QUATRO ELEMENTOS
Um título nunca se resume apenas a um título, a leitura de uma obra plástica irá além das referências a superfície,espaço,cor,diálogos entre forma e conteúdo. Surgem essas considerações ao refletir sobre os “Quatro elementos” de Juarez Machado, obra escultórica instalada frente à ACIJ (Associação Empresarial de Joinville) e que demanda vários níveis de intelecção.
Concebida como quatro painéis recortados com laser em aço Corten espesso e intitulados nas próprias obras sequencialmente: Fogo, Água, Terra e Ar mostram sua origem na pintura, desde a escolha do suporte bidimensional, tratado como suporte da linha e criando o desenho. Lembremos inicialmente que o escultor, trabalhando sobre placa ou volume considera superfície e espaço visando transfigurá-los. Aqui, por ser um pintor que vai à escultura e não tendo formação clássica na área, afasta-se das regras que impõe relações de volume entre a escultura e seu objeto, a interpretação dos volumes ficando por conta do observador, pelo recorte das figuras criadas entre o ar e a linha delineando as formas. Vê-se por aí uma postura frequente no pós-modernismo, em que a realização da forma no espaço, conceito essencial na escultura, foi rompida como parâmetro, já que a obra não é um relevo nem um volume total, a tridimensionalidade virtual sendo obtida pelas formas humanas exacerbadas na musculatura. Analisadas sob esse prisma aparecem como “affiches”, cartazes de outra época, entre as formas ondulantes do Art Nouveau e Belle Époque tão caras ao artista e a Neue Sachlichkeit,expressão alemã para a objetividade realista dos anos 30/40,que apelava para a sedução da força como em Arno Breker, Metzner e Bourdelle, o dever do trabalho e a solidariedade como ethos , presente na arte dos estados totalitários até hoje. Embora conheça como o artista trabalha, pesquisando temas que serão desenvolvidos o que leva a um caráter literário, nesse caso indaguei o porquê da escolha, e em suas palavras: “é o começo da vida... e talvez o fim”. Realmente se a escolha do tema subjacente o aproxima à entidade homenageada, por outro lado sabemos de sua preparação na mesma época para ingressar na Maçonaria. Ora, a tradição hermética na maçonaria remonta a suas origens, desde os Mistérios que trataremos depois, às referências pitagóricas e a busca do conhecimento metafísico nos alquimistas.
Os quatro elementos surgem assim como princípio nos Ritos de Iniciação, originados na tradição dos filósofos pré-socráticos na busca pela Arché (origem), aquele princípio que deveria existir em todos os momentos de todas as coisas, início e fim, assumindo formas diversas e retornando à origem. Cada um deles atribuiu essa origem a um elemento: Tales de Mileto à água, Anaximenes ao ar, Xenófanes de Cólofon à terra , Heraclito de Éfeso ao fogo, Pitágoras à propriedade dos números como símbolos da harmonia e, finalmente, Empédocles de Agrigento atribuindo à natureza os quatro elementos básicos , combinados e recombinados através de forças opostas, Philia (amor) e Neikos (ódio). Essa busca pela origem de tudo estriba-se no pressuposto metafísico da Gnosis . A Gnose é um saber interior adquirido por nossas próprias experiências e entendimentos, sendo mais que consciência por incluir a experiência do significado. Se na alquimia era o Corpus Hermeticum, correlacionando o micro e o macrocosmo, hoje na filosofia é o campo da epistemologia.
Vejamos nos Ritos de Iniciação maçônicos a sequência, seu significado à luz da psicanálise junguiana e uma correlação com a obra do artista. A Cerimônia de Iniciação Maçônica principia com a reclusão do neófito na Câmara de Reflexões, em que o postulante é despido de todos os metais, simbolicamente voltando à nudez adâmica e a perda das aquisições terrenas, portanto dos vícios e paixões. A Câmara, carregada de simbologia significando a instabilidade da vida humana, começando pela sua cor negra e trevas, é o local onde impera a ignorância, paixões e vícios que devem ser abandonados, interpretada por Jung como o lado sombrio (Anima) da personalidade. Crânio e tíbias cruzadas são a oposição corpo/espírito, para Jung a transformação; a ampulheta marca que o tempo é agora, o baixo pode se tornar alto e cabe ao homem inverter seu curso; o galo anuncia o aparecimento da Luz, o despertar da consciência; a sigla V.I.T.R.I.O.L. originada na alquimia “explora o interior da terra corrigindo encontrarás a pedra oculta” significa vai ao profundo de ti mesmo e encontrarás a consciência, em Jung a reconstrução do Si-mesmo , ou seja a psique inteira, não apenas o ego. A Câmara de Reflexões deve ter se originada nos Mistérios Menores de Elêusis, na Grécia arcaica, realizada numa caverna em Agra, próxima a Atenas. Era a descida ao mundo subterrâneo e seus ritos davam significado aos mitos religiosos principiando pela purificação, conduta no mundo físico e aperfeiçoamento humano. Jung compara essa fase ao Vaso Hermético dos alquimistas, equivalente a um círculo mágico, absolutamente fechado para que não haja contaminação do exterior no processo que se passa no interior, e do qual nada possa escapar. É a matrix ou uterus,onde a prima materia de Paracelso , a massa confusa composta pelos quatro elementos irá ser separada, por isso na maçonaria é um recinto fora do templo.
