POR UMA FILOSOFIA DO ENCANTO

Para além da superfície, ou, para além do que está à vista, manter-se à distância, mais do que recomendável, é fundamental para não se deixar engolir e ser regurgitado do estômago ruminante da paquidérmica espécie criadora de deuses. Da espécie que se esconde sob as asas de Deus, e em seu nome comete atrocidades. Eis! o grito calado no peito e que precisar sair.

A morte de deus, prenúncio do desejável fim do homem (posto que o Homem é sua imagem e semelhança), outrora atribuído aos niilistas, menos do que ser a morte de deus, era o postulado daqueles que viam no homem a responsabilidade por tudo o que vinha ocorrendo. Portanto, a morte de deus, pressupunha a radicalização da vida numa nova perspectiva elaborada, condicionada e condicionante para um novo devir, um devir edificado sob novas bases.

Os caminhos do homem, por ele e para ele, construídos, não levavam necessariamente à realização plena de todos os desejos. A busca constante para a realização dos desejos, nunca superada, impunha que se colocasse outros no lugar.

Reproduzindo, em certa medida, Sísifo, os desejos, motivo de busca e cura para os males que afligiam ao homem, não se exauriam mesmo quando pareciam saciados. Outros se apresentavam e se renovavam como novas inquietações. A crise que se funda, a crise do existente, como uma goteira que não cessa, respinga e se espalha. Empoçada nos labirintos mais secretos do ser, como a água que se embrenha e corrói o alicerce, a crise explode no ser como uma crise existencial. Assim, não há salvação, não há a mínima possibilidade de se agarrar à boia atirada no mar das certezas; a boia está vazia, está furada. Daí, e ao mesmo tempo, o mundo se apresenta um grande desencanto; a flor murcha no jardim sem água. A aurora, o novo dia, está sombrio e com ele vem a tempestade. O céu escurece, a noite chega, e o Homem, sozinho em seus pensamentos, como quem ignora o passo seguinte, busca, primeiro nos mitos, depois, em Deus, explicações para suas inquietações.

Na medida em que a felicidade não se estampava à toda humanidade, afinal a Revolução Industrial, e com ela, o Capitalismo, tornaram visíveis o quão a mesquinhez e a sórdida busca pela acumulação, estampou o Des(amor) do homem pelo homem. A máscara caiu e a face horrenda da luta incessante da conquista e controle dos desejos que se mostrou, como num espetáculo de horrores, não tinha a pele alva e sadia dos castelos. A suposta felicidade, tanto quanto, a suposta salvação, não era para todos; aos escolhidos, a melhor escolha, eis, a única verdade escancarada.

A música era triste e a orquestra não executava na mesma sintonia. O desencanto, fruto imediato da não realização, da não contemplação, no sentido de não ser atendido, diferentemente, do sentido platônico, não possibilitava a distribuição de forma indistinta. Ao contrário, era seletiva, e para se manter era fundamental que outros padecessem, em número muito maior.

Então, se o homem era imagem e semelhança de deus, matá-lo, seria matar-se o homem e deus, todos num só. E quem sabe um novo homem no lugar. Novos tempos. Outros e promissores saberes necessários; era preciso salvar o homem. Era preciso lançar sobre ele novas e sólidas bases. A goteira precisava ser estancada.

Um projeto foi iniciado, e sobre o qual a filosofia, pelo menos, nos últimos 100 anos tem se debruçado. Está em andamento, porém, como todo projeto, como a engrenagem num sistema, está em ajustamento. Estamos à espera e torcendo; enquanto isso, que nos console a saudade de tempos não vividos. Que às montanhas outros tantos mais se refugiam e, de olhos nas estrelas, saibam a hora de descerem. E ao pé da montanha, outros homens subam e esperem sua hora. Os que desceram, joguem suas sementes no solo fértil da criança.

Uma nova humanidade. Uma nova e revigorada maneira de se olhar no espelho e não chorar.