EM BUSCA DA ESSÊNCIA

A proposta curatorial dessa 43ª Coletiva de Artistas de Joinville partiu de um conceito bastante amplo e de um desafio: na investigação individual sobre como é possível se conectar às próprias origens, negando a época vivida, e ao mesmo tempo dialogar com os observadores. Eis aí o grande problema: pode a arte ser verdadeira se não se fundamenta na própria pessoa, e, se responder a seu íntimo poderá ser compreendida, não se esvaindo em monólogo íntimo alienante?

Oito artistas responderam a essas questões, e poderemos verificar a convergência nas propostas e o diálogo aberto criado no processo coletivo sobre a “essência”.

Cyntia Werner propõe o ser humano despido, como marionete, e quem puxarão esses fios, o passado, as tradições? O nomeia “Vale da Estranheza”, termo surgido da robótica e aplicável aqui nas relações sociais através de jogos virtuais, um espaço diminuto criado entre as relações reais e as virtuais. Qual a essência humana nas manipulações do mundo virtual e qual a empatia verdadeira entre seres no mundo real? Nudez como pureza física ou da verdade, simbolicamente do não manifesto, da essência, de um ideal talvez a ser atingido, contudo, marionetes , cujas tomadas de consciência inexistem, retornam ao passado. A sensação de ser marionete, que existe sem se sentir existindo, uma identidade como desejo da consciência, mera relação de espelho na qual o Outro se define. Faltar-nos-á consciência de que participamos de histórias não contadas, olvidadas ou arquivadas no passado, ou simplesmente seremos uma identidade fragmentada, e por isso mesmo inútil? Zygmut Bauman nos fala sobre isso ao discutir a ética pós-moderna e a esse sentimento de ambivalência na realização do objeto do desejo, com a perda de nossa identidade.Quanto à obra em si seus desenhos anatômicos nos lembram Lucian Freud,algo íntimo, fechado em si mesmo, de um realismo teatral, pessoas nuas que nada tem de erótico, plausíveis, mas, em suas normalidades perturbadoras sinalizam inquietantes estados de espírito.

Diálogo aberto, a que Giovanna Fiamoncini responde na criação de seres mitológicos criados por nós mesmos, nos medos e experiências vivenciadas e recebidas do passado individual e coletivo. Que monstros são esses que ela nos propõe? O Minotauro talvez, simbolizando o combate espiritual contra o recalque dos desejos ocultos no inconsciente, aí talvez apenas guardião de um tesouro; a máscara como instrumento de possessão, para proteção própria, mediadora entre o portador e o captador, que será seu cativo; a ave capturada, símbolo da comunicação interrompida e do dualismo da personalidade, das inúmeras pulsões psíquicas; de plumas, símbolos sacrificiais e do poder de liberação; da mulher portando máscara com grande bico, similar aos médicos medievais, para evitar contato com a “peste”. Que peste é essa? A realização do objeto do desejo, reprimida no inconsciente ou oculta atrás da mascara?

Priscila dos Anjos levanta o questionamento da verdade imposta em “Eu também sou Filho de Deus”, o ser mitológico que se afirma como Senhor da Criação, das crenças que obrigam ao homem a existência de um ser metafórico, acima do questionamento e da razão, por vir da tradição. Afinal, o que é religião? Significa ir e voltar, buscar uma ordem cósmica para o mundo, até uma explicação racional para o que não pode ser explicado, enfim, uma crença. Mas essa verdade imposta “em nome do Pai,” numa expressão freudiana, será a legitimação da vontade de um mito fundador e a relação com o conflito de demandas na identificação com o agressor, dotado de onipotência.

Nilton Tirotti trabalha a essência do indivíduo como trajetória em seus “Seres afetuosos”, na metáfora da “brasa adormecida”, mas ainda pulsante, no passado já reduzido a cinzas, pela relação conturbada com o meio ambiente, destrutiva por ser desencantada, ao mesmo tempo nostálgica na visão mítica do paraíso perdido, presença/ausência inquietante do homem como “ser afetuoso”, algo artificial como a esfera perfeita na paisagem, recordação do admirável mundo novo a ser criado e do jogo como rito social, resposta individual aos diferentes ângulos de relações com o mundo. Câmera estática num momento, captando em plano aberto, noutro fechada no movimento em primeiro plano que dá sentido ao real; o corte na edição e a alternância nos espaços de projeção, pelas elipses, criam narrativa.

A isso Rogério Negrão com a “Trilha do carbono” replica com a memória do ser-objeto, e da consciência como essência do ser, nos grafismos e no som distorcido provindos do passado e trazidos pela memória. Mas, que memória é essa? Bergson tratando sobre o assunto disse que as lembranças auditivas para serem evocadas têm de ser discerníveis sob forma de esquemas motores das palavras enunciadas, o limite entre a vontade de recordar e o automatismo no processo da audição. Ouvimos o registro de nossa própria existência.

A essência do homem é lúdica, nos dizem Sonia Rosa e Renato Veiga, reside além do princípio do prazer para Freud, a essência do jogo é a transformação da realidade, identificação condensadora como os ritos litúrgicos, na ligação simbólica em que um se torna outro, na possessão poética do transe, uma vez que essa nasce no jogo, enquanto jogo como metáfora dos acontecimentos da vida; Sonia com “Ressonâncias: lembranças esquecidas” propõe a transformação dos objetos mantendo suas essências, ainda em processo, de momento apenas aglomerados aguardando seu destino que poderá ser a reciclagem de suas funções primeiras, ou a dissolução das identidades, enquanto Renato Veiga na “Mente do artista” convida ao mergulho espacial e temporal como Homo Ludens (o homem que brinca). Mergulhar na mente do artista remete à imagem do filme de Spike Jonze, “Quero ser John Malkovich” e à porta que dá acesso à sua mente, fusão perigosa com o desconhecido que atrai na ilusão das bolas coloridas, qual a real possibilidade de conhecermos a essência do Outro? Talvez apenas a busca por sensações frenéticas e desregramento da conduta na sociedade pós-moderna, a procura ou a fuga de identidade própria no mundo virtual.

Sérgio Adriano questiona em duas imagens intituladas de forma contundente “Negro de alma branca” e “Branco de alma negra” a igualdade racial na busca da essência, através do existencialismo, da constituição do si mesmo na construção da singularidade, para ressaltar o sentido da diversidade e o fim dos estereótipos; a lágrima que escorre dá o testemunho, simbolizando a dor e a súplica não manifesta na palavra, o drama espiritual da degradação do ser.Lembremos Platão, as Idéias não são a realidade oculta por trás das aparências. E, qual a solução proposta? “ choque temporário”, mãos que se buscam, se tateiam, se apertam, como instrumentos do conhecimento, da ação diferenciadora, um equilíbrio entre a pressão social e a vontade do outro para atingir a unidade: a própria essência humana.

Em todos sobrevive a evocação de imagens cognitivas, suas imagens essenciais, mas igualmente o simbólico, aquilo que é repassado e relembrado através de gerações, um processo contínuo elaborado pela tradição, preservado pela linguagem e armazenado, queiramos ou não, como nos afirmou François Jacob, no DNA individual, diversidade genética e diversidade cultural na interpretação do mundo. Teia de significados de diferentes alteridades, que Gadamer nos aponta como fusão de horizontes entre o intérprete e a linguagem, no instante de envolvimento com a mensagem da obra. Nada de novo, Bergson já dissera que a memória não consiste na regressão do presente ao passado, mas no progresso a partir de um “estado virtual” através de planos de consciência diferentes até a percepção atual, o estado presente, que consiste na lembrança pura. Essa lembrança é a consciência.

Encerro com Wittgenstein, e a reflexão de Markus Gabriel sobre ele, que, de acordo com o primeiro, nossa troca epistemológica com o mundo ocorre num sentido preciso, encontramo-nos sempre lançados numa mitologia, ou seja, numa rede sistemática de crenças, através de imagens típicas de antecipação nos padrões de comportamento codificados, é a nossa ancoragem com o mundo, aquilo que simplificamos com uma palavra: nossa “essência”. Entretanto, nada é tão simples, sobre a questão da mitopoética que permeia a essência do ser na arte, Baxandall em “Padrões de intenção” disse: nós não explicamos um quadro, explicamos observações sobre um quadro, digo então, nós não explicamos a essência, mas observações sobre a essência.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.

Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Curador da 43ª Coletiva de Artistas de Joinville.

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 22/06/2014
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