O que é arte 06 – Experiência Artística – Entrando em sintonia – O enigma da subjetividade
Gentes, o tempo passa e cada vez traz mudanças mais rapidamente, não é? Me impressiona, acho que a diferença de mundo do meu bisavô para o mundo do meu avô (de uma geração) é menor do que a diferença da minha vida (de vinte anos atrás, quando eu era um menininho de dez anos) e agora. Do meu bisavô para meu avô a eletricidade se disseminou, carros se popularizaram e muito mais... grandes diferenças, não é? Cara, quando eu era uma criança não havia celulares, não havia internet, não havia mídias sociais! Íamos a determinados lugares a fim de encontrar gente para conversar e para descobrir o que a noite tinha a oferecer. Podia ser um super mercado, podia ser um posto de gasolina... Tinha um bar chamado ‘Estação 109’, seu apelido era ‘Sempre nove’, porque as pessoas iam sempre lá para saber o que está acontecendo, onde seriam as festas. Hoje você tem uma lista das festas que no facebook, por que sair de casa para estes pontos de encontro? A televisão era mais ou menos como é hoje, à exceção de que ela era uma enorme caixa cheia de fusíveis, transístores... Quando comprávamos uma televisão nova a gente tinha que sintonizar cada canal. Sabe o que (ainda) é mais ou menos assim? O rádio.
Em aparelhos mais novos é possível programar vários “canais”. De modo que é possível passar de uma estação para a outra. Antigamente a gente girava um botãozinho, a medida em que íamos nos aproximando de uma frequência determinada (95.3, por exemplo) o chiado começava a se transformar em voz, música, começava a virar sons distinguíveis. Neste processo um antena emite sinais de rádio, nós vamos escaneando (procurando a estação correta) até achar um ponto em que o aparelho de rádio está em consonância com a antena. Neste ponto o rádio traduz as ondas de rádio em sonos audíveis, que fazem sentido. Processo análogo ocorre entre uma paciente e uma psicanalista. A paciente é como a antena emitindo sinais, o que a paciente fala é como as ondas de rádio, a terapeuta é como o aparelho de rádio que decodifica as ondas de rádio. Reparem, tudo o que a paciente fala tem sentido em si mesmo. Mas não é o que a psicanalista busca. Ela busca o sentido por trás das palavras, a terapeuta busca entender a apreender a própria paciente em suas questões mais profundas.
E uma apreciadora de uma obra de arte, passa por algo parecido? Digamos uma leitora de um romance policial. A medida em que lê vai conhecendo várias personagens, conhece a trama, detalhes, descrições... a leitora vai escaneando, procurando sentidos. Percebem como a analogia ao aparelho de rádio funciona bem? As palavras, a trama, o climax, estas coisas são como as ondas de rádio. Usamos elas para acertar nossa frequência à frequência da obra. Quando isto ocorre chegamos a uma epifania, momento em que atribuímos um sentido à obra.
Este processo de varredura em busca de sentido demanda esforço. Apenas o executamos se estivermos devidamente incentivados. Estar em frente a uma orquestra é insuficiente, podemos ouvi-la toda e deixá-la passar em branco. Mas se estivermos devidamente cativados, atentos, motivados faremos este esforço. E o processo não termina quando saímos de frente à obra. Muitas vezes ele permanece quando saímos da sala de um filme e discutimos o que o filme trouxe, ou quando dormimos e ouvimos aquela música que ouvimos tantas vezes durante o dia. Ou seja, o esforço de escanear a obra não é concomitante ao momento em que apreciamos a obra, o escanear pode nem ocorrer ou pode continuar ocorrendo anos após o contato que tivemos. Creio que se eu tivesse lido estas coisas a dez anos atrás estaria dando muito valor a este êxtase. Mas um jovem enquanto transa e concentra toda sua energia no orgasmo perde todo o sexo. Reparem, é durante todas as carícias que conhecemos, desfrutamos, aproveitamos nosso parceiro. Não há nada mais empobrecedor do que reduzir o sexo à busca do orgasmo. É desperdiçar uma imensidão de contatos, carinhos, cheiros, segredos... Com a apreciação da obra se dá o mesmo. O que importa é o caminho, não o alvo. O que importa, o que é transformador, o que é desafiador é o esforço em atribuir sentido, isto que é degustar a obra. O êxtase é um bom e surpreendente prêmio, apenas isto.
Este modo de ver a experiência artística oferece subsídios para uma discussão sobre o que é arte. Tratarei delas em outro ensaio. E traz também uma grande questão (que se desmembra em outras). A qual frequência estamos tentando sintonizar? À da obra, certo? Sim, é isto mesmo. Mas... em que frequência a obra emite? Vou colocar de uma maneira um pouco diferente, mas tornará o enigma mais claro: Como é possível uma obra transmitir algo que o autor não planejava? Ou, de maneira ainda mais ampla: Como é possível diversas interpretações à mesma obra?
