O que é arte 4 – Esperar e Inesperar – Ensina-me a viver – Sociedade dos Poetas Mortos
Há uns fiz um blog cujo tema eram resenhas de filmes, seu nome era ‘Esperar e Inesperar’. O blog foi um fiasco, publiquei apenas uma resenha e minha namorada da época (Erica) apenas uma também (sobre ‘Quem quer ser um milionário’). Mas eu amava o título do blog, achava-o surpreendente e refletia uma visão que eu já tinha sobre arte. Tem a ver com o suspense (que nos faz esperar) e com o elemento surpreendente (que é o inesperar). Mas este título também tem a ver com as observações que li antes do peça ‘Édipo.’ A observação dizia que a peça ficou apenas em terceiro lugar em um concurso de teatro – justamente pela falta de originalidade. Todo o público conhecia a famosa lenda. Mas isto tornava a peça ainda mais atraente pois permite ao expectador olhar com atenção a outros, permitia ao expectador prestar atenção à forma de contar a estória.
Suponha que você vai ouvir uma história dos inuit (o povo que vive no norte da América, conhecidos como esquimós). Cara, com certeza você não vai entender nada. De fato você não conseguiria entender nada nem se traduzisse palavra por palavra – isto acontece porque eles são de um tronco linguístico separado e autônomo. O que quero dizer é que com a ignorância não se pode apreender nada. O exemplo ficou muito drástico? Bem, pense que você é um bancário (como eu sou) com uma formação em ciências sociais. Agora pense em ler uma tese de doutorado de física escrita pelos russos na década de setenta (o estilo russo de escrever é famoso por ser denso mesmo entre os físicos). Mesmo que o russo esteja muito bem traduzido e que eu conheça os símbolos matemáticos eu não entenderei a tese. Posso até entender uma ‘frase’, talvez a conclusão faça algum sentido. Mas é isto entender? O caso é que sou ignorante na área, e por isto não me interessa, não me acrescenta, não me prende. O exemplo ainda está muito extremo? Eu sei, eu sei, parece que estou tocando no mesmo ponto que toquei em outro ensaio – quando dizia que só é possível apreender uma obra se o expectador tem internalizadas as regras intrínsecas à obra. Gente, não estou me repetindo. Na verdade o meu alvo neste ensaio é o interesse. E o que quero dizer neste parágrafo em particular é que se ignoramos tudo não temos interesse na obra. Mas este “ignoramos tudo” é capcioso. Por um lado, se ignoramos até os símbolos, não teremos interesse na obra e ela é completamente inacessível a nós. Mas mesmo entendendo cada símbolo, cada frase ainda posso ignorar tudo. É o caso de alguém sem formação densa em física tentando entender uma tese de doutorado. Mesmo conhecendo cada símbolo a pessoa ignora tudo. Ela não terá interesse na obra. Este é o ponto, a ignorância total leva ao desinteresse! Pense em alguém que conhece as regras do futebol, mas desconhecer as estratégias, como é difícil executar um lançamento perfeito, a história de um jogador (que se lesionou e virou o maior artilheiro da copa), o que está em jogo naquela partida... o jogo será muito menos sedutor para esta pessoa. A ignorância leva ao desinteresse.
Agora pensemos no oposto. Lembram daquele russo que escreveu uma bela tese de doutorado em física? Pense que ele começa a dar aula da matemática no primeiro grau. Ele pode adorar lecionar, adorar as crianças... Mas todo interesse que ele terá nas resoluções matemáticas das crianças será um interesse em entender o desenvolvimento delas – ele não terá um interesse em cada uma das resoluções por sua contribuição na matemática. Ou seja, se conhecemos tudo também temos o interesse reduzido. Passando para a ceara da arte. Imagine ver um filme em que você conhece toda a estrutura. Ele se torna previsível, não? Eu lembro da minha mãe no cinema. Eu ficava impressionado como na metade dos filmes ela sempre sabia quem era o culpado ou o assassino. Ela estava muito familiarizada com as estruturas. Usualmente ela fazia a seguinte crítica, ‘Achei o filme legalzinho, mas muito previsível.’ Entenderam? Por não ter nada novo, por ela conhecer profundamente a estrutura os filmes se tornavam banais. Mas este super conhecimento das estrutuas do filme pelo público as vezes é usada pelos cineastas. Alguns filmes só são inteligíveis para quem domina a estrutura, quem escreve o roteiro já pressupõem este domínio pelo público. É o caso de 007 - Operação Skyfall, por exemplo*. Vários elementos da trama não são colocados pelo filme, dependem profundamente do entendimento pelo expectador das estruturas narrativas do filme. Se ele fosse passado a sessenta anos atrás, você acha que faria sucesso?
