Sem aposentadoria
Ela olhava com a cabeça baixa para tudo o que passava por sua mente. Todas as lembranças, todas as pessoas, todos os caminhos por onde foi com seu cavalo quando ainda tinha os cabelos compriiiidos, os olhos vivos, as mãos lisas. Olhava com ternura e com fé de que muita vida feliz teria por diante. Era uma menina perspicaz, mas muito envolvida na família. A dela, de sua raiz e a família que constituiu pouco tempo depois de sua adolescência e muito tempo antes de sua maturidade.
A existência foi-lhe dando muitos cavalos para cavalgar, muitos panos para bordar, muita, muita família para ser servil, para demonstrar-se a pessoa que era. A carne, o osso e as emoções da pessoa que se educou teoricamente embasada nos costumes; na bibliografia que citava a equação Ser Mulher = Ser Mãe = Ser Do Lar. Isso foi tomando força. Ela fazia as tarefas do dia, as tarefas da noite, ela cozinhava como ninguém, ela abraçava como muitas almofadas, ela tem o nosso cantinho.
Por muitas circunstâncias desse tempo, adoeceu, parou. O interessante é a essência. Ela continuou toda fazendo, mandando, amando, cruzando as pernas, sendo mulher, sendo mãe, dona de casa. Ela vibra por dentro, ela chora por fora, ela te envolve num laço que nunca se desamarra. Ela é vida que se escorrega pelas felicidades do mundo; pelo pouco que ela vê, pelo tanto que ela absorve de tudo, de todo o amor.
Ela não precisa de nada material. Ela só quer fazer 90 anos. Porque ela diz que com noventa, vai pro céu. Porque ela está sozinha no mundo. As irmãs morreram, o pai e a mãe morreram, o marido morreu. Falta ela. E ela quer viver feliz nesse lugar! Ela quer ser a Mulher de Sucesso ali no céu. Ela já construiu a casa dela aqui; quer transcender.
Mas tem uma chance de ser mais muuuito abraçada. Uma das irmãs que ficou tem 100. Poxa, 100! E ela aqui, tendo que ouvir os mesmos Jornais Nacionais há miiil anos, tendo que aturar tudo, tendo que ser Mãe, Avó, Bisavó. Eu entendo porque uma pessoa com tantas profissões queira morrer. Mas ela vive pra dizer que são férias, que passa o tempo por aqui.
Ela vive no seu quarto de lágrimas, fazendo um tobogã de água para guiar a vida de seus netos; deles, de sua casa!