“No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam as faces do abismo; E o Espírito de Deus movia-se sobre as águas.”  Gênesis, 1; 2,3
                  
               Como era uma“Existência Negativa”,
               Que estava só no espaço atemporal;
               Ele Tornou-se “ Existência Positiva”,

               Fazendo para si  um corpo material.

 
               E quem  sabe  o Big-Bang dos ateus,
               Que os cientistas vêem no telescópio,
               Seja apenas o momento em que Deus,
               Esteja fazendo o parto de si próprio.
.
               Uma visão bem estranha,  reconheço;
               Mas assim se  logicisa uma  fantasia,
               E  o mundo tem a idéia de um começo.
 
               Tudo que fica desse tema controverso
               É a questão: O que é  que Deus fazia
               Antes de Ele dar início a o Universo?
[1]

                                                 
                   A unidade morfológica de Deus
                            
     A idéia da existência de Deus é um conceito universal, apriorístico e fundamental que a mente humana precisou desenvolver para justificar a sua própria existência. Sem esse conceito o homem seria um ser-meio, sem perspectiva de origem e finalidade, guiado unicamente pelas leis do próprio sentido. Se assim fosse, ficaria perdido em meio ao nihilismo de uma existência sem propósito, que só se justificaria pelo nível de prazer que conseguisse obter em cada ação que realizasse.
      A tentativa de encontrar uma unidade morfológica para o conceito de Deus é uma preocupação que vem dos primórdios da nossa história. Vários doutrinadores já intentaram essa façanha. Zaratustra procurou integrar esse conceito na sua doutrina dualista, que via na divindade Marduc/Aura Mazda a imagem da luz(o bem) e em Arimã a imagem das trevas(o mal); Lao Tse e os sábios chineses da antiguidade desenvolveram a  mesma idéia no conceito do Tao, o Sem Nome, príncípio único, incriado, que se equilibra na ação de duas forças contrárias, o positivo e o negativo (Yin/Yang); Na Ìndia dos brâmanes esse conceito se fundia em Bhraman, o Espírito de Deus, a não essência que congregava em si todas as formas universais.
 
      Nem o cristianismo escapou de se envolver nessa concepção dualística do universo. Elas aparecem em duas das suas mais interessantes experiências espirituais: o maniqueísmo e o catarismo.
      O maniqueísmo foi uma doutrina desenvolvida por Mani, um sacerdote de origem persa, que no século III da era cristã sintetizou as várias doutrinas gnósticas existentes na época, criando um vasto sistema de pensamento que influenciou várias seitas cristãs nos primeiros séculos. Esse sistema fundia elementos de cristianismo, judaísmo, zoroastrismo, taoísmo e hinduísmo, a partir da idéia básica que está na raiz de todas essas religiões, ou seja, a de que o mundo se equilibra entre duas forças fundamentais, que ele definiu como sendo a luz e as trevas. No desenvolvimento dessa concepção, Mani elencou os vários fundadores de religiões, como Buda, Zoroastro, Moisés, Jesus, como “mensageiros da luz”, pessoas escolhidas pelo Pai da Luz, o Deus bom, para ensinar as pessoas a libertar seus espíritos da prisão da matéria e encontrar a iluminação que os permitiria voltar ao “reino da luz”. Para Mani e seus seguidores, o mundo material era um mundo essencialmente mau porque tinha sido feito pelo deus das trevas. Dessa forma, a idéia de que Deus tenha mandado ao mundo seu próprio filho para salvar uma criação má era contraditória. A humanidade nunca se perdeu, como ensinava a doutrina católica. Ela já nascera perdida porque era cria do deus das trevas. Só podia ser salva pela constante e metódica depuração de seus elementos materiais, transformando-se, toda ela, numa entidade espiritual, liberta de todos os sentidos carnais e impurezas mentais que a experiência humana acumula sobre o espírito.[2]
     O catarismo ficou conhecido como heresia albigense, por causa da cidade de Albi, no sudoeste da França, onde existia uma das maiores comunidades cátaras. Como doutrina floresceu no século X, junto á comunidades cristãs dos Balcãs, praticado principalmente por uma seita de cristãos ascéticos chamados bogomilos.
      Para os cátaros, o ser humano deveria buscar a perfeição espiritual. Daí os sacerdotes cátaros serem chamados de perfeits. Justifica-se também a vida rigorosamente ascética que os cátaros e os seguidores dessa doutrina recomendavam aos seus adeptos. Entre outras coisas, essas crenças os afastaram completamente da Igreja de Roma, pois esta, para eles, era a própria encarnação desse mundo materialista, mau e dissoluto.   
      Jesus, para os cátaros, foi um grande profeta, que como Buda e Zoroastro, ensinou um caminho baseado no amor e no desapego pelos bens materiais (exatamente como pregavam os franciscanos) para se chegar á iluminação. A Igreja Romana era a antítese desse caminho, pois incentivava a violência, a guerra, a cobiça e o apego aos bens materiais. O próprio nome Roma era o contrário do Amor.
       Trazido para o sul da França no século XII, o catarismo conquistou uma vasta popularidade na região conhecida como Languedoc. A ela aderiram as principais famílias nobres da região, especialmente o poderoso Conde de Toulouse. A Igreja Católica perdeu completamente a influência nessa parte da Europa, onde os cátaros, por praticarem um cristianismo de natureza completamente diferente do restante da Europa católica, toleravam e conviviam bem com as comunidades islâmica e judaica, cuja influência também era bastante forte na região. Destarte, a intolerância do Vaticano e a ambição dos senhores feudais do norte, aliados ao desejo de hegemonia dos reis franceses, acabaram levando o Vaticano a promover uma ação militar contra os cátaros, na qual uma boa parte da população da região foi dizimada, em um dos mais crueís genocídios da História.[3]
 
