O que nos tornou humanos?
Os livros de antropologia costumam enfatizar o tamanho avantajado do cérebro humano, de fato bem grande, muito maior que o da maioria dos animais, incluindo nossos parentes, os símios. Notam também um acréscimo constante no tamanho do cérebro da linhagem que chega até nós. Como gostamos de nos considerar inteligentes, postulamos uma inteligência proporcional ao cérebro e concluímos que nossa peculiaridade, a inteligência suprema que nos distingue dos animais, decorre do tamanho avantajado de nosso cérebro. Normalmente esquecem de mencionar o fato de baleias e elefantes o terem ainda maiores.
Gostaria de propor um estranho exercício: duvidar por uns momentos do fato de sermos significativamente mais inteligentes que os animais, tarefa difícil. Consideremos as crianças, mais frequentes na Índia, conhecidas como meninos-lobo, que, tendo sido criadas por animais, comportam-se como eles. Os que são trazidos de volta ao contato humano ainda muito jovens, acabam por adquirir comportamentos humanos; mas, se tornados de volta ao contato com pessoas após certa idade, permanecerão comportando-se como animais, sendo indistinguíveis deles, exceto pelas feições.
Isso sugere que nossa suposta inteligência superior só se desenvolve em condições especiais, se imersa na cultura humana. Talvez alguns animais tenham capacidade cognitiva comparável à nossa, mas, tendo sido criados distantes de um ambiente cultural, não conseguem manifestar seu potencial. Embora lógicamente impecável, a conclusão acima tende a nos parecer disparatada; poucos de nós estaremos dispostos a considerar tal possibilidade.
Pode-se argumentar, no entanto, que, de fato, nesse caso aventado, permaneceríamos em iguais condições, mas que, mesmo colocados em situação propícia, os animais não conseguiriam demonstrar racionalidade, ao contrário de nós, o que deixaria manifesta nossa superioridade intelectual. Gostaria de objetar a isso.
Alguns animais, nomeadamente chipanzés e gorilas, têm a capacidade intelectual para o desenvolvimento da fala, embora não tenham nossas habilidades bucais para pronunciar palavras e falar, nesse sentido se assemelham aos mudos.
O exercício da fala nos propicia uma ferramenta de mão dupla que nos permite receber as informações e testar nossas hipóteses interpretativas sobre elas, confirmando-as, ou negando-as, o que favorece imensamente nosso aprendizado. Sem tal exercício, sem conseguir testar efetivamente nossas hipóteses interpretativas, muito provavelmente, empacaríamos logo no começo do aprendizado da fala. Fico tentando imaginar quanta linguagem um mudo seria capaz de compreender se impedido de retornar sua compreensão com o uso de gestos.
Do mesmo modo, talvez os animais que convivem com pessoas sejam impedidos de imergir, de fato, na cultura humana devido à incapacidade de vocalização adequada, e não, fundamentalmente, a incapacidades cognitivas. Suspeito fortemente que muitos animais tenham capacidades cognitivas absurdamente surpreendentes que só não desenvolvem em mais alto grau devido à ausência de uma linguagem própria. A grande vantagem da fala é que ela propicia o acúmulo das descobertas e inovações efetuadas por todas as pessoas. Sem a fala, permaneceríamos sempre obrigados a redescobrir todo o conhecimento por nós mesmos, sendo impossível que conseguíssemos superar tão fartamente o conhecimento dos antepassados como o fazemos atualmente.
Assim, penso que o que nos distinguiu, de fato, dos outros animais, foi o desenvolvimento da linguagem. Diferimos de todos eles por possuirmos esse bem, não por alguma qualidade intrínseca que nos difira deles, e nossa suposta genialidade consiste fundamentalmente em termos desenvolvido a fala.