LENDAS DO PARAÍSO
A criação da mulher
“E da costela que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher; e a levou a Adão. E Adão disse: eis aqui agora os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne (...)”. Gênesis, 2;22.
“E no princípio Deus fez o céu e a terra,
Pela potência da sua Vontade exercida.
Para dar sentido ao que nela se encerra,
Povoou-a com diversas formas de vida.
E assim formou-se o reino dito animal,
Com criaturas da terra, da água e do ar;
E para dar remate a essa obra magistral,
Ele fez o homem, sua criatura modelar.
Do pó da terra ergueu o homem Adão;
Com um sopro o tornou alma vivente.
Multiplicar-se lhe foi dado por missão.
Para garantir a produção do resultado,
Fez a mulher, a criatura surpreendente,
Que todo homem necessita ter do lado.”
Do livro “ O Parto de Deus”, Recanto das Letras, 2014.
A Bíblia diz que Deus fez a mulher a partir de uma costela de Adão, que ele tirou e usou como matéria prima para essa engenharia genética, digna do melhor cirurgião moderno. Essa visão bíblica, que mostra Deus como se ele fosse uma espécie de Dr. Frankeinstein das calendas, seria engraçada se não constituísse uma crença defendida com unhas e dentes pelos seguidores das religiões de origem judaico-cristã, que nela enxergam, não apenas uma curiosa metáfora, mas sim uma verdade literal mesmo.
É evidente que o cronista bíblico que criou essa curiosa versão da criação da mulher não deve ter obrado no vazio. Quer dizer, essa informação não foi gerada a partir do nada, ou seja, não saiu da sua cabeça nem foi trazida por um anjo do céu, como se costuma acreditar que tenham sido veiculadas a maior parte das notícias milagrosas que se encontram na Bíblia.
Na verdade, essa metáfora tem uma justificativa muito importante na própria tradição da sociedade oriental, fundamentada no poder patriarcal. Os cronistas bíblicos não inventaram nada. Eles apenas refletiram a sabedoria vigente naquele tempo, e reproduziram histórias, lendas e crenças em voga no ambiente em que viviam. Por isso a Bíblia apresenta uma extraordinária coerência entre os temas nela tratados, como se fosse um verdadeiro compêndio habilmente produzido para uma finalidade específica. E isso é o que ela efetivamente é. Um livro que foi escrito com claros propósitos políticos e ideológicos, com evidente intenção de justificar a ideologia de um povo ─ no caso, o povo judeu ─ e justificar as suas pretensões no contexto geopolítico de um território [1]onde as disputas territoriais, as diferenças culturais e a luta pela sobrevivência eram, e ainda continua a ser, extremamente acirradas.
Nesse sentido, a descrição bíblica da criação da mulher reflete apenas o pensamento vigente nas sociedades que se formaram nessa conturbada região da terra, que é o Oriente Médio. É sabido que entre os homens dessa região, especialmente os de origem semita, existe a tradição de ver suas famílias como se elas fossem um todo orgânico que se confunde com o seu próprio organismo. Assim, eles enxergam seus filhos, filhas, irmãos e consortes como sendo seus próprios braços, pernas, ouvidos, olhos, etc. Daí uma fórmula metafórica, dos patriarcas da família se referirem ao seu clã somo se fosse ele próprio. Encontramos essa formula linguística em várias passagens bíblicas, especialmente nos discursos eclesiásticos. Assim, não é estranho que a mulher tenha sido colocada aqui numa escala inferior ao homem, como elemento tirado da sua costela, embora se reconheça, nos textos sapienciais, que ela constitui a espinha dorsal da família. Assim, associá-la à costela do macho é, ao mesmo tempo, uma moção de reconhecimento à importância do lugar que a mulher ocupa na hierarquia da família patriarcal, como também uma declaração da sua posição inferior nessa mesma hierarquia.
A posição inferior da mulher nas sociedades orientais é um fato histórico e não meramente um anacronismo cultivado por povos cuja evolução sociológica se cristalizou no tempo. Ela é visível ainda hoje, tal como era no tempo dos patriarcas hebreus e remanescia nos dias dos primeiros cristãos, quando se vê o Apóstolo Paulo dizer às suas discípulas femininas que “em tudo fossem sujeitas aos seus maridos”. A propósito, em seus escritos, o apóstolo Paulo nos aparece como sendo profundamente misógino e defensor da condição inferior da mulher, já que ele nega a elas o direito de evangelizar e batizar, atribuição essa que ele reconhece ser atributo unicamente masculino. Em uma de suas cartas aos cristãos de Corinto, na Grécia, ele escreve que "No tocante às coisas sobre que me escrevestes, bom é que o homem não toque mulher"[2]. Provavelmente foi a misoginia imperante entre os primeiros cristãos que inspirou a regra estrita do celibato entre os sacerdotes católicos, que hoje em dia tem gerado tanta controvérsia face ás constantes denúncias de práticas sexuais promíscuas entre eles. No entanto, antigas tradições conservadas pela literatura cristã alternativa, conhecida como Evangelhos Gnósticos, sustentam que uma melhores discipulas de Paulo foi justamente uma mulher chamada Tecla, jovem nobre síria que teria se tornado sua discípula e foi uma das principais disseminadoras da sua doutrina na região, sendo inclusive reverenciada como santa nos primeiros séculos do cristianismo.[3] E segundo essa mesma literatura, considerada apócrifa pela Igreja, uma das maiores divulgadoras das doutrinas de Jesus teria sido Maria Madalena, de quem os discípulos oficiais, especialmente Simão Pedro, sentia um grande ciúme.
Todavia, durante milhares de anos as exortações bíblicas foram invocadas para manter a mulher na posição de mera auxiliadora do homem, como a Bíblia se refere a ela, até que um dia elas começaram a queimar os sutiãs e lutar pela revogação desse estatuto preconceituoso e repressor que os nossos legisladores bíblicos nos legaram.
Mas segundo alguns estudiosos já houve um tempo na história da humanidade em que as mulheres é que mandavam. Foi a chamada era do matriarcado, quando toda a autoridade social era exercida por uma matriarca, escudada no fato de que somente a mulher pode atestar como legítima a descendência dos laços de família. Essa é uma tese defendida por intelectuais de renome como Johan Jakob Bachofen, por exemplo.[4]
Bom, seja qual a verdade histórica por trás desse tema, o fato é que sem mulher não dá. Por cima ou baixo, ela é fundamental para qualquer programa de vida que a espécie humana queira desenvolver.
1Gênesis 2:22
[2] 1-Cor 7:1
[3] Atos de Paulo e Tecla- Os Evangelhos Gnósticos- Ed Mercúryo- São Paulo, 2006
[4] Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887) foi um renomado jurista e antropólogo suíço, que ensinou Direito romano na Universidade de Basileia, de 1841 a 1845. Suas teses sobre a precedênia da mulher na organização social e política nas sociedades antigas tornou-se um clássico da literatura no final do século XIX e início do século XX. Mother Right: an investigation of the religious and juridical character of matriarchy in the Ancient World ´´ é o título do seu livro clássico, que afirma ter sido o matriarcado o principio sobre o qual as primeiras sociedades foram organizadas, já somente a mulher pode ter certeza da origem da sua prole.