Brincando de Cabra Cega
Luciana Carrero*
Eu, como pessoa, sou um casal. Tenho amor e orgasmos comigo mesma. Gosto da minha relação de estar laranja integral e não precisar procurar a outra metade. Ser laranja inteira é um privilégio que faz-me bem acompanhada e feliz. Para completar, cultivo a literatura, que também é um ato solitário, mas que é minha companhia desejada, parecendo paradoxal dizer que me escolhi só. Na literatura e nas artes, em todas as suas formas, tenho um mundo inteiro, melhor do que o das metades de laranjas que não a sorvem. E este mundo da literatura não me vem com carmas. Há autores que dão a entender que a missão de escrever é uma condenação. Mas são frases de efeito. Na verdade estão fazendo manha, numa briguinha de amor com a literatura, para instigá-la a, de teimosa, ficar ao seu lado. Quem desdenha quer comprar. Além do mundo inteiro que tenho na literatura, para dar um colorido a mais, vivo brigando com Deus, porque acho que ele me botou nesta "fria" chamada vida. Depois se escondeu e não me dá nenhuma explicação. Mas, por enquanto, não quero sair da fria, já que estou sentindo ser a vida a única ilusão que um espírito nu poderia ter recebido. Um presente de materialidade que nos excita e encanta, apesar de tudo. A exemplo do citado escritor condenado, até acho que desdenho a vida para ficar com ela. Alguns chamam de solidão o viver sozinho, (no sentido de promiscuidade direta com outro ser vivo). Qual nada! Só, não tenho de estar pajelando carmas dos outros, dentro do meu reduto. E mesmo assim incomodações vêm bater à minha porta, ou encontrar-me nos caminhos externos em que ando, no meio da multidão, que para mim é um mar de meias laranjas ondeando e se chocando contra os rochedos. Sozinha vivo bem, porque penso que sei administrar meus carmas e contemporizar com a própria vida e com o divino, sendo este, - quem sabe? – a própria morte que nos deu a vida e ao final vem recolhê-la, como produto maduro para sua colheita. Pior do que estar relativamente só, do ponto de vista dos humanos, seria se eu tivesse comigo alguém para me impingir seus carmas, ou um filho tomado pelas mazelas deste mundo caótico, tirando a minha paz e meu “ser feliz”. Já falei para Deus que não quero responsabilidade com as loucuras de terceiros. Bastam as que carrego comigo. Espero que Deus não aceite minhas provocações para vir dar-me explicações, por enquanto. Sei que no tal momento terei a explicação divina, que é o derradeiro descanso, descanso inútil, todavia, e sem sentido, por não conter sentidos que tenho na matéria, sendo possível, para os humanos, que encontrar-se com Deus é finar-se. Gosto de solidão e de paz, mas nem tanto. Ao final da vida, deixarei aqui tudo, mas tudo mesmo, que construí, e mais o bagaço deste corpo, inclusive o maior patrimônio, que é minha memória. E irei para a tal de paz da eternidade como um espírito, também bagaço, sem o corpo material, o que me reduziria a zero, ao nada absoluto! O que? Terei ouvido falar em esperar por reencarnação? E voltar outra pessoa? Que bobagem! A mim não é consolo. Mas, em síntese, não quero voltar ao nada, não pelo nada em si, visto que estar nada é não ter consciência, e porque viver é, mesmo, viver a matéria onde encontro Deus. Algo me diz que a única oportunidade que temos de privar com o Criador é aqui, onde nossos sentimentos podem manter-nos ligados a Ele. Porque no eterno “não existir”, não terei sequer a mim mesma, quanto mais a Deus brincando de cabra cega comigo.
*Filósofa, escritora, produtora cultural. Reg. 3523, Lic/Sedac/RS