A CASA COMO TEMPLO

Os primeiros indícios confirmados de significados simbólicos na casa de Ottokar Dörfell, o “Schlösschen” (castelinho), atual Museu de Arte de Joinville, aparecem numa carta de 10 de janeiro de 1866, enviada por ele à sua irmã Thekla moradora em Glauchau (Saxônia), comentando sobre a nova moradia recém construída, que pretendera ocupá-la no Natal de 1864, e que por motivos diversos se depreende ocorrida em 1865, “com a chegada dos gafanhotos” (início do verão). A descrição pormenorizada é acompanhada de uma planta de próprio punho, ressalto então aqui pontos de interesse para este texto. Diz ele: “a moradia forma uma casa de esquina, cujas duas frentes principais tem cerca de 26 metros de comprimento, as quais estão direcionadas para o sul e para o leste”, justificando que para o norte “vem o nosso calor de verão ou o nosso lado ensolarado”. Prossegue dizendo que “por meio de uma escada de seis degraus chega-se inicialmente à varanda da casa, formada por colunas maciças com arcos ogivais”... Bem adiante se refere a emblemas maçônicos e a um aforismo, gravado em pedra (sic) e datado de 1864. Num salto no tempo vejamos o relatório da arquiteta Lilian Mendonça Simon da Fundação Catarinense de Cultura, datado de quatro de abril de 1984, que, ao descrever a importância do imóvel assinala: “ com características atípicas da arquitetura local apresenta planta em “L”, com varanda saliente no canto externo”...

Eis aí nosso ponto de partida, a implantação da casa no terreno, com duas frentes, mas sua entrada situa-se ao sul, orientada como nas igrejas e templos, o acesso ao Ocidente. O inusitado de a varanda formar um bico fica claro na planta, é um compasso aberto, uma das jóias móveis maçônicas, emblema da medida e da justiça, o relativo e o absoluto na dualidade das hastes e em sua união. O compasso indica as possibilidades do conhecimento, quando associado aos graus maçônicos seu limite máximo de abertura é de 90 graus, acima do qual o homem não pode ultrapassar ao reproduzir o equilíbrio entre espírito e matéria, é o de Mestre, como ocorre aqui. Observando a planta como foi vista pela arquiteta, do norte para o sul, percebemos que a inusitada construção em L reproduz o esquadro, a segunda jóia móvel maçônica que simboliza equidade, disciplina, retidão; no caso do cargo de Venerável os braços não são iguais, estão numa relação de três por quatro, como os dois lados do triangulo retângulo dos pitagóricos. A razão: o Venerável transforma a pedra bruta dos neófitos em pedra cúbica, mais uma vez, na casa, os lados desse esquadro reproduzem essa escala.

Saltam à vista de qualquer observador os dois emblemas junto às colunas de entrada, uma flor e um escudete. As colunas elaboradas são o sustentáculo do templo, que de acordo com a tradição bíblica eram colocadas diante do templo de Salomão, denominadas na maçonaria como “J” e “B”, abreviaturas de Jachin ( em hebraico : ele estabelecerá) e Boaz ( em hebraico: na força), ou seja Deus estabelece o templo e a religião (sua força) da qual ele é o centro. Também J é IOD, Deus, o Princípio; B, a segunda letra do alfabeto, BETH, significa casa. Portanto vamos à leitura: o princípio, a maçonaria (J), na casa, o templo (B).

As colunas se situam antes do átrio do templo, e no Rito de Schröder do qual Ottokar fazia parte “J” fica à esquerda e “B” à direita, como no rito francês. Assinalam elas os limites do mundo profano, uma antinomia cujo equilíbrio jamais será conseguido, forças opostas, mas necessárias. Quanto à decoração correspondem tradicionalmente às três ordens arquitetônicas: jônica, dórica e coríntia, respectivamente na maçonaria ao Venerável, Primeiro Vigilante e Segundo Vigilante, Sabedoria, Força e Beleza na seqüência. No nosso caso o antefix dos capitéis nas colunas corresponde à tradição da ordem coríntia, portanto ao Segundo Vigilante e à beleza. O antefix (do latim antefigere) é um elemento colocado à frente de uma decoração arquitetônica que pode ter caráter de proteção, aqui são as folhas de acanto coríntias, que de acordo com Vitruvius desde o século V a.C. ornamentam esses capitéis. Aliás, as folhas de acanto tradicionalmente são empregadas nos capitéis das colunas laterais no pórtico da parte ocidental nas lojas maçônicas, uma vez que a folha de acanto por possuir espinhos simboliza as dificuldades a serem vencidas, provações da vida e morte que se transformam em glória.

Vejamos, junto à coluna “J”, a de IOD, portanto à esquerda, Ottokar pôs uma placa de cerâmica com uma flor de acácia. Essa flor é o símbolo por excelência da maçonaria como iniciação, representa inocência e imortalidade da alma, anuncia não a destruição do ser pela morte, mas uma renovação, e é a árvore sagrada do grau de Mestre, consagrada à luz do dia, por extensão, da verdade. Junto à coluna “B”, a da casa, colocou um escudo heráldico na forma adotada pelos alemães no século XIV, encimado pelo nome de família Dörfell em letras góticas. No campo do escudo a figura de uma serpente, o duplo da alma que possui duas valências no processo alquímico da regeneração, encravada por seta na cabeça, simbolizando o poder divino realizado através da inteligência.

Completando os símbolos maçônicos Ottokar colocou na cumeeira um cata-vento que afirma o religioso, encontra-se no domínio mitológico pela descrição de Vitruvius ( séc. I a.C.) já que assinala a presença de uma divindade. No presente caso é um galo sobre uma estrela; o galo tem profundas ligações com o culto solar, é o triunfo da luz sobre as trevas, na Bíblia é símbolo da inteligência emanada de Deus, e, por extensão, da vigilância. Na maçonaria já aparece na Câmara de Reflexões antes da iniciação do neófito, com a sentença “vigilância-perseverança”. A estrela colocada é o “Selo de Salomão”, um duplo triangulo entrelaçado como manifestação e evolução duais do Cosmos, os mundos físicos fogo e água, espírito e matéria; o triangulo com vértice voltado para baixo como manifestação do Criador, em contraposição ao ascendente como elevação do homem, é a quintessência da “Câmara do meio” alcançada no grau de Mestre.

Voltemos à carta de Dörfell e ao aforismo gravado “em pedra” (na realidade uma placa de cerâmica), onde se lê: Ottokar e Ida/ “ No lar e no coração, haja sempre liberdade, paz devoção”/ 1864. Um aforismo no conceito de Friedrich Schlegel, filósofo, cabeça do movimento do Romantismo alemão, tradutor de sânscrito e estudioso das tradições indianas, é definido como a maior quantidade de pensamento no menor espaço. Uma publicação da “Folha da Loja Hanseática” (informativo do Círculo dos Mestres de Hamburgo e Schleswig-Holstein) datado de dezembro de 1955 traz uma “prancha” assinada por .’. H. Maschmann sobre a simbologia da Luz, reconhecendo no Rigveda a iluminação do consagrado. O Rigveda (cuja tradução é conhecimento) é a mais antiga literatura sagrada indo-européia em 1.500 a.C., formada por hinos rituais sacrificais devendo ser interpretados de forma simbólica e metafórica, ao contrário das religiões abraâmicas ( Torá, Bíblia e Corão) as quais exigem interpretação literal. Festejava-se pelo fogo sagrado o fim da era de escuridão e Agni como a luz do mundo, que afasta o mal do limiar e protege as casas.

Lembremos que o Rito de Schröder, também conhecido como Rosacruz Retificado entrelaçava saberes e princípios da alquimia e magia, no sentido de conhecimentos herméticos da natureza como os chakras em certos cerimoniais, com os significados teosóficos, simbólicos e filosóficos dentre os quais os Vedas, para alcançar a iluminação interna que permite vislumbrar o caminho. Segundo os Vedas o lar de um indivíduo é seu maior templo, assim construí-lo diz B.P. Wadia, é construir a ponte entre o céu e a terra, aquele que se prepara para conhecer o infinito deve conhecer o finito.

Desde sua iniciação em 27/02/1848 na Loja “A irmanação da humanidade” em Glauchau, até sua adoção em 1856 na Loja “Amizade alemã no Cruzeiro do Sul” onde em 1862 alcança o grau de Venerável Mestre de São João, durante cinqüenta anos até seu afastamento em 1892 pela avançada idade como Mestre de Honra ad vitam, sua vida se pautou pela retidão dos ensinamentos, e a placa em sua moradia reflete a vida de Ottokar e Ida (née Günther) Dörfell, em local elevado: a casa como um templo.

Walter de Queiroz Guerreiro

Historiador e Crítico de Arte ( ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 20/06/2014
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