ROMANCEIRO DA MIRADA

Plasmar a realidade com a invisibilidade do sonho, talvez seja essa a melhor forma de conceituar o romantismo e compreender um sentimento artístico contraditório, evasão e mergulho apaixonado na própria vida.

Este meu primeiro pensamento ocorre ao situar a obra de Lair Leoni Bernardoni dentro de uma linguagem, que mais que um estilo, é uma predisposição da alma. Ao dizer predisposição da alma vou além do sentido metafísico do termo, penso na articulação entre o visível e o invisível, procuro entender o mecanismo de esse objeto chamado olhar. Por isso enquadro a obra de Lair dentro do romantismo como linguagem, e não como estilo, que para mim vai além do simples arranjo de elementos, constrói-se através da combinação de percepções, da forma como um artista vê e interpreta o mundo.

Se pensarmos no romantismo como constante universal, vertente do espírito dionisíaco em oposição ao apolíneo, e que procura idealizar o mundo e não reproduzi-lo, percebe-se nele então uma tendência inata, uma atitude de temperamento, com uma série de qualidades que terminam por definir uma linguagem: o romantismo. Em primeiro lugar, é extremamente pessoal e íntima, em segundo afasta-se da lógica, do raciocínio sistemático, que é primado do classicismo. Suas imagens fogem da realidade, criando um mundo novo, de sonhos, repleto de símbolos, em que a Natureza retorna ao estado original. Essa fuga a um passado primevo acaba por imprimir uma cor local pitoresca, bela e pura, de um mundo perfeito e perdido. Em linhas gerais essas características perduram no espírito do romantismo, perpassam sua obra, ditando o predomínio do conteúdo sobre a forma.

Contudo existe uma marca pessoal, o que em estética conceituamos como estilo, aquela tendência intrínseca generalizante no tratamento, consciente ou inconsciente, e fruto de uma sensibilidade do intelecto. O modo de dar forma ao conteúdo é a própria personalidade da artista, vertida em energia formante, ficando inseparáveis forma e conteúdo, identidade e expressão artística, sendo esse o significado estético do estilo, em que a obra prescinde da assinatura porque já a é.

Na obra de Lair, existe essa marca que aparece como um recurso técnico, o uso do filtro de neblina, suavizando os contornos pela diminuição da nitidez e surgimento de um halo nas luzes altas, criando-se assim atmosfera.

Nessa marca estilística reside o mecanismo de olhar, o véu através do qual des- constrói uma nova realidade. Diz um ditado do Marrocos, a propósito dos muxarabiês, aqueles balcões com treliças: para vivermos melhor, vivamos escondidos. Essa é a função do véu, da experiência metafórica de luz e sombra do sufismo, da estratégia do olhar na zona do umbral. Na psicanálise essa zona do umbral, do vazio de significante, pode ser entendida como uma função háptica do olhar. Deleunze qualifica háptica como uma relação entre o olhar e o tato, quando a visão descobre em si a função de tocar. Na atividade ótica do ver, a manifestação do belo intimida, erguendo-se então a cortina, “o limite em que o olhar se torna beleza”, nas palavras de Lacan. Assume assim a neblina função de véu, recobrindo território pouco conhecido dentro do Eu, permitindo que o Belo seja entrevisto de forma sublimada, e em que a função háptica torna-se instrumentalização do olhar.

A realidade transforma-se numa série de fragmentos capturados e reconstruídos em instantes de vigília, flashes do inconsciente ao tratar da realidade. Susan Sontag comenta que no passado, o descontentamento com a realidade expressava-se através do desejo de voltar a um outro mundo, e que na sociedade moderna a fotografia segue um caminho inverso, fixando este mundo.O paradoxo temporal em Lair é exatamente este, observamos através da neblina, fragmentos da Arcádia vividos hoje.

Romanceiro construído a cada instante capturado pela atmosfera criada, onde a cor esmaecida é fruto de uma mirada transfiguradora, recria a imagem ideal e nostálgica de um mundo pictural. Quando digo pictural, me refiro a procedimentos que não são da fotografia, mas da pintura, e mediante o efeito nebuloso do flou, criam uma imagem metonímica como fragmento da realidade. Essas imagens fantasmagóricas principiam e terminam no vazio, surgem e se esfumam na impressão táctil construída na profundidade espacial, possuem aquela qualidade definida por Walter Benjamin, a aura. Paradigma visual como acontecimento único no espaço e no tempo, a aura é vestígio material, exalação dos corpos sólidos, imagem dialética entre a percepção dos sentidos materiais e seu significado ontológico.

Reside aí, neste corte temporal que se repete a cada fotograma, o sentido de mistério e expectativa que cerca a obra de Lair, a indeterminação, formas surgidas e esvaecidas como revelações importantes, sinais manifestos da transitoriedade do tempo. Nos pequenos fragmentos que compõem essa estética dos sentimentos, vemo-nos numa imagem-espelho ideal, criações do belo na Natureza, que só se revelam na transmutação íntima da experiência de sermos humanos.

Walter de Queiroz Guerreiro

Membro da Associação Brasileira e Internacional dos Críticos de Arte (ABCA/AICA)

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 22/06/2014
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