DESASSOSSEGO, MAL DO PESQUISADOR

Tudo é relativo, até o eu, diria Fernando Pessoa.

Desassossego, como o dele, sonhador que raciocina: “há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber claramente”.

Espírito de pesquisador? Quiçá. Ele nos diz: ”há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama de cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade. A erudição da sensibilidade nada tem a haver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar”. Uma aula creio, para um pesquisador.

O que leva um pesquisador a essa busca? Questão de comportamento, personalidade, influência do meio, sensação de vazio no “estado de conhecimento”, autorrealização, tensão psíquica e aqui, citando Freud, ligada ao princípio do prazer?

Revejo buscas, o desnucleamento parcial por micro manipulação de amebas, no estímulo da reprodução assexuada; a pesquisa documental para um Thesaurus sobre a vida dos bandeirantes nos séculos 16 e 17; o possível uso como contrapeso, similar aos atlatl polinésios, em artefatos líticos no sambaqui do Tenório (SP); a poética da paisagem na pintura flamenga do século 15, a partir da pintura de Gérard, da ordem hospitalar dos Cavaleiros da Ordem de São João de Haarlem; as espadas Takouba e Kaskara dos tuaregues, revelando traços dos cruzados, do Al Andaluz no século 14 e da expansão islâmica no Sudão; a obra pictural de Hugo Calgan, personagem misteriosa e autor do Pano de Boca do Teatro Harmonia-Lyra, e tantas outras, com denominador comum: o desassossego.

Isso vem a propósito de uma indagação surgida em recente reunião da COMPHAAN, a partir da solicitação de retirada de imóvel, no gênero enxaimel. O prof. Afonso Imhof se manifestando sobre o assunto comentou que a palavra é obscura, o estilo de construção longe de ser germânico é comum a outros povos, inclusive o normando. De fato, desde a Idade Média, seja na Alemanha com o nome de Fachwerkbau, na França como Colombage, no Reino Unido como Compartment Shelf, o método construtivo é o mesmo, surgindo aqui com o nome enxaimel. A Dra. Sandra Guedes comentou então: eis aí um assunto para pesquisar. Foi a minha deixa, o desassossego sobre a etimologia da palavra.

Consultei inicialmente meu companheiro de todas as horas, sempre a meu lado, o Dicionário Houaiss, e lá estava: origem obscura, talvez do árabe (!) enxamél, 1813. Por via das dúvidas fui ao Aurélio e ao Michaelis, sem sucesso. Lembrei-me então de pegar na estante o Diccionário Contemporaneo da Língua Portugueza , na edição princeps de 1881, e lá estava, Enchamel: termo de carpintaria designando madeiras que formam a armação das paredes tapadas com tijolos ou alvenaria/ etimologia do francês : Chamail, daí, em chamail.

Busquei então o Larousse que registra chamaille com o sentido de discussão por motivo fútil, e o verbo chamailler, mas não chamail. Isso demandava resposta, fui ao ictionnaire Historique de l’Ancienne Langue Française Godefroi que não o registra, diante do impasse, restava ainda o Dictionnaire Étimologique de la Langue Française, que assinala chamail como discussão desenfreada, aparecendo em 1307-1315 no sentido de se bater, cortar em pedaços no combate. E mais, diz que a palavra surge na língua a partir do normando.

Restava confirmar, fui ao Dictionnaire du Patois Normand e a busca terminava, inclusive com a explicação, que no dialeto normando o final ment é forma habitual nos advérbios, por isso chamaillment, citando textualmente texto arcaico: “ Le suppliant estoil a ung bois, appele Le bois chamaillant...” ( o suplicante tomou uma madeira, chamou a madeira de briguenta...).

Eis então a etimologia, explicando a origem da palavra e a História subjacente, do dialeto normando no século 13 para o francês no século 14, e deste para o português; de uma luta desesperada, quem sabe, de normandos e franceses aliados em 1066, na Batalha de Hastings enfrentando os ingleses, estes armados com achas-de-armas, machados de lâminas duplas e os cortando em pedaços, memória por fim pacífica na carpintaria, daí para o apelo romântico das casas em enxaimel.

Tenho diante de mim uma obra emblemática, pintura de Evandro Carlos Jardim, adquirida de um mestre e amigo, o Prof. Pietro Maria Bardi, que me chamava carinhosamente de”scholar.” O título: “Horas vazias”, o tema: um sobrado típico paulistano de inícios do século 20, e apoiados, com mesmo peso visual, como extensão da casa, os dois volumes do Caldas Aulete. Horas vazias? Não, a casa como repositório das memórias vividas, assim como o dicionário.

Arrisco versejar, inspirado em Fernando Pessoa, e no desassossego:

O investigador investiga a dor,

aquela perene e esquiva

que retém na mente,

dor ou semente.

Walter de Queiroz Guerreiro

Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 21/06/2014
Reeditado em 21/06/2014
Código do texto: T4852941
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