SOBRE A INGENUIDADE DO SEMPRE SABIDO

Não faz tempo, pensou-se a descoberta para a felicidade. Seria a felicidade um pote a espera da mão que o agarre, seria o botim ao fim da guerra ou, ainda, a reconquista dos amores desfeitos. Poderiam dizer não se tratar de nenhuma dessas premissas, se assim seria, o que seria, então?

Mas antes pensemos somente nessas.

Imaginemos um pote no topo da montanha. Colocado ali, ou quem sabe, surgido ali por um efeito sobrenatural, portanto, imensurável, inclassificável, mas que, não se podendo negar sua existência, tal existência, por si só, desperta interesse e curiosidade.

A curiosidade naturalmente surge para se saber: 1) como aquele pote apareceu? e 2) se apareceu e é visível, existe. Sua importância, até agora, só se justifica por ter causado certa curiosidade, nada mais. Porém, sendo somente isso, já nos aponta que o pote, de certa maneira, alterou aquela realidade. Só se constatou.

O interesse nos remete a outras indagações: 1) O que tem naquele pote? e 2) para que serve o que tem naquele pote, presumindo que não esteja vazio.

Saber o que tem naquele pote, por si só, já antecipa a necessidade de estar próximo a ele. É preciso que com ele se tenha algum contato e que estabelecido o contato, seu conteúdo seja conhecido, portanto, seja classificável. Ora, saber o que é, traz embutido e determina, por antecipação, saber para que serve. De outro modo, toda pergunta "o que é" só será pertinente se com ela querer saber para que serve. Feito isso, pelo menos em parte, o interesse desapareceu. Deixemos o pote.

Pensemos a felicidade como sendo o botim ao fim de uma guerra. Se assim é, logo, devemos acreditar ser a felicidade um bem, um premio que não pertencendo a mim, tomo-lo como paga por uma vitória. Noutras palavras, o botim é transitório e seu conteúdo fixo. É transitório porque determinará o vencedor e assim sucessivamente. É fixo, porque seu conteúdo será sempre o mesmo e independente das intempéries do tempo e do espaço. Não nos interessa o botim.

A felicidade é a reconquista dos amores desfeitos. Sendo reconquista significa dizer que tornou as nossas mãos o que antes havíamos perdido. O que nos leva, obrigatoriamente, a admitirmos que nos fez falta. Sua reconquista nos desperta para a possibilidade de voltarmos a um estado que havíamos perdido. Porém, saber que as reconquistamos, por si só, auto-explicam o prazer de tê-las novamente não nos parece justificável. Também não nos interessa saber se a felicidade é a reconquista de amores desfeitos. É muito fácil e arriscado voltar a um estado já vivido. A vida é dinâmica, é a foz do rio.

O que nos resta, então?

A certeza.

Mas que certeza? Será a certeza de que a felicidade não é um pote, o botim ao fim de uma guerra e nem a reconquista de amores defeitos? Ou será a certeza meras conjecturas que variam como tais e, portanto, nunca saciáveis? Pergunta e mais perguntas, nada mais.

Posto o problema, exige-se uma solução. Então, pensemos. Elegemos a razão como a única maneira de que dispomos para nos municiar e capacitar para que demos conta de todas as dúvidas que nos surgem. Nesse sentido, a razão nos qualifica para que enfrentemos todos os nossos problemas. Ela nos faz, por antecipação, possuidores de um "saber" latente. Um saber que fervilha e, como a um vulcão, espera a hora de entrar em erupção. Ou seja, esse "saber" já existia, apenas não despertara, não aflorava; estava em repouso, porém existia.

Ora, aceitar que assim seja, nos abriga a acreditar num certo determinismo. Nos obriga a aceitar que esse pensamento, inaugurado com os gregos, persiste e que nada fora colocado em seu lugar. Aceitar assim , de mão beijada, é aceitar que o cosmos, e somente ele, detém primazia sobre nós. E ainda, que o rompimento patrocinado com o Iluminismo não significou nada. Que fora apenas, e tão somente, o momento de certos lampejos em que a razão parecia ser a estrada da nova caminhada. Vimos que o Iluminismo como a tudo que é novo, vislumbrou caminhos em que o tempo das trevas nos parecia somente sombras de tempos igualmente sombrios. Por isso a promessa, a promessa de novos tempos.

O período inaugurado com o Iluminismo significou a derrubada do edifício cósmico. Significou a colocação do Homem no centro, não mais como mero acaso, adjacente. Significou que o Homem, dali em diante, mais do que ser o edifício, era toda a estrutura, toda a matéria que constituía aquele corpo que nascia. E veio a certeza: o novo Homem estava em gestação e seu nascimento estava na sala de parto.

Nasceu! Todos comemoraram, todos fizeram planos e vaticinaram que dali em diante o novo Homem seria mais feliz; o coroamento da suprema felicidade.

O rebento se fez criança, gatinhou, andou, entrou na puberdade e na adolescência. Crise. O choque do que queria e do que fez não foi capaz de evitá-la. Tentou de várias maneiras se superar, porém, frágil, na crise se recolheu. Calou-se no quarto escuro da dúvida, a razão enclausurou-se como se leprosa fosse. Buscou refúgio na Filosofia dos Sistemas, na Psicanálise, na Sociologia. Não houve, não existia, não existe remédio pronto e acabado. A fórmula se refaz todos os dias e diariamente. Esse é o grande segredo.

Desde então, tateamos, como se buscássemos no braille, como se a leitura do presente, do em acontecimento, fosse esse infinito buscar. Ora como garimpeiros, ora tomados do sentimento de perscrutador em que tudo, no mais mínimo detalhe, não nos pudesse escapar às mãos.

Esse é o grande segredo. Nada se poderá substituí-lo. É mágico, é instigador; é o que nos diferencia das outras outras espécies e das máquinas.