Uma pintura na terra de Carmen Miranda?
‘Sobre o quadro a óleo?’ Pausa. ‘O que ainda se encontra no Marco de Canavezes?’ Outra pausa. ‘Talvez o meu irmão Luís saiba alguma coisa.’ São as palavras do teu bisneto António Nunes da Ponte.
Nem o teu bisneto António ou o teu bisneto Luís, avançaram qualquer ideia sobre a provável fonte original da pintura. No meu entender? Que talvez seja uma fotografia a preto e branco. Quase de certeza, a fotografia, cuja cópia, aqui vemos ao lado da pintura. Em que te gostavas de ver. Está-se mesmo a ver. Em que a tua família gostava de te ver. Que as pessoas gostavam de te ver. Talvez por saberem que gostavas tanto dela quanto elas, quando morreste, a tenham enviado aos jornais. Ou para figurar nas instituições por onde passaste. Assim foi ela parar a jornais do Brasil, dos Açores (sei), do Porto, de Coimbra, de Lisboa (suponho). Foi parar a instituições por onde passaste: o Governo Civil do Porto, a Câmara Municipal do Porto, o Congresso e a Câmara dos Deputados. Desconhece se estás na Santa Casa da Misericórdia ou na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto.
Ao contrário daquela, na pintura, não és um Homem a preto e branco, és um Homem a cores, retratado com as cores que te viam em vida e que te queriam ver na morte: loiro de olhos azuis. E magro. Como me confirma o teu bisneto Luís, recordando a descrição que o pai lhe fazia de ti: ‘era louro de olhos azuis e magro.’ Isso vê-se na pintura, mas nem na fotografia nem na pintura, se vê se eras alto ou baixo. De novo o teu bisneto: ‘acho que não era alto.’
Acho até que, se o pintor que te pintou te retratasse como te via, haveria que te ter pintado com dedos e dentes amarelecidos pela nicotina. O teu bisneto, afiança que ‘eras um fumador inveterado.’ Até disse, que ‘lavavas e secavas o tabaco antes de fumares.’ Mas isso, seria inconveniente pintar, num retrato que, ainda que íntimo, se pretendia circunspecto.
Entre outras sempre possíveis de considerar, há mais diferenças, além da cor, entre o retrato a preto e branco e a pintura a cores. Apesar de, em ambos, mostrares um ar grave, calmo e suave, o pintor deu-te um olhar mais íntimo e doce. Dás de ti uma imagem de docilidade, até de ligeira infantilidade de avô babado, adorado pelos netos. Não é verdade que quando a tua primeira neta nasceu, lhe dedicaste um poema? Ou que mataste uma víbora quando te passeavas com outro neto?
Na fotografia, és o homem institucional, o Presidente, o Governador Civil, o Deputado, o Médico, enquanto, no retrato, és o homem da família, o pai, o avô, o sogro.
Esta fotografia, suposta matriz inicial, terá servido de embrião ao postal de propaganda, como já se viu.
E para delinear a caricatura, como também já se viu.
Pelas partilhas do que deixaste atrás, após a tua morte, a pintura coube aos descendentes da tua filha: os Guedes. Encontra-se exposta num recanto especial erigido à tua memória na casa de Marco de Canavezes. Que conheceste. E de que tanto gostavas. O teu retrato, imagem pública, anda espalhado nas páginas dos jornais e nas paredes sisudas das instituições.
Últimos reparos: se o retrato fotográfico é uma partilha, que tipo de partilha representará o retrato pintado? Continuidade (inicial ou perene) entre os remotos tempos da aristocracia do sangue e os novos ares da aristocracia do mérito? Enquanto a fotografia a cores não disputou a prioridade do retrato a óleo?
Mário Moura