O AMOR SUPERA O VERBO

RECORTES DO COTIDIANO é um livro despretensioso. Nada há nele que seja rebuscado, como ocorre em alguns livros de poemas de autores consagrados e nos quais as figuras de linguagem ou de estilística, especialmente as metáforas de palavra ou as de imagem, tornam excessivamente codificada a mensagem a ser entregue ao leitor – na comunhão da linguagem – beirando ao hermetismo.

“É o feijão com arroz,

o pão da palavra

amanhecendo a poesia.”

– in Cotidiano de Adélia, pág......

A palavra poética, em Iolete Moreira, professora e ativista cultural com destacada atuação no cenário do patrimônio imaterial de Campo Grande, é singela, cotidiana:

“À mesa: o café, pão, manteiga.

Pássaros pipilam na janela

confraternizam pães e frutos:

o amar silvestre”

– In No sítio, pág....

No entanto, me parece útil refletir um pouquinho sobre a arte do poetar. O mestre Drummond de Andrade, em “Autopsicografia para uma revista”, in Confissões de Minas, 1944, nos diz: "... Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação...”

“...lapida versos com cinzel,

costura poesia com fios de suor.

– in Acolhedor de palavras, pág.....

E completa o tímido itabirano poeta e jornalista, em sua mineirice, o seu entendimento sobre a Poesia: “Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos.”

O poetar que habita Iolete Moreira sabe de seus desígnios e do compromisso que reúne o correr da vida e a palpitação intuitiva. Singela, cinge-se aos territórios do contemplativo e registra:

“O remar no remanso d’água

desenha verso e reverso,

estica as pernas da palavra

na voz que o dia anoitece.”

– in Sombras no remanso, pág.....

Tenho para mim que a Arte copia a vida. Se bem que nem todas as pessoas têm sensibilidade suficiente (e/ou entrega pessoal) para usufruir a proposta que a Arte sugere. Porém, a Arte não se destina a interferir diretamente no plano do real, porque vivem em planos diferenciados.

“Verdes, versáteis campos

voam nas asas da poesia,

sob o manto do luar

vida tem sede de palavra...”

– in Des/encontros no campo, pág.....

A arte nasce e pervive no território fantasioso criado a partir da cabeça do agente. O decurso do tempo condiciona o ser humano ao mundo em que vive, para que o senso circunstancial transmute o real... E a poeta não se omite, arresta a denúncia, à espera das decisões de quem de direito:

“Indígenas e fazendeiros

penduram-se no vento

entreveram-se na luta

conflito arrebata/dor...

Morre o terena em terra-pão,

fecha o tempo, falta chão...”

– in Des/encontros no campo, pág.....

É este cordão umbilical que dá vida à Arte é o próprio viver e seus condimentos:

“E os mortos, à mesa,

dormem embalsamados

plenos de calor e de óleo...”

– in Praia-mar, pág.....

Em particular, a arte poética muda o conjunto de valores do ser humano, e este, se tiver talento, vontade – e quiser correr os riscos – transforma o mundo em que vive.

“Na leveza da luz,

Habemus papam, ó Francisco...

E se derrama o tempo novo.”

– in Francisco, o Novo, pág....

O poeta nem sempre propõe o melhor para todos, porém, ao seu arbítrio, como ele concebe o mundo naquele momento, qualifica-o à sua moda, em inusitada concepção:

“Há bolhas de sabão

na figueira da esquina.

Devagar é o silêncio da manhã.”

– in Sentimento, pág.....

Curiosamente, o aparente egocentrismo do “Eu” pode vir a construir a confraternidade como parâmetro viável para todos...

“O poeta concentra-se no seu papel:

ajunta figuras espalhadas,

recolhe poemas do sereno,

sacode a poeira dos sonhos...”

– in Acolhedor de palavras, pág.....

Contemplativa e lírica, Iolete Moreira, da mesma forma que eu, “condenada ao pensar”, confessional e apostólica, confraterniza no milagre das vinhas e, enfim, aporta sua contribuição à cultura poética de Mato Grosso do Sul:

“...vírgulas de prata nas videiras

maduros frutos se alongam

em saudades.

E o seu alter ego lírico aposta, amorosamente, na força dos signos e do verbo:

O poema há de chegar à vida!”

– in Esperança de Outono, pág.....

Estimados leitores! Sejam também muito bem-vindos à prosa de Iolete, que, na parte final deste livro, nos apresenta cinco textos leves e bem urdidos. Por eles, poderá o receptor perceber a doçura e o solidarismo que norteiam o espiritual da escritora. Por certo, a vida permitirá que ela nos brinde, em futuro próximo, com mais alguns trabalhos de sua lavratura, nesta modalidade literária. Fica nos devendo mais...

Que tenham todos os passageiros (de ofício ou de ocasião) uma ótima viagem. Que lhes sejam prazerosos os “recortes do cotidiano” de Iolete Moreira, que em confraternidade, soube compartilhar o seu rico universo. Escrever sem profissionalismo é sempre um ato de amor que ausculta o mistério do Outro.

Porque a palavra, em especial a poética, é um bumerangue: vai e volta. É de sua inusitada natureza as idas e vindas...

Porto Alegre. RS, 06 de fevereiro de 2014.

– Joaquim Moncks é escritor, poeta e crítico literário. Como oficineiro de Poesia, atuou anualmente em Campo Grande, no período de 2003 a 2007, tendo formado quatro turmas, totalizando quase uma centena de escribas-alunos. Desde 2003 coordena nacionalmente a Casa do Poeta Brasileiro – POEBRAS Nacional, que está articulada em 77 sedes municipais em 20 Estados da Federação Brasileira.

– Do livro O CAPITAL DAS HORAS, 2014.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4680024