No sentido de entender como o conhecimento das estruturas influi na experiência de ver um filme falarei um pouco a respeito da minha experiência vendo dois clássicos. Recentemente vi ‘Ensina-me a viver’. A história de um jovenzinho rico, mimado e excêntrico (vivia fingindo com muito realismo que estava suicidando) que se apaixona por uma velhinha muito doida. Ela acaba ensinando o que é se jogar no mundo e apreciar a vida, mas acaba morrendo ao fim – por causas naturais. Este filme tem este elemento belíssimo que é a paixão improvável entre um menino em torno de dezessete anos e uma senhora de oitenta e o amadurecimento que o garoto alcança através desta relação. Ao escrever aqui o filme me emociona, mas enquanto o assistia o achava meio chato. Percebia que este elemento não era novidade para mim. Fiquei com a impressão nítida de que o que ele trazia já havia sido abordado em outros filmes – que com certeza foram influenciados por ele.
Esta mesma experiência fica muito, muito mais clara ao ver ‘Sociedade dos Poetas Mortos’. Sou suficientemente velho (e minha mãe me levava ao cinema desde criancinha) para tê-lo assistido no cinema. Lembro que me causou fortíssimas emoções – e de fato o filme alcançou sucesso entre crítica e público. Fala de uma escola convencional em que aparece um professor de mente mais aberta orientando os alunos a serem livres. Bem... reassisti este filme ultimamente. Nossa, aquilo que me parecia tão revolucionário me parecia aos olhos de hoje tão banal. Por que seria? Acredito que Sociedade dos Poetas Mortos é um dos filmes mais copiados pelo cinema americano. De dois em dois anos aparecia algum filme de um professor que lutava contra o sistema pelos alunos. Então este (Sociedade dos Poetas Mortos) apesar de ser o primeiro e o mais revolucionário, acaba se tornando banal a quem já viu um monte de filmes que traziam os mesmos elementos abordados, a mesma estrutura dramática. Ele se torna bobinho. O que eu disse no começo deste ensaio é, ‘Quando somos muito ignorantes não temos interesse no assunto’. O que estou dizendo agora é ‘Quando a obra não traz nada de novo ela é banal’. E o que seria este algo de novo? Isto é extremamente subjetivo. Pode ser apenas olhar a mesma trama sob um olhar sarcástico. É o que aconteceu em ‘Pequena Miss Sunshine’. O filme é inteiramente dentro da fórmula do tipo Rock – o lutador. Uma pessoa improvável lutando contra desafios monumentais e os vencendo. Mas em ‘Pequena Miss Sunshine’ a vitória é absolutamente sarcástica. A vitória consiste em ficar de pé no palco e fazer uma exibição absolutamente imoral. A vitória também inclui a transformação de todos os personagens. É um filme fantástico e um belo exemplo de como a mesma fórmula pode ser relida trazendo frescor.
Mas se conhecer todos os elementos faz com que achemos uma obra banal, por que assistimos o filme de que gostamos várias vezes, lemos o mesmo livro várias vezes, apreciamos o mesmo desenho várias vezes, apreciamos uma demonstração matemática várias vezes, lemos uma partitura várias vezes... enfim, porque rever algo que já conhecemos? Duas razões: a primeira e mais simples é porque as obras são ricas, infinitas. A cada contato temos acesso a mais detalhes. No primeiro contato muito da obra só pode ser apreendida com muito esforço e atenção – ou nem pode ser apreendido de fato. Quando revejo um filme é bem usual eu me deparar com detalhes que me escaparam na primeira, na segunda, na terceira vez que o vi. A atenção muda a cada vez que apreciamos a obra. Algo que nos encantava e demandava toda a nossa atenção passa a ser trivial o que liberta nossa atenção a para outros pontos que não procurávamos. Do mesmo modo temos acesso a mais informações – o que faz que algumas coisas que não tinham sentido no primeiro contato passe a ter sentido em contatos seguintes. Assim outros elementos passam a existir na obra. Afinal a existência de qualquer detalhe da obra é a nossa apreensão e atribuição de significado a este detalhe. Ou seja, a primeira razão para gostarmos de revisitar é que com o conhecimento adquirido nos contatos anteriores novas cortinas se abrem revelando novos mundos encantadores. A cada vez que visitamos a obra ela está mais rica. A própria obra cresce, a cada visita novos detalhes se abrem até que tudo o que nos atraia seja absorvido. A própria obra muda para quem a vê diversas vezes, ela fica maior e maior, sempre tem mais a oferecer. Mas o interesse cai a medida que consumimos tudo o que nos interessa, na medida em que apreciamos cada detalhe.
O primeiro motivo para revisitarmos uma obra é que ela muda a cada vez que a conhecemos melhor. O segundo motivo – um pouco mais intrigante – é que nós próprios mudamos. É por isto que revisitar uma obra após anos é bem diferente de revisitar uma obra após minