REFLEXOS DE BRUGES
Pensar em Bruges é pensar no passado, na vida pujante de uma cidade do século XV e sua morte alguns séculos depois, e ao olhar a imagem captada pelo artista penso nos espelhos, instrumentos comuns entre os eruditos renascentistas, que na Idade Média haviam adquirido fama de enciclopédias por refletirem tudo, metáforas visuais para uma coletânea de conhecimentos, quiçá universais.
Bruges foi capital da província de Flandres, residência dos Duques de Flandres e da Dinastia de Borgonha,centro de produção e comercialização da lã, sede da primeira Bolsa Mercantil mundial devido à família Van der Beurse de onde surgiu o nome Bolsa, até que o assoreamento do porto, o deslocamento da corte para Antuérpia, ocupações sucessivas por espanhóis, austríacos, franceses e holandeses a empobreceu, tornando-se “Bruges, La Morte”, sinônimo de cidade adormecida e misteriosa.
Os significados dessa imagem captada por Alceu Bett abrem relações mágicas entre tempos diversos, criam mediações entre modos de representar o mundo, de um lado a imagem direta, real do perfil da cidade no passado, de outro o reflexo numa vitrina, competindo de igual para igual, é imagem especular, poderia ser uma ilusão, e existe, portanto é um duplo exato de algo que não está à nossa frente e, ao mesmo tempo é uma ilusão dos sentidos.
Reflexo de uma gaiola dourada repleta de antigos relógios, por sinal de despertadores aprisionados, que já em si são metáforas do despertar da consciência, como duplicação da realidade entre o perfil da cidade e a imobilidade do tempo capturado nos leva não a outro lugar, mas à convergência mágica de todas as horas e de todos os lugares num único presente.
A passagem do tempo é um processo intuitivo que desperta questões, o que se entende por tempo e como isso se articula com as temporalidades, historicamente percepções do tempo. Aquela realidade mensurada pelos relógios responde a transformações físicas e sociais até chegar ao “absoluto matemático” que, sem relação com as coisas externas, se dirige à eternidade. Essa é nossa atual consciência, estamos inseridos no tempo, a história é indissociável dele e não podem coexistir tempos diversos, resta, porém uma questão, como experimentar a sensação de tempo sem existir conexão entre passado, presente e futuro.
Aos artistas e poetas cabe a resposta, lembro aqui de Henry Wadsworth Longfellow, em “The Belfry of Bruges and other poems” reunindo em versos essa sensação de imobilidade, relógios e passagem do tempo:
By day its voice is low and light /But in the silence dead of night… […] /Along the ceiling, along the floor,/And seems to say, at each chamber -door-/“Forever-never!/Never-forever”!
Durante o dia sua voz é baixa e clara/mas no silêncio mortal da noite... [...] ao longo do teto, ao longo do chão,/parece dizer, em cada quarto -em cada porta-/”Sempre-nunca!/Nunca-sempre”!
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA).