ICI JOINVILLE
Defronto-me com difícil tarefa, comentar exposição na qual o artista é sua própria obra, construindo personagem marcado pela irreverência. Trata-se da exposição “Soixante-Dix”, sim, em francês: 70 anos, que Juarez Machado completou em 2011, realizada em Paris, depois Florianópolis, e agora em sua cidade natal, Joinville. Qual título dar a esse texto? Pareceu-me “Ici Joinville”, impróprio do ponto de vista jornalístico, uma vez que nossa língua é a portuguesa, mas apropriado como blague para alguém que é apaixonado por Paris, e se propõe a expor e se expor frente ao mundo.
Como herói moderno faz aquilo que Nietzsche apregoa: “vive como se o dia fosse chegado”, tal como Dédalo constrói um labirinto com passagens ocultas, procurando vencer suas limitações humanas, e atuando da mesma forma que Dédalo, como aquele artista desinteressado, além de todo julgamento social, cuja única moral é a de sua arte, não a de seu tempo.
Em outras ocasiões comentei que seu trabalho respira e vive o poeta Paul Verlaine, a ambientação e os trajes por ele envergados, as imagens criadas rescendendo à Belle-Époque, ao decadentismo de Oscar Wilde e Gabrielle D’Annunzio, um interminável Fin-de-Siècle, que ele não viveu nem faz parte de sua história de família como da maior parte dos brasileiros, porém que revive em toda sua trajetória, dândis e melindrosas voltados ao prazer dos sentidos, em contorções acrobáticas da La Goulue, nos registros de Toulouse Lautrec e das noitadas no Le Chat Noir. Figuras anacrônicas vagueiam entre mútua interpelação e vontade erótica em um mundo de festas, no qual o champagne não é simplesmente a bebida alcoólica, mas a aura de um líquido, ostentando aquilo que está oculto, a liberação dos sentidos.
Quando o artista se retrata com o que ele mesmo intitulou “Jóia de um tarado”: colar de fechaduras e brinco de chave, é clara a alegoria da abertura da porta, o acesso do desejo a seu objeto, e a algo interdito que pode ter inúmeras conotações, inclusive a do voyeurismo, a desorientação de que Freud nos fala, de uma estranheza inquietante frente à realidade material e a realidade psíquica. Irei mais longe, em princípio todo artista é um voyeur, existe uma dialética entre o olhar que perscruta e a imagem que se entrega.
Uma exposição pintada em preto e suas nuances, apenas o artista, que se auto-retrata em cor, indago, além da proposta estética, qual o sentido? O negro é o valor absoluto assim como o branco, aquele simbolicamente associado às trevas originais, a passividade absoluta, mas também da morte iniciatória, da inconsciência, mas, fica aqui a pergunta, sabendo que recentemente Juarez Machado foi iniciado na Maçonaria e as cores estão associadas aos Mistérios e aos graus, não teria sido essa escolha, consciente ou inconsciente, a do renascimento para uma nova vida?
Quanto aos chistes como juízos de nonsense eles se sucedem, os sete anões que quebraram seu brinquedo favorito: a Branca de Neve, e a lançaram ao lixo; a bicicleta com rodas quadradas, como metáfora da ingenuidade humana na falta de sentido de acrescentar algo para atingir um objetivo, resposta à pergunta para que reinventar a roda, uma ironia aos avanços tecnológicos que nada acrescentam; a caixa mulher-violão: continente e conteúdo numa única peça. E mais, os fraques, redingotes, túnicas de almirante, asas de anjo e escarpins com querubins, em que o travestismo como chiste dirige-se a pessoas e objetos que reivindicam autoridade e respeito, e no sentido freudiano são “sublimes”; a guilhotina como presente familiar, indicando psicologicamente (castração pela “decapitação”) a punição pelos excessos libidinosos que permeiam sua obra, e o “gran finale”: “ O príncipe sapo”, o artista coroado, que dá o mote ao meu raciocínio.
Sim, digo isso, pois, parafraseando Victor Hugo o título dado pelo artista à essa exposição deveria ser “L’artiste s’amuse” (o artista se diverte),que naquela época era a peça teatral “Le roi s’amuse,” (o rei se diverte), como provocação às escapadas amorosas de François I d’Angoulême, visto pela censura como dirigida ao rei Louis Phillipe I e como tal proibida, e revista posteriormente por Verdi, na ópera Rigoletto.
Ici Joinville, l’artiste s’amuse ( e nós também).
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA-AICA).