Reflexões sob a chuva

Caía a noite .

Uma chuva , fina e fria , havia caído durante todo o dia , ensopando a cidade .

As luminárias , já acesas , teimavam em clarear as calçadas , rompendo a cortina de pingos que agora caiam mais grossos e com mais intensidade .

Protegido pelo velho guarda-chuva eu caminhava o mais rápido possível na direção de casa .

Como sempre , aproveitava aqueles momentos de relativa solidão para deixar meu pensamento livre , esvoaçando pelas paragens do infinito , sempre em busca de uma oportunidade de aprendizado , de aperfeiçoamento .

Súbito , um barulho forte , um tilintar de ferros . Quase encoberta pela escuridão crescente , emergindo dentre a chuva cada vez mais forte , impedida de continuar seu trajeto pelo olho vermelho do semáforo que a fitava zangado , parou ao meu lado uma velha carroça .

Arrancado bruscamente dos meus pensamentos , contemplei o ruidoso trio , formado pelo homem , o animal e a carroça

Meu coração sempre se compadeceu ao se defrontar com os pobres animais que até hoje servem ao homem , atrelados sem piedade a cargas muitas vezes além das suas fôrças .

E foi primeiro para o cavalo que dediquei minha atenção .

Era um animal velho e magro . Tinha todas as características de maus tratos , de falta de cuidados , de falta de alimentação .

A água que encharcava seus pêlos escorria pela crina rala e êle piscava e sacudia a cabeça para evitar que as gotas lhe atingissem os olhos . Resfolegava , ofegante. Imaginei , então , que após um dia inteiro de trabalho o pobre animal estivesse cumprindo sua última tarefa .

Talvez para aplacar o sentimento de piedade que começava a se apoderar de mim imaginei , também , que após este último trabalho seu dono o libertaria dos arreios e o conduziria a um lugar coberto onde , depois de comer farta ração , descansaria ao abrigo da chuva , refazendo suas forças até o dia seguinte .

Mas logo em seguida pensei com tristeza que a realidade por certo seria outra .

Liberto dos arreios o pobre animal seria solto em um terreno baldio , com mais lixo que capim . Com alguma sorte seu dono colocaria ao seu alcance um vasilhame sujo com um pouco de milho .

De pé êle dormiria sentindo a chuva cair sobre seu corpo cansado até o novo dia chegar com sua carga de trabalhos sem fim .

Meu olhar se voltou , então, para o condutor do barulhento veículo .

Era um homem idoso .

Estava curvado para frente , completamente encharcado pela chuva que agora caía com força. Um surrado chapéu cobria seus cabelos curtos e encaracolados . A água , escorrendo por ele , molhava os olhos semicerrados , a barba comprida , o rosto enrugado .

Suas mãos , grandes e ainda fortes , seguravam com firmeza as rédeas molhadas .

Sua figura me lembrou uma velha árvore morta , retorcida , mas que teimava em ficar de pé . Formava perfeito conjunto com o seu pobre animal e sua velha e barulhenta carroça .

Novamente minha imaginação projetou em minha mente seu retorno , depois daquela última tarefa .

Após cuidar do seu animal , o velho homem se recolheria a sua casa , por certo modesta , mas acolhedora .Um reconfortante banho, roupas secas e limpas.

Depois , uma refeição quente e saborosa para em fim descansar em uma cama macia , retemperando suas fôrças para o novo dia .

Mais uma vez me entristeci , pois sabia da dura realidade . Sua casa com certeza era um simples barraco que , sob aquela chuva intermitente , estaria úmido e frio .

Banho, roupas secas e limpas , refeição quente e saborosa , cama macia ... quem sabe... Essas coisas não fazem parte do quotidiano das pessoas como êle , chamadas de “excluídos “.

O olho vermelho e zangado do semáforo apagou-se , sendo substituído por um simpático olhinho verde .

O homem fez um ligeiro movimento com as rédeas e o velho cavalo , resfolegando, retomou seu movimento. Logo o trio desapareceu, tragado pela escuridão.

Fiquei ali sob a chuva tentando responder a pergunta que surgia na minha mente ,ainda incapaz de entender determinadas coisas desta vida : - quem está conduzindo quem ?

O homem conduz o cavalo ou será o cavalo conduzindo o homem?

Ou a velha carroça conduz os dois?

Homem e animal , dependentes um do outro para sobreviver . Ambos atrelados à velha carroça para conseguir o necessário para subsistir , aceitando sem reação as dificuldades dos seus dias .

Incapaz de responder, apertei o passo e continuei caminhando sob a chuva...

M P Lima
Enviado por M P Lima em 10/03/2014
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