O que é arte 5 – Jarra de Suco e Fôrma de Bolo – Forma x Conteúdo
As vezes a gente traz umas coisas tão estranhas para a nossa fala, não é? Sempre quis fazer um ensaio sobre o que é um argumento ser “abstrato”. Sempre me chama tanta, tanta atenção quando alguém diz que um raciocínio é mais abstrato ou mais concreto. Todos os raciocínios e argumentos não são necessariamente abstratos? Quero muito escrever sobre isto algum dia. O uso de termos específicos ao mundo físico no mundo das ideias sempre me chama atenção. Agora que estou escrevendo sobre arte o uso que me interessa é o da forma e do conteúdo. Gente, que coisa doida é esta? O que é forma de uma poesia, de um filme, de uma dança? O que é a forma em um livro? Qual o conteúdo de um livro? Um balde sim, ele tem forma. Pode ter como conteúdo água, areia, bijuterias... Pois é, neste ensaio venho investigar o que é forma e o que é conteúdo.
O exemplo da jarra é bacana. Qual é sua forma? Varia, mas em geral é um recipiente meio cilíndrico fechado na base e aberto na parte superior. Qualquer líquido se molda as suas dimensões físicas, à sua forma interna. Mas o líquido se moldará a outro lugar assim que sair do balde. O suco de laranja assim que deixar a jarra e passar para o copo assumirá a forma do copo. A jarra não deixará no suco sua expessura, sua cor, não deixará seu formato. Inclusive se passarmos um suco de uma jarra para outra jarra e para um balde e novamente para a primeira jarra nada estará diferente com o suco. A única impressão que a jarra deixará é o volume. Não pode sair mais suco do que cabe na jarra. Assim se a segunda jarra for pequenininha o volume de suco que retornará à primeira jarra será o volume desta jarra pequenininha. O volume, deste modo, é a única memória que cada recipiente imprime ao suco. E só o imprime para menos. Repare, despejamos todo o suco da primeira jarra em uma jarra menor. Um pouco do suco vai transbordar. Desta segunda jarra despejamos o suco em um balde enorme. Não haverá mais suco apenas por conta da imensitude do balde. Pegamos o suco que está no balde e despejamos na primeira jarra. O suco assumirá novamente a forma da primeira jarra, à excessão de que agora tem menos volume (devido ao transbordamento na segunda jarra). Se, no entanto, todas as jarras e baldes forem do mesmo tamanho ou maiores do que a primeira jarra o suco voltará exatamente como estava à primeira jarra. A distinção forma e conteúdo aponta para esta característica da forma (a de poder transportar conteúdo). De acordo com a perspectiva que trago para definir arte esta é a principal característica da ‘forma x conteúdo’: A forma é se repete e é veículo. O conteúdo varia e é trazido pela forma. A metáfora da jarra e suco ilustra bem este ponto. Mas para definir arte é necessário que esta distinção (forma x conteúdo) seja mais apurada.
Voltemos a investigar o mundo físico. Existem outros recipientes que guardam conteúdo, mas que ao contrário da jarra de suco imprimem muito de suas características. Uma delas é a fôrma de bolo*. Assim como o suco se molda à jarra a massa do bolo se molda à fôrma. Entretanto ao sair de lá (como um bolo pronto) o conteúdo terá o formato bem influenciado pelo da fôrma. Há que se considerar que inúmeras características vêm do conteúdo (massa). Mas se você é um cozinheiro atento sabe que a forma não apenas imprime o seu formato como também influencia em diversas características do bolo. A textura, por exemplo, de um bolo feito em uma forma que tenha muita, muita superfície terá mais casquinha. Um bolo feito em uma forma desproporcionalmente grande pode ficar mais queimadinho. O que importa aqui é que o conteúdo pode variar imensamente. O bolo pode ser salgado ou doce, pode ser de frutas, pode ser pequeno ou grande, pode ser solado, pode estar no ponto, pode ser queimado. Mas independentemente destas coisas o conteúdo (bolo) guardará uma memória do recipiente que o levou (fôrma).