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     Todavia, foram os hebreus que melhor sintetizaram o princípio da unidade morfológica de Deus na crença de que existina uma deidade única, universal e inominada, que era princípio e fim de todas as coisas. Com os hebreus, o conceito de Deus, que parecia uma abstração só possível á mente dos chamados filósofos, ou aos “iniciados”, tornou-se uma idéia de fácil absorção, acessível á mente do homem comum, pois a partir daí não precisava mais explicá-lo nem entendê-lo, mas apenas honrá-lo através de uma linguagem feita de ritos e comportamentos que podiam ser praticados e observados por qualquer pessoa.
      A crença hebraica, ao mesmo tempo que espiritualizou o conceito de Deus, tambem o humanizou, pois abriu ao homem a possibilidade de pensá--lo através de uma figura humana, que era mais mais fácil de respeitar e amar do que uma força da natureza, um animal, um astro, como nas antigas crenças babilônicas e egípcias, ou uma mera idéia abstrata que a mente não conseguia definir, como queriam os pitagóricos e os atomistas, os primeiros com suas místicas concepções fundamentadas na geometria e na numerologia e os segundos com sua visão panteísta da criação universal.  

      A figura que os hebreus atribuiam ao seu deus (embora lhes fosse proibido iconizá-lo), era a dos seus próprios patriarcas, símbolos da ordem, do respeito e da hierarquia que sustentava sua sociedade e representava o poder. Por isso é que o deus hebreu sempre aparece nos textos bíblicos como uma espécie de patriarca austero e inflexível, que ao mesmo tempo em que ama sem reservas os seus filhos, também os castiga impiedosamente quando estes se rebelam contra a ordem posta. Essa é a idéia que vem esplícita na tradução literal da Bíblia, e que foi plantada na cabeça do homem simples, que via a divindade como um ancião de barbas brancas, sentado em seu trono dourado, orientando e julgando a sua criação. [4]
      A idéia de que Deus não devia ser representado por nenhuma forma conhecida na terra parece ter sido uma inspiração de Moisés, ou de quem se passou por ele na redação dos livros da Torá. Não se percebe, nos textos do Gênesis, cuja finalidade é historiar os antecedentes históricos do povo de Israel, qualquer disposição nesse sentido. Aliás, a idéia que ali se expressa, a respeito da divindade adorada pelos ancestrais dos israelitas, é a de que se trata de um deus particular, que dividia o panteão das divindades palestinas com outras deidades dos povos da região. Os israelitas anteriores a Moisés não tinham a pretensão de que seu deus fosse um deus universal e estivesse acima de todos os demais. Ele era apenas a divindade que servia ao povo de Israel, e sua aparência era a de um ser humano, já que, segundo era a crença oficial dos israelitas, Deus havia feito o homem à sua imagem e semelhança. As interpretações posteriores dos rabinos israelitas, no entanto, sustentam que a espiritualidade do conceito de Deus já estava presente entre os antigos israelitas, e que Ele, em pessoa, nunca apareceu para ninguém, mas sim, que quando tais aparições ocorriam, era através de seus emissários, os anjos, e não de Deus mesmo. Foi assim que ele se manifestou a Abrão no Vale de Mambré e a Lot, em Sodoma.
