O POEMA LÍRICO

Raul Machado (*)

Se dizemos que um determinado tipo de poema é lírico, quais seriam sua natureza, seu conteúdo, sua origem, sua forma? O que o caracterizaria?

Comecemos por dizer o que não o caracteriza.

O poema lírico não apresenta o mundo dos fatos/acontecimentos de modo objetivo. Não nasce ou brota de uma necessidade de descrever a realidade exterior ao eu do poeta, isto é, do sujeito que se apresenta no corpo do poema, nem apresenta outros sujeitos/personagens além daquele que aí se expressa: o eu do poema.

No lirismo, predomina a 1ª pessoa gramatical – o falante – e suas marcas: verbo flexionado nessa mesma pessoa (sou, tenho, amo, etc.); presença dos indicadores: meu, minha, este, aqui, cá, me, mim, comigo, etc., como, por exemplo, em: //.../ nunca me esquecerei deste fato /na vida de minhas retinas tão fatigadas /...// (Drummond).

Nesse tipo natural de expressão literária, o autor, por vezes, se objetiva, falando de si mesmo na 3ª pessoa, como, por exemplo, em: //.../ O poeta é um fingidor /...// (Pessoa).

Outras vezes, por alquimia poética, deixa sua obsessão temática falar em seu nome, como, por exemplo, em: //.../ Não sou eu que tem fome. / É a fome que me tem /.../ A fome é meu outro, escumoso. / Não vim ao mundo para saciá-la, / mas acendê-la, contra a cupidez /...// (Maria Carpi).

Na lírica, o mundo exterior só vale, só se apresenta no corpo do poema, se for absorvido pela interioridade, muitas vezes inconsciente, do poeta. A este é impossível alienar-se, “se outrar”, como disse F. Pessoa, mesmo quando o poeta consegue autocriticar-se, como aconteceu em muitos poemas com o próprio Pessoa; talvez um dos poucos poetas a, na ânsia de conhecer-se, distanciar-se de seus próprios sentimentos (fingidos?) e ver-se sentindo.

Por vezes, no início de um poema, Pessoa fazia rápida alusão ao mundo exterior, para logo voltar-se para si próprio, como, por exemplo, em: //.../ No entardecer da terra / O sopro do longo outono/ Amareleceu o chão. / Um vago vento erra, / Como um sonho mau num sono, / Na lívida solidão /.../ Eu já não sou quem era / O que eu sonhei, morri-o /...// (Pessoa, Cancioneiro, 1979).

Como se vê, a poesia descritiva de uma exterioridade/paisagem só é lírica se o poeta dela se apropria para aí projetar seus sentimentos, seus “fantasmas” mais íntimos. O mesmo se pode dizer da poesia narrativa. No poema lírico, o elemento narrativo é mero pretexto para desvelar uma paisagem íntima, eufórica ou disfórica, como, por ex., em: // Numa certa noite de Natal, / aquele homem de uma grande metrópole / queria um abrigo para passar a noite, / um réveillon, uma mulher ou mesmo um bar servia /.../ E foi então que os sinos de Cristo / começaram a chamar o homem fugitivo / para o novo caminho em que Jesus seguia /...// (Jorge de Lima).

No poema lírico, elementos descritivos ou narrativos servem de símbolos reveladores de algum aspecto da interioridade do poeta.

O poeta lírico se imobiliza sobre uma ideia, uma sensação, uma emoção. A ele não interessa a corrente temporal. O poema lírico não conta uma história, nem desperta, no leitor, a curiosidade de saber “como vai acabar este poema”. Esta vontade de conhecer o fim das ações só é válida na narrativa (conto, romance) e no drama. Nesse sentido, ensinou o grande poeta português, Gomes Ferreira: // Que bom não saber como um poema acaba /.../ Apenas palavras que se buscam no papel / Com astros dentro, famintas de encontrar / O ilógico da Outra voz que por acaso revele / O avesso da sombra a fingir de luar. //

Entretanto, na nossa cultura gauchesca e campeira, vigora a valorização dos declamadores que “cantam versos”, contanto causos e descrevendo paisagens e seus elementos cotidianos (o pampa, a prenda, o cavalo a sanga, o gado, o chimarrão, etc.). Por isso a produção poética, enquanto forma lírica, isto é, portadora de sentimentos individuais, é de presença rara, em nossa cultura tradicionalista. Domina, talvez por influência, direta ou indireta, do grande payador do “Martin Fierro”, um caráter narrativo (contador de causos), descritivo (presença de elementos ambientais) e discursivo, já que os versos devem ser declamados para um certo público de ouvintes, com uma determinada impostação vocal. Trata-se, portanto, de uma falsa lírica. É uma arte poética mais próxima do caráter épico (histórico-discursivo, narrativo, descritivo).