Comparemos as duas formas (jarra e forma de bolo) e os dois conteúdos (suco de laranja e bolo). Ao tomarmos o suco importa de qual jarra veio? Não fará diferença de qual jarra veio, a não ser que você esteja com muita sede e a jarra seja bem pequenininha. E quanto ao bolo, faz diferença de que forma veio? Faz. Se a forma está amassada poderá quebrar o bolo ao retirá-lo, se a forma for redonda ela terá menos casquinha, se ela é alta o bolo pode subir mais, se ela é de borracha (aqui em casa tem umas de borracha, são péssimas) a casquinha fica mais fina e queima diferentemente. Mas também: se a forma é funda o bolo pode ficar mais fofo... enfim. No caso do bolo o conteúdo (ovos, açúcar, frutas, farinha....) é importantíssimo no sentido de dar as características finais do bolo. Mas você terá uma experiência bem diferente se comer um bolo de uma forma muito diferente da outra. Ou seja, o bolo traz consigo (como se fosse uma memória) a forma da forma de bolo. A minha experiência ao tomar o suco é a mesma independentemente da jarra de onde ele veio. A minha experiência ao comer um bolo é diferente dependendo de que forma veio o bolo. Certo, acabamos de ver como a distinção ‘forma x conteúdo’ pode se dar no mundo físico: em ambos os casos a forma é um transporte para o conteúdo. No primeiro caso (da jarra e suco) o contúdo passa incólume pela forma. No segundo caso (da forma e do bolo) a forma imprime uma marca ao conteúdo.
Espero que no mundo físico as coisas estejam claras. Até porque nele as coisas se dão de maneira inequívocas. Sabemos que a jarra, o copo, a forma de bolo, o balde, uma caixa são a forma. Também sabemos que o que está lá dentro, ou seja, a água, suco, a massa, a tinta, a brita são os conteúdos. E no mundo das ideias** quem é forma, quem é conteúdo? Por um lado a resposta é simples e uma mera transposição da metáfora do mundo físico. A forma é o que se repete, o conteúdo é o que varia, lembram? Uma jarra tem sempre a mesma forma, o conteúdo varia e se molda a ela. Então antes de tornar este ensaio realmente interessante vamos nos deter um pouco neste aspecto. Pense em uma editora brasileira. Ela publica vários livros em português. Todos os livros têm as mesmas regras de ortografia e de sintaxe. Sintaxe e ortografia se repentem, as histórias e temas variam? Taí, sintaxe e ortografia são forma. Os temas, as histórias, as dissertações e teses são conteúdo. Os clientes nas livrarias ao escolher um livro de receitas não ficará comparando a sintaxe e a ortografia, certo? Eles já pressupõem que todos os livros passaram por revisão e são escritos dentro da norma. Do mesmo modo os clientes ao procurar uma biografia ou um romance não se deterão na sintaxe e ortografia. Estes elementos (sintaxe e ortografia) se repetem. Os temas, assuntos, escolhas dos personagens, datas, autoria variam. Logo os temas, assuntos... são o conteúdo.
Está ficando claro? O ponto em que as pessoas apontam sua atenção é o conteúdo. Elas apontam sua atenção nele pois ele é que varia. Ao escolher livros não faz sentido ficar comparando as regras de escrita de cada livro. Elas são as mesmas. O que elas olham é o que varia, a história, a dissertação, a tese. Ou seja, elas olham o conteúdo. As pessoas se abstraem da forma e direcionam sua atenção ao que interessa, ao que varia, ou seja, ao conteúdo. Falei “ao que interessa”? É, falei. É isto mesmo. O interessante, o que atrai o interesse é o que traz novidade, é o que varia. As regras de leitura do livro já são dadas. Elas não trazem interesse. O que interessa (o que será usado como critério para a escolha do livro) é o conteúdo.