A resposta em três aspectos. O primeiro é: Todos nós somos muito mais do que imaginamos, com o artista se dá o mesmo. Neste sentido a metáfora da terapia é muito esclarecedora. A paciente diz muitas coisas à terapeuta, em muitos casos ela dá até um subtexto intencionalmente para a terapeuta. Mas a terapeuta depois de um esforço e muita atenção apreende outras coisas, outros sentidos que também emanavam do que a paciente falava. A obra – assim como a paciente – emana mais do que o artista intenta dizer. É claro que o trabalho da terapeuta de apreender aquele sub texto é um trabalho difícil. Algumas vezes a terapeuta vai ter um entendimento equivocado. Bem, o equívoco também é um dos motivos para que a apreciadora da obra entenda coisas que a artista não queria dizer. O segundo motivo é que as diversas pessoas que apreciam as obras de arte são muito diferentes. Nós somos muito diferentes uns dos outros, mas somos também diferentes de nós mesmos em momentos diferentes. A mesma pessoa estando de bom humor ou mal humor poderá emprestar sentidos diferentes à obra. Após uma experiência transformadora, após uma conversa com amigas sobre a obra ela pode emprestar sentido diferente à obra. É como se uma obra fosse não apenas uma emissora de ondas, mas várias e várias emissoras. E uma pessoa não é um rádio tentando sintonizar, mas vários e vários rádios cada um captando uma sintonia.
A primeira explicação para a vasta possibilidade de interpretações para a mesma obra é que a obra – muito frequentemente – tem muito mais do que a artista coloca intencionalmente. O segundo motivo é que a apreciadora da obra é também uma pessoa vasta capaz de apreender muito mais sentidos do que ela sequer pode colocar em palavras. O terceiro motivo é o sinal de rádio. Reparem, um texto, uma fala ou um símbolo podem ter o objetivo claro de passar um sentido inequívoco, uma placa de trânsito é um símbolo padronizado cujo esforço é ser tão preciso quanto possível. Do mesmo modo uma receita de bolo se vale de uma ortografia e de uma sintaxe padronizados e sistematizados cujo objetivo é passar inequivocamente um conteúdo. Já a obra de arte é escrita em uma sintaxe particular e específica e ela quer dizer algo que não pode ser dito através de símbolos padronizados. O que uma obra de arte em particular diz pode ser objeto de inúmeros livros. Eles podem esclarecer muito o que a obra diz, podem dar subsídios para apreciarmos a obra de uma maneira muito mais rica. Mas não podem traduzir perfeitamente o que a obra diz, nunca vai substituir a obra.
Poderia se objetar que um romance policial é escrito em uma ortografia e em uma sinataxe cujo objetivo é ser claro e inequívoca. As palavras e regras são, entretanto, instrumentos para outra forma. O romance é de fato escrito em tramas, personagens, emoções. Esta é sua verdadeira escrita. Ela pode ser padronizada em fórmulas. Se o forem – e este é o objeto do ensaio 4 – a padronização pode ser usada da mesma maneira que o português, pode ser usado para escrever em um nível acima (é claro que ajuda se a receptora estiver familiarizada com as fórmulas). Ou... a obra pode ser apenas meramente banal. O ponto é: O romance não é escrito em letras, frases... ele é escrito através de outras formas, formas mais misteriosas. A medida em que estas formas são desvendadas por uma artista pode se valer delas para escrever com sintaxes cada vez mais profundas, ou pode escrever em uma outra sintaxe. Ou pode apenas usar aquelas sintaxes como um esqueleto para falar de outras coisas. Entendem? O caso é que por um lado a artista é uma pessoa muito ampla, por outro lado a receptora também é uma pessoa muito ampla. Comunicando entre a infinidade que é a artista e a infinidade que é a apreciadora está a obra de arte que por definição (pela definição que ofereço aqui) é escrita através de uma sintaxe particular e não sistematizada específica ao que a obra quer dizer.
A comunicação unívoca (como a do livro de receitas ou a placa ‘Permitido Estacionar’) é a comunicação através de símbolos e regras sistematizados que com muita eficácia permitem atribuição do mesmo sentido para o emissor e para o receptor.* A comunicação artística também se vale de regras a partir das quais atribuímos sentidos a elas, não é possível atribuir qualquer sentido sem regras. ** O que ocorre quando da arte é que como as regras não são sistematizadas até é possível falar delas, mas não com a mesma precisão com a qual falamos das regras de trânsito ou das regras escritas. Do mesmo modo é possível falar e pensar nas regras de cada obra de arte (aqui me refiro às regras específicas de cada obra). Mas apenas até um determinado ponto. O núcleo do duro do que diz uma obra de arte só é possível alcançar ao sintonizarmos nós mesmos, nossa própria leitura de mundo, nosssas próprias regras de atribuição de sentido às regras específicas da obra de arte. Só assim atribuiremos sentido à obra. Entretanto – diferentemente da placa de trânsito – não fomos catequizados (doutrinados através de aulas) nas mesmas regras. De modo que o sentido que cada um atribui à obra é sim particular.