Todavia, há, entre nós, bons poetas líricos. Alguns deles adeptos de uma estética predominantemente simbolista e/ou modernista, como Mário Quintana. Outros, pós-simbolistas, tentando em seus poemas, minimizar ou até abolir o caráter demasiado individualista da lírica, como é o caso de poetas como o nosso maior poeta-coral, Paulo Roberto do Carmo. Outros buscando construir um caminho próprio, como Mari Carpi.

Assim é que o panorama atual, entre nós, da arte poética de caráter predominantemente lírico, apresenta inúmeros autores. Todos eles, por mais diferentes que sejam entre si, apresentam características comuns, quais sejam: a) temática predominantemente urbana, dirigindo-se a um leitor habitante da cidade; b) incorporação de conquistas do modernismo (verso livre, experiências com o uso da linguagem, procura de novas sintaxes, valorização da inventividade e polissemia verbais).

Alguns já apresentam obra respeitável, especialmente para uma análise temática, como Armindo Trevisan, Dilan Camargo, Ricardo Silvestrin, Mário Pirata, José E. Degrazia, Laci Osório, Ricardo Portugal, Joaquim Moncks, Fúlvia Moretto e muitos outros.

Nesses nossos tempos bicudos (como dizia Quintana), pós-moderno, onde tudo vale e nada vale, impera o individualismo exacerbado. Cada poeta lírico é uma “escola”, solicitando de quem o aprecie/estude uma análise estilística individualizada, levando em consideração o mundo temático-linguístico de cada um.

Como se vê, por mais imperante que seja o individualismo atualmente, cada um desses poetas líricos (e todos) são exemplos das características próprias do mundo em que vivemos, dos valores sociais do chamado capitalismo liberal. Ninguém escapa, mesmo que o queira, ao seu tempo.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4780550

Este “O POEMA LÍRICO”, publicado acima, é de autoria do professor e poeta Raul Machado, que conta 83 anos, e me honrou com autorização explícita e recente para esta publicação. Vejamos o seu currículo de vida e obra, abaixo.

(*) Raul José Moraes Machado nasceu em 1931, em Caçapava do Sul/RS, cidade que, então, cultivava suas origens açorianas em solenes novenas do Divino Espírito Santo. Numa dessas festas, foi Imperador, personagem que exibia com o orgulho de seus cinco anos de idade. Nasceu aí, provavelmente, seu gosto pela atuação teatral que veio a desenvolver, mais tarde, já em Porto Alegre, quando, ainda universitário, começou a participar de grupos de teatro. Desde então, atuou em mais de 20 espetáculos, recebendo, em 1977, o “Prêmio Açorianos de Melhor Ator”, por seu desempenho em “Jogos na Hora da Sesta”. Toda essa atividade “teatreira” foi feita como “terapia ocupacional”. Sua ocupação principal foi o magistério. Licenciado em Letras Neolatinas pela UFRGS, foi professor de Línguas (Português, Francês e Inglês) e Literatura em várias escolas públicas e particulares. Lecionou, em nível superior, Metodologia de Ensino e Currículos e Programas, junto à Faculdade de Educação da UFRGS. Especializou-se em Linguística, na SORBONNE (1959 – 1960). Exerceu funções técnico-pedagógicas na Secretaria Estadual da Educação. Considera-se principalmente um linguista (português, latim, castelhano, francês, italiano, inglês; um pouco de alemão e um quase-nada de japonês). Colaborou com a Revista do Professor, onde publicou 23 trabalhos. Aposentando-se em l992, passou a publicar sua produção poética, sempre como edição do Autor, cujos títulos são: ”Graffiti e Epigramas”, “Carteira de Identidade”, “As Cinco Estações”, “Zen-Reversos” e “Porto do Corpo”. Obteve o terceiro lugar no Concurso Nacional de Poesia Lila Ripoll, promovido pela Academia Literária Feminina do RS e Menção Honrosa, em concurso promovido pela Assembleia Legislativa do Estado/RS. Publicou três livros de ensaios culturais: “De Poesia & outras Prosas”, “Por Caminhos da Cultura Brasileira” e “Culturas na Atualidade – Pré-modernas, Modernas e Pós-modernas”. Colabora mensalmente, com textos em prosa sobre assuntos de interesse cultural, e poemas, no RS Letras, do Instituto Cultural Português, de Porto Alegre. É autor de uma peça de teatro “Vala Comum”. Participou de várias Antologias de Poesia: “Autores Gaúchos – 2006” – Ed. Caravela, do Instituto Cultural Português, de Porto Alegre; “Autores Gaúchos – 2007” – do ICP; “Poetas Açorianos e Gaúchos” – do ICP; “Poesia Geminada – Porto Alegre & Açores”, do ICP, 2013, e “Coletânea da Poesia Gaúcha Contemporânea”, organizado por Dilan Camargo, publicado pelo Dep. de Relações Públicas e Atividades Culturais, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2012.