E o que varia no caso dos livros é sempre o que o autor escreveu e o que é sempre igual são as regras de escrita, certo? Bem... na maioria dos casos é isto mesmo. Mas pensemos nos Dom Quixote. Existem várias traduções desta obra para o português. Alguém interessado em ler o clássico pode olhar várias edições diferentes a fim de escolher uma. Talvez ela olhe a gramatura, a qualidade do livro, a capa, o preço. Talvez ela sente no cafezinho da livraria e leia algumas páginas a fim de conferir a qualidade da escrita, o estilo e – quem sabe – até mesmo para conferir as regras de escrita. Neste a compradora vai comprar o clássico de Cervantes de qualquer modo (ele é a forma). O conteúdo, neste momento, é o que ela presta atenção, é o que varia. Todos os exemplares que ela pode escolher têm a mesma história, mas todos tem preços diferentes, capas diferentes, estilos diferentes. Entenderam? A forma e o conteúdo dependem do contexto, dependem de onde aponta a atenção da pessoa : )
Estou satisfeito com o exemplo acima porque ele mostra que forma e conteúdo são relativas ao interesse do observador. Mas é um exemplo um tanto drástico. Para que a distinção ‘forma x conteúdo’ se mostre um instrumento razoável para pensar a respeito da arte ela deve ser capaz de um pouco mais de delicadeza. Devemos ser capazes de identificar o que é forma e conteúdo dentro da própria obra, dentro do que a autora (ou as autoras) produziu. Neste sentido gosto de pensar em filmes, até mesmo por ser a forma de arte que mais estudei. Vocês percebem que a própria distinção em gêneros pressupõem que cada gênero tenha algo em comum que o permite tal classificação? Uma comédia tem que ter algo que faça rir, caso contrário não é comédia. Uma comédia romântica além de fazer rir tem que ter romance. Bem... estas coisas se repetem, não? Sim, estas e muitas outras coisas. Por exemplo, quase todos os filmes comerciais tem o conflito principal apresentado antes de dez minutos de filme. Sabe aquele movimento inesperado e surpreendente do filme de ação policial? É, você está esperando por ele, não está? Estas coisas que compõem a estrutura dramática de um filme foram dissecadas e são estudadas por roteiristas. Esta estrutura dramática tal qual é estudada e seguida é a forma. Mas seguimos vários e vários padrões sem nos darmos conta disto. Lembram do exemplo do álgum no ‘O que é arte 2 – Organizando a Maçaroca’? Não me repetirei, mas tenha em conta que seguimos muitas regras, a maioria das quais seguimos inconscientemente. Estas regras são a forma.
Um expectador que porventura domine profundamente as formas ao ver uma obra que as utilize pode achar uma obra banal, convencional, batida, clichê, mera repetição. O mesmo exppectador vendo outro filme que utilize as mesmas formas pode achar o filme incrível, inovador. Isto se dá por dois motivos. Por um lado o cineasta pode apenas estar em busca de acertar o que já foi feito, repetir uma fórmula. Ele pode não trazer nada além do que aquela fórmula já trouxe. Outro caso é o do cineasta que se vale do conhecimento do público do que já está estabelecido para ir mais longe nas formas, ou para apresentar maior volume de conteúdo ou para apresentar um conteúdo em uma perspectiva diferente. O expectador pode usar seu conhecimento das formas para deter sua atenção aos pontos certos, assim o domínio das formas pode fazer com que ele enxergue mais longe. Mas o uso do conhecimento das formas pelo apreciador de uma obra depende de algumas coisas. Primeiro, obviamente, que ela conheça as formas. Segundo que ele tenha interesse em olhar outros pontos no mapa. Este é o assunto que abordo no ensaio ‘O que é arte 4’. Também não vou me repetir aqui. Apenas gostaria de chamar a atenção para esta característica: As estruturas (tanto para o autor como para o expectador) podem ser usadas de maneiras de maneira acomodada (como um encosto onde se escorar) ou como estruturas a partir das quais podemos subir para enxergar mais longe.
Gente, olha só, me preocupei em ser didático e persuasivo quanto a minha definição de forma e conteúdo a partir das metáforas da jarra de suco e da fôrma bolo. Creio que também ter sido claro quanto à minha definição de ‘forma x conteúdo’ em que o que é forma e o que é conteúdo variam conforme o interesse do apreciador da obra. Mas o uso de regras para a construção da obra é tema de outro ensaio 2. Assim como o interesse ser de acordo com o conhecimento e com o que a obra pode trazer é tema do ensaio 4. Então... estamos chegando ao final. Pretendo fazer um ensaio que recapitulando todos os outros ensaios, mostrando como se articulam. Ainda não sei se o farei quando da definição de arte ou antes. Também tenho dúvida se abordarei mais alguns temas... Mas sinto que estamos chegando na reta final. Espero que gostem de todos ensaios e de como se articulam. Abraços, beijos e até breve.
* Interessante como forma (das coisas) e forma (de bolo) se escrevem do mesmo modo, apesar de terem pronúncia e sentidos diferentes. Obviamente a forma de bolo tem seu nome por conta de sua característica de imprimir sua forma aos bolos.
** Gente, não pensem em Platão, ok. Acredito que a comparação vai mais confundir do que ajudar.