Segue-se então na maçonaria a primeira prova, a da Terra, que interpreto como uma “queda adâmica”, a entrada do neófito em contato com o Pavimento de Mosaico, símbolo da polaridade na natureza e no qual os maçons devem caminhar em busca da perfeição. Juarez Machado interpreta a Terra com duas figuras em oposição, o homem que lavra a terra com o arado, a mulher junto a espigas de trigo lançando as sementes. O simbolismo é explícito, passar o arado é unir homem e mulher, o começo do mundo, situação de conflito entre consciente e subconsciente, na construção da psique junguiana. As espigas de trigo, existentes desde os Mistérios de Elêusis e presentes na Câmara de Reflexões, através de suas sementes atiradas ao solo representam o germe espiritual, o estado potencial que deve ser desenvolvido para vir à Luz o novo indivíduo.
Seguindo o ritual ocorre a Primeira Viagem, a do Ar, como emblema da vida humana, os sons representando o choque das paixões, lutas e obstáculos nos tumultos da vida exterior. Jung ao falar sobre esse elemento na alquimia diz ser elemento puro, não alterado, leve e invisível, interiormente pesado, visível e sólido, interpretando os pares opostos como características de todo fato psíquico no estado inconsciente; trata-se assim da concretização de conteúdos do inconsciente, que não pertencendo ao mundo empírico são a priori de caráter arquetípico. Juarez apresenta o Ar como elemento de conciliação dos opostos, homem e mulher empinam pipas (psicologicamente uma possibilidade de elevação), copas de árvores são agitadas pelo vento,assim como os geradores eólicos e o veleiro,expressão da energia manifesta.
A segunda Viagem nos ritos iniciáticos é a da Água, com caráter de batismo filosófico, lavando as impurezas e ilusões do oceano da vida, a água lustral da ablução com caráter regenerador. Jung vê a água como símbolo das energias inconscientes encerrando o conteúdo do Inconsciente Coletivo, uma objetividade ampla e aberta ao mundo, porém também do segundo nascimento pela gnose (atitude perante a vida) durante o processo da individuação através do autoconhecimento e auto-transcendência. Aqui Juarez mostra o elemento Água como um esforço conjunto de identidades em posições opostas, homem e mulher vertendo a água, na caracterização apontando um núcleo de significado inconsciente para o artista, a Água como local do meio e de confronto.
A terceira Viagem maçônica e último elemento da iniciação é a do Fogo, fonte de toda criação, calor e luz contemplando a verdade que se esconde no próprio ser, passando pelas chamas e recebendo o incenso que eliminará todos os vícios. Em todos os ritos iniciáticos a purificação pelo fogo é complementar à da água, distinguindo-se contudo desta porquê o fogo simboliza a compreensão, enquanto aquela é a purificação dos desejos. Para os alquimistas nos fala Jung, era o Philogiston, a força do calor inerente à matéria, a energia onipresente de Heraclito, que em sua psicologia pode significar o Eros exacerbado, a emoção como fonte principal na tomada de consciência. Juarez concebe o último elemento como mulher e homem entrelaçados, segurando entre si a pira com o fogo. Nada mais claro, o vaso aqui é o Krater,vaso de misturas hermético com a unificação dos opostos, na apresentação arquetípica do hieros gamos ( as núpcias químicas), confronto e assimilação com a metade obscura da personalidade, a sombra junguiana.
Finalizando o conjunto Juarez deu-lhes acabamento dourado, homenagem ao centenário da ACIJ, ou seria no inconsciente essa a meta final do ouro filosófico, a transformação dos elementos na busca do conhecimento para chegar à Verdade, naquele penoso processo da individuação, reconhecimento de nossas virtudes e limitações.
Quanto ao significado reportemo-nos a Jung ao citar Paracelso, pai da Alquimia: “ O que mais é a imaginação, senão o Sol Interior ?”
Walter de Queiroz Guerreiro Crítico de Arte (ABCA/AICA)