Gente, como conferimos sentido através de um texto? Nos valemos das regras que estão simultaneamente no texto e em nós, correto? Se somos analfabetos em português não conseguiremos ler o sentido da palavra ‘casa’ no dicionário. Só o fazemos porque temos estas regras estão tanto organizando o texto como estão internalizadas em nós mesmos. Adiantaria termos contato com as regras gramaticas, tê-las decoradas todas se não as temos internalizadas? Não. Seria um esforço colossal e provavelmente infrutífero conferir cada uma das regras de leitura que temos decoradas para atribuir sentido a uma frase simples que seja. Para atribuir sentido temos que tê-las dentro de nós de uma maneira mais profunda. O mesmo para atribuir sentido uma obra de arte. Temos que ter as regras de atribuição de sentido da obra em consonância com nossas próprias regras. Regras que são específicas a cada obra! É um esforço danado. E é um esforço transformador, do mesmo modo que foi transformador internalizar as regras de leitura (ou seja, transformador como o é ser alfabetizado). Atribuir sentido a obra é ser alfabetizado naquela obra em particular. É nisto que consiste sintonizar naquela obra. É claro que a obra pode nos dizer apenas o que já havíamos ouvido em outras obras. Caso em que será banal. Também é possível que não consigamos sintonizar naquela obra em particular, talvez nos falte capacidade para isto, ou apenas temos preguiça. Caso em que a obra nos é inacessível. Este é o tema de ‘O que é arte 4’.
Por último. Tive um professor que dizia que só conseguimos pensar através das palavras. Concordo que conseguimos usar todas as estruturas linguísticas, todas as regras, todo este mundo para pensar. E para ler temos que ter uma consonância entre as regras em que se escreveu uma receita de bolos (as regras do português formal, por exemplo) e as regras internalizadas que usamos para desvendar o que está escrito no texto. Tais regras nos oferecem degraus nos quais podemos pisar para subir muito em nosso entendimento e em nossas elaborações acerca do mundo. Mas em alguns momentos temos que parar por falta de degraus. Momento em que paramos um pouco e tentamos criar mais conceitos e teorias para expressar situações novas, mundos novos. A arte, entretanto, não é escrita na mesma sintaxe. A arte não oferece os degraus e o caminho certo pelo qual andar (as regras padronizadas). Andar através da arte é mais difícil pois ela não oferece degrau algum. Novamente: Um romance policial não é escrito em letras e palavras. Ele é escrito em dramas, conflitos... a arte está sempre um patamar acima do que é elaborado. E se tem o inconveniente de não ter explícitas as regras que devemos usar para saboreá-la, se tem o inconveniente de termos que escanear para ficarmos em consonância com as regras dela. Ela tem a grande liberdade de poder ir para além dos degraus. De dizer mais do que pode ser dito apenas com símbolos, teorias e regras estabelecidas. Ainda assim usamos regras para atribuir sentido a cada obra. O processo de escanear o sentido é justamente o da criação de uma sintaxe particular a partir da qual atribuiremos sentido àquela obra. E – em momentos especiais – se a obra tem uma riqueza em particular, se estamos preparados e motivados para procurar o que ela tem a oferecer sairemos diferentes após a degustarmos. Veremos algo que é impossível de ser posto em palavras***. As vezes a experiência artística nos leva ainda além. Nos transforma de modo que passamos a poder ver e sentir coisas que antes passariam desapercebidas a nós.
Gente. Acabei de definir ‘experiência artística’: O escanear da obra em busca da apreensão de sentido. Este escanear consiste em uma criação de uma sintaxe específica a partir da qual apreciamos uma obra. Tal sintaxe não é presa a padrões por isto é livre para falar de coisas sobre as quais não é possível falar através de símbolos ou modos padronizados de comunicação. E justamente por não ser padronizado é sempre subjetivo. Foi esta a percepção que me motivou a escrever todos os ensaios. Arte, neste sentido, é o que promove esta experiência. Minha proposta de obra de arte é: Obra que permite a apreensão através sintonização (este varredura em busca de sentido). Creio que nenhum tema importante para minha proposta do que é arte foi deixado de fora. Temo, entretanto, que precisarei voltar algumas vezes a estes ensaios. Primeiro para mostrar como todos eles se articulam. Segundo para mostrar como algumas questões podem ser discutidas sobre sua perspectiva.
* Pode-se argumentar com pertinência que o sentido mais íntimo e profundo que cada um atribui a ‘não estacionar’ é diferente para cada um pois cada pessoa usa suas próprias experiências para atribuir sentido às palavras, aos símbolos.... Sim, se formos muito, muito profundamente investigar o sentido mais pessoal isto continua sendo verdade. Mas o governo impõem uma série de regras e a obrigação de cada motorista de estudá-las, de modo padronizar tanto quanto possível o sentido de ‘proibido estacionar’. De modo que o sentido que cada um de nós atribui a estas placas é bem semelhante.
**O que foi tratado em dois ensaios: ‘O que é arte primeira parte: Organização’ e ‘O que é arte 2 - Organizando a maçaroca – Paradoxo da regressão ao infinito do sistema de regras’.
***Trato disto no ‘Ensaios zero – o escultor de bois – sentidos da traição’