“O Paradoxo de Hermes” ou Lula sabia ou não sabia?
Em dezembro de 2002, durante uma palestra na UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, num encontro sobre leitura, a professora Eliana Yunes, da PUC-Rio, falava sobre mitologia, quando citou Hermes – aquele deus do panteão grego com asas no chapéu e nos pés. Disse que Hermes aparecia, desde a antiguidade, ligado ao comércio, às viagens, à oratória, à literatura, ao atletismo, à música. Ele é o patrono da poesia, pois foi quem inventou a lira e a flauta. Mas também era tido como protetor dos ladrões.
Assistindo à palestra, aquilo tudo me levou a perguntar a ela se aquele deus que era o mensageiro de Zeus, não apresentava um perfil contraditório, já que sua aparência alegre, viva, indo e voltando do Olimpo com rapidez, como poderia ter dado origem ao termo “hermético”? Sua conhecida imagem de agilidade e beleza se contrapõe ao que é fechado, obscuro, estranho, inexplicável, até. A professora olhou para mim, sorriu e concluiu com esta frase: “Bem... este é o paradoxo de Hermes...” É..., tem certas coisas que não conseguimos mesmo explicar.
Naqueles dias, o país acabara de eleger o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Votação jamais alcançada por um brasileiro. Unanimidade feita de esperança e desencanto. Esperança pelas promessas. Desencanto pelas enormes dificuldades que todos nós estávamos vivendo dentro do modelo neoliberal dos anos FHC. Por estar morando naquela época em Salvador e por ser eleitor em São Paulo, acabei tendo que justificar minha ausência à votação. Embora não fosse muito favorável ao segundo turno tendo José Serra como opção – eu me iludira com o discurso aparentemente coerente de Ciro Gomes, também não votaria em Lula. Questão mais de paladar do que de ideologia.
Confesso, no entanto, que a frase de Eliana Yunes ficou guardada e, vez ou outra, teimava em aparecer, cutucando-me, fazendo-me refletir, levando-me a tentar descobrir se seria possível existir este tal paradoxo. Existem formulações de famosos paradoxos, em filosofia, matemática, mas um “Paradoxo de Hermes”, era mesmo inexistente. A citação permaneceu na memória, marcou-me. Mas o que fazer com ela?
Meu espírito inquieto e curioso, que foi aguçado pelo exercício que tenho feito ao longo de minha vida como jornalista, desde aquele dia de dezembro de 2002, foi sendo episodicamente questionado por infindável lista de razões éticas, morais, legais. De consciência, mesmo. Vivendo as dificuldades inerentes à maioria dos brasileiros de meia-idade, sem emprego e perspectivas profissionais quase nulas, não deixei, todavia, de pensar e de tentar, manter-me lúcido e ativo. E o que tem o tal “Paradoxo de Hermes” com tudo isto que eu, como brasileiro, estou vendo no cenário político do nosso inquebrantável país?
Sem pretender formular nenhuma nova tese filosófica, andei lendo alguns textos na internet, pesquisando sobre o termo “paradoxo” e sobre Hermes. Já nas primeiras leituras pude perceber que havia uma relação curiosa entre o que foi dito por Eliana Yunes e a postura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já que este tem vivido uma situação paradoxal. Poderiam dizer, mas que viagem, colega? O que tem uma coisa a ver com a outra?
Acredito que tenha tudo a ver e vou tentar mostrar como o inexistente “Paradoxo de Hermes” pode significar o paradoxo de Lula, do seu governo e da confusão causada pela chegada do PT ao poder federal. Sem análises sociológicas, nem políticas, nem filosóficas. Apenas fazendo um exercício livre de pensamento, coisa que ainda tenho o direito de realizar.
Nas consultas que fiz apareceu-me um dos entendimentos para a palavra paradoxo, “que é uma declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum. Em termos simples, um paradoxo é o oposto do que alguém pensa ser a verdade”. Sim, dá para entender isto, sem problemas. E isto tem a ver com Lula e o PT? Pelo que temos assistido na TV, lido nos jornais e revistas e nos comentários de indignados brasileiros como eu, a citação filosófica confirma a postura de Lula e do partido que ele fundou. Sem querer dar uma conclusão, confirmaria o entendimento de sua paradoxal atitude.
Lula apareceu na TV, naquela primeira reunião ministerial deste ano, com os olhos avermelhados. O país ardendo em denúncias, arquivos sendo literalmente queimados, vaidades e mentiras ardendo nas sessões das CPIs, na Câmara e no Senado, e Lula e seus chegados, sem dar a mínima resposta a nós, brasileiros e, também, aos milhões que nele votaram. E, quando todos esperavam e cobravam do Presidente uma resposta firme, vem ele com uma “declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica”. Mais. Seu comportamento leva-nos a “uma situação que contradiz a intuição comum”. Um pouco mais. Como escreveu a revista VEJA, em sua capa, no subtítulo da chamada “A luta de Lula contra o impeachment – A defesa do presidente na televisão não convence e ele perde a chance de explicar o escândalo”, Lula ao pedir desculpas pelos erros de quem o traiu, reforça o sentido do que é este seu paradoxo, já que, “em termos simples, um paradoxo é o oposto do que alguém pensa ser a verdade”.
Nas minhas divagações sobre o que poderia representar este inexistente “Paradoxo de Hermes”, onde eu conseguiria colocar Hermes no contexto das implicações políticas, sociais, institucionais e jurídicas por que passam o Governo Federal, o Estado Brasileiro e isto tudo que chamamos de País?
Na mitologia, Hermes, o filho de Zeus e da deusa Maia, roubara o gado de seu irmão Apolo e o encantara com a lira que acabara de criar. Zeus, vigilante, ordenara que Hermes devolvesse o gado a Apolo, mesmo com Maia protegendo seu filho e afirmando que ele nada roubara. Hermes, então, negociou com Apolo, sob o olhar atento de Zeus, a compra do gado, pagando-o com a lira, feita com o casco de uma tartaruga e as tripas de um dos bois que abatera. A paz voltara ao Olimpo e os irmãos estavam reconciliados.
Onde vai aparecer Hermes como paradoxo desta nossa crise? Desta crise que o panteão do Palácio do Planalto não quer enxergar, nem tratar com a seriedade e atenção necessária de uma tragédia para deus nenhum botar defeito?
A mitologia sempre apresentou Hermes como um deus viajante – asas nos pés e no chapéu. Viajante, caixeiro-viajante, deus da oratória. Suas roupas eram as de um trabalhador do campo, um pastor, um operário. Nas mãos, o caduceu, que acabou virando o símbolo do comércio – embora tenha sido confundido como o símbolo da medicina. Mas Hermes, na antiguidade, era tido como o protetor, o patrono dos ladrões. Ao longo das estradas antigas eram colocadas estátuas de Hermes, para proteger os viajantes. Daí ter se originado o termo “herma”. Teria sido ele o inventor da balança, para proteger vendedores e compradores. Um deus realmente eclético.
Lula nasceu de origem humilde, viveu na cidade de Santos, aprendeu a vender e a sobreviver com enormes dificuldades, mas, sempre teve sua Maia para o apoiar, ora na figura de sua própria mãe, depois, na figura de sua mulher, companheira, depois como líder sindical, com a presidência da entidade, depois como fundador do PT, e a figura da presidência sempre o amparando. Ele brandindo seu caduceu, disparando suas metáforas para criticar os modelos políticos dos tempos da ditadura, depois contra Sarney, depois contra Fernando Collor, contra Fernando Henrique Cardoso. À beira da estrada da história, Lula inventou uma nova balança para se manter no poder. Fez acordos com toda sorte de políticos, dos bem aos mal intencionados. Cercou-se dos amigos fiéis. Deu pouso e poder a eles. Enquanto viajava pelo mundo todo, por todo o Brasil, como se ele e seu brinquedinho de voar de milhões de dólares, fossem o deus Hermes, deixou que em sua casa, num certo Palácio do Planalto, negócios espúrios fossem tratados nas salas próximas ao seu gabinete. Sem enxergar nada, viajando, comemorando, alegrando-se com tudo. A cítara e a flauta de Hermes embalando seu sonho de ser o Presidente do Brasil.
O deus Hermes, também usa como símbolo uma bolsa ou um malote. Se pensarmos bem, todos estes símbolos, de alguma maneira, aparecem nas questões políticas e agora policiais que envolvem o governo Lula e a cúpula do PT que tomou de assalto nosso país. Um homem que se fez Presidente da República, que chegou ao panteão encantado de Brasília carregado nos braços do povo, visto até por muitos como o salvador da pátria, um verdadeiro deus nascido nos confins de um nordeste sofrido, quer ficar blindado, protegido de ataques, quer ser ético, quer que sua história seja respeitada e que lhe possa proporcionar um salvo-conduto vitalício. Quer ficar lá, inatingível, mas na maioria das vezes não estando onde deveria manter-se vigilante e atento.
Lula está escrevendo uma história que será marcada mesmo por paradoxos. Para mostrar que é honesto, Lula terá que revelar o quanto de desonesto foram seus combativos companheiros. Para mostrar que é ético, Lula terá que revelar o quanto foi antiético ao considerar-se inocente. Para mostrar que tem caráter, Lula terá que expor um lado sórdido dos eu governo que ninguém conhecia. Para mostrar que é mesmo um homem do povo, Lula terá que revelar o inusitado gosto que aprendeu com coisas caras e raras, do charuto cubano ao melhor vinho francês. Para mostrar que tem coragem, terá que mostrar como é fácil ser covarde, escondendo-se atrás dos milhões de votos de crédulos e agora incrédulos brasileiros. Para mostrar que é honrado, terá que mostrar como pode desonrar a si próprio deixando o País ser governado por seus companheiros desonestos e homens tratados como amigos que tentaram, com malas, malotes e sacos e cuecas cheias de dinheiro vivo, fazer do nosso país apenas um quintal para suas festivas churrascadas.
O “Paradoxo de Hermes” é mesmo o “Paradoxo de Lula”. Ou será que Lula sabia ou não sabia de nada? Repetindo o significado da palavra paradoxo, “em termos simples, um paradoxo é o oposto do que alguém pensa ser a verdade”.