      Nos demais casos, supõe-se que a comunicação de Deus com seus eleitos era feita somente na forma auditiva (somente a voz de Deus era ouvida) e nunca visual. Dessa forma, também, a Bíblia sugere que Deus se comunicava com os antigos patriarcas, pois em nenhuma de suas manifestações se anuncia que Ele apareceu visualmente a alguém, mas apenas que ele “falou” com tais personagens.  Embora nenhum texto bíblico informe que algum personagem tenha “visto” uma imagem de Deus, também não consta de qualquer texto que existisse uma proibição de dizer o seu nome ou representá-lo de alguma forma, pois que segundo se informa em Gênesis 2:8, Ele falava como um homem e “passeava pelo Paraíso, na hora da brisa, depois do meio– dia”.     
        A visão de um deus informe, impessoal e inominado parecia muito complexa para ser divulgada a um povo simples e pouco letrado, como eram os antigos israelitas. Assim, cristalizou-se a idéia de que Deus era semelhante a um patriarca que cuidava da sua família, defendendo-a quando ela estava em perigo, premiando os filhos que ficavam “na linha” e castigando aqueles que dela saíam. E nesse sentido se desenvolve toda a história fática do povo de Israel, como sendo a saga de uma família lutando para criar, impor e conservar um conjunto de tradições e uma crença, num ambiente hostil que tenta, a todo custo, destrui-la. Essa era a idéia que o próprio Jesus usava para ilustrar seu pensamento a respeito de Deus. Ele o descrevia ás vezes como um pai, ás vezes como um fazendeiro, um senhor de terras, enfim como alguém que estava no topo da hierarquia social e familiar, enfim, sempre como um chefe de clã. A diferença era o fato de que o Deus de Jesus não era um patriarca austero, rígido e iracundo como o do Antigo Testamento, mas sim uma entidade cujo julgamento se orientava pelo amor que Ele sentia por sua família. E foi assim que a ideía da unidade morfológica de Deus evoluiu na teologia universal e nos legou as concepções que hoje temos a respeito dele.
 

 
 

[1] João Anatalino-O Parto de Deus- Biblia Sonetada, Ed.
[2] De certa forma, essa idéia é retomada por Teilhard de Chardin em sua monumental obra “ O Fenômeno Humano”, Ed.Cultrix, 1968. Na filosofia teilhardiana, a soma das consciências humanas é uma entidade em ascensão, que se coletivisa e se torna uma espécie de “atmosfera”, chamada pleroma, que aureola a terra e promove a ascensão dos espíritos em busca de um ponto único de densidade energética, o Cristo, ou Ponto Ômega.
[3]   Entretanto, não se deve entender o maniqueísmo ou as doutrinas dualistas como sendo uma forma de politeísmo. Na verdade, elas são uma manifestação da unidade morfológica de Deus, outra forma de pregar o monoteísmo. Não se tratam de dois deuses, um deus bom e um deus mau, mas sim as duas faces de um mesmo princípio, manifestado em suas duas formas energéticas. De um lado, leis naturais que se manifestam caoticamente, produzindo realidades físicas sem qualquer organização (o mundo material),  que não se importa com as dores do mundo e de outro um mundo moral(ou espiritual), que tenta organizá-lo de forma a produzir um estado de felicidade para a criação consciente nele existente. Dai o conceito gnóstico que define o diabo como sendo “deus inversus”.
[4] Essa era a idéia que a Igreja medieval passava ao povo. Ela transparece nas antigas pinturas que representam a Divindade, e até Michelangelo a adotou em sua representação da Criação, nos afrescos que cobrem o teto da Capela Sistina.