... as duas noites se encararam...

Humberto ainda enxugava o cabelo com a toalha quando encontrou a pequena sentada na cama com as mãos no notebook.

- Está cheirosinho, meu anjo? - ela perguntou com um sorriso no rosto; o mais belo sorriso.

- Aham - sentou-se na outra cama para enxugar os pés e vestir a meia.

- Você não quer o secador de cabelo...? - disse examinando as madeixas ainda úmidas do molecote.

- Não precisa... Eu enxugo com a toalha...

- Nossa... Tem três pastas iguais... - ela falava sobre os arquivos do livro que escrevia - Será que são arquivos diferentes...?

O guri terminou de vestir as meias e sentou-se cruzando as pernas embaixo dele.

- Eu preciso pendurar a toalha pra secar, Tha... - disse buscando com o olhar a porta.

- Deixa que eu estendo... - ela pegou a toalha da mão do alemão e desapareceu pela porta; não deu nem tempo de Berto terminar a frase "não se preocupe... eu estendo...".

Voltou e então sentou-se de frente para ele. Passaram o dia todo lá fora, no banco do parquinho. Brincaram com os pequeninos do condomínio e com o irmãozinho da doce guria. Pega-pega. Esconde-esconde. O banco também foi palco de inúmeras carícias e beijos. As horas passaram e o tempo foi testemunha daquele carinho. O Sol foi espectador. O branquelo alemão ficara levemente roseado nos braços.

- Você ficou bem vermelho... - a feição de preocupação tomou seu rosto - Quer passar hidratante?

- Pode ser - o guri se autoexaminava com o olhar.

Ela se levantou e pegou no armário dois frascos diferentes de creme.

- Esse aqui é bem fresquinho... - entregou a ele enquanto lia o rótulo do outro.

Ele deixou uma porção minúscula cair-lhe sobre os dedos e espalhou toscamente pelo braço esquerdo.

- Tem de passar mais, guri...

Ela espalhou com carinho a loção pelos braços do guri. Aquele toque repleto de cuidado e carinho.

- Obrigado...

Ela se sentou ao seu lado.

- Ah! - levantou-se em meio a um susto - Eu vou te mostrar algumas fotos, sabe? - eles tinham conversado sobre a infância e recordado as memórias da pequena com a mãe dela enquanto reliam as cartinhas que a guria recebera.

Humberto sorriu. Ela se estendeu na ponta dos pés para alcançar uma caixa no alto do armário. Fechou o compartimento e então abriu a caixa na cama.

- Eu vou selecionar o que você pode ver, sabe? - ele gostava do leve som de sua voz ainda mais com aquele tom de brincadeira.

- Tudo bem... - ele se contentou.

Ela deu a ele algumas fotos de uma jovem muito bonita, bonita feito ela. As fotos já tinham algum tempo. Era a mãe dela, dona Rose.

- Minha mãe quando era modelo... - explicou entregando mais um leva de fotos.

Ela era realmente muito bonita, ainda era. Logo em seguida um álbum da pequena.

- Você parece uma princesa... - os olhos brilharam junto do sorriso do alemão enquanto ele examinava aquela pequena menininha de daminha de honra - Ah, guria... Que fofinha! - ele sorria.

Mostrou suas fotos de guriazinha. Pequenina de tudo. Bebê. Criança. Algumas até mais recentes. Eles riam e sorriam. Ela sem jeito. Ele achando graça. Ela dizia que tinha cabelo de piá. Ele achava um charme.

- Não sei porque você fica envergonhada de mostrar tuas fotos, sabe? - disse de olhos fechados; dissertando - Você era uma fofa... Lindinha! - sorria.

- Não era não... Nem sou também...

- Guria... Pra mim, você é sim... E era a guriazinha mais lindinha de todas... - lembrou das fotinhos da festa junina, do aniversário, dos pezinhos tortos nas fotos; riu.

Ela veio para mais perto.

- Você está com sono, não é meu doce? - carinho na voz.

- Só um pouquinho... - estava com pouco sono mesmo.

(*)

Hero e Leandro.

Ele se deitou. Ela também. Ela lia. O guri observava o teto enquanto ouvia a narrativa.

- O sol começava a desaparecer lentamente nas águas do Helesponto... - fechou os olhos ao ouvir a doce voz que vinha do seu lado - o grande estreito marítimo que separa a Ásia da Europa. No lado europeu estava situada a cidade de Sestos, onde vivia uma jovem sacerdotisa de Afrodite, chamada Hero...

O guri prestou atenção a cada detalhe da história, da voz da Liberdade e pensou em como estaria disposto a atravessar todos os oceanos e mares do mundo a nado se preciso fosse só para estar ao lado de sua pequena. Se por um acaso levasse o mesmo infeliz fim de Leandro, levaria na tentativa de estar uma vez mais com o amor da sua vida: ela.

- Por um momento as duas noites se encararam — embora a face trágica de Hero demonstrasse não indiferença, mas força e determinação, ao deixar-se cair no abismo do mar... - narrou o olhar de Hero frente a seu fim.

Ele se voltou para ela. Terminara a trágica e bela história. Ela deixou o livro à cabeceira da cama. Eles se entrelaçaram. Humberto sentiu que seu coração começava a bater ainda mais forte. Ela colou o rosto ao peito do molecote.

- Eu posso ouvir teu coração - disse sorrindo enquanto era envolta pelos braços do alemão.

- Então pode ouvir que ele só bate por você... - beijou-lhe a testa.

A guria se virou, encaixando-se ao relevo do corpo do guri. Ele a abraçou de forma com que as costas da doce Liberdade se confundissem com seu peito. Eram um só. Envolveu a cintura da pequena com o braço e com o outro, que passava por debaixo do pescoço delicado da garota, acariciava seus cabelos. Ficaram assim por alguns instantes. Humberto rendeu-lhe beijos à nuca, ao pescoço.

Em mais um movimento ela deitou-se com as costas na cama. O alemão ficou de lado.

- Eu te amo, pequena - disse com a voz baixa; audível apenas naqueles poucos centímetros entre seus lábios e a orelha da guria.

- Eu também te amo, meu anjinho... - o mesmo volume; a mesma distância.

Os lábios se encontraram. Perderam-se ali, no mesmo instante em que se encontraram. A Terra parou de rotacionar, de transladar. O tempo parou. Não existia nada, ninguém, além dos dois. Nada além daqueles lábios unidos. O mel daqueles lábios encheu o peito de Humberto. Seu coração transbordava.

Olhou no fundo daqueles olhos verdes e viu um brilho. Seus olhos também brilhavam. O estrelado céu que Hero fitou no derradeiro instante não era tão belo quanto aquele olhar: o dela.