passado ou repetido na reapresentação do passado. O pensamento sobre o passado tem dupla origem, uma dita racional e científica como história, outra dita mítica, como contra conceito por não existir testemunho ocular e certificado pela razão: esta concepção de razão, entretanto é moderna, seria uma faculdade humana quanto à constituição das coisas criada a partir do logos grego, que é a base da filosofia no ocidente. A forma mais elevada do logos era a noûs , que corresponde à razão como faculdade das idéias de acordo com Kant, e a partir dele e de Hegel criou-se uma barreira, separando o mito da razão, embora ambos possuam origem comum, a explicação do mundo e do ser no mundo.

A obra de arte torna visível uma relação mundo-terra em um ente particular sob forma condensada, aquilo que Heidegger diz com a palavra dichtung que significa condensação, porém também poesia. Toda arte é dichtung, condensação de significado e poesia, é mitopoética, não é ficção e sim captação, nela respira a essência, razão e mito, personificação de uma voz íntima e, no entanto, exterior. Quanto à questão do dialogo com os observadores como processo aberto, lembremos com Didi-Huberman de que a imagem em si é dialética, nela existindo a modernidade e o mito, ocorrendo um espaçamento inerente ao encontro entre olhante e olhado, persistindo apenas na essência o homem que busca.

Buscar um sentido para a essência é retornar a Schopenhauer e ao regime de “conceito”, definido por ele como conhecimento comum das coisas particulares e que corresponde ao que dizemos ser decifração das significações. Contudo, como a apreensão de um sentido que seria somente da ordem de quem o experimenta poderia engendrar um saber? Nesses termos, talvez como se Merleau-Ponty perguntasse, se para ter significação é necessário que as partes integrantes de um todo que faz sentido em si mesmo possam ser apreendidas como tal, qual o estatuto desse sentido? Ele é efeito do que? Da essência?

Permito-me encerrar com uma frase de Baxandall em “Padrões de intenção”: “nós não explicamos um quadro, explicamos observações sobre um quadro”, do mesmo modo diria: não explicamos a essência, mas observações sobre a essência.

Walter de Queiroz Guerreiro

Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 23/06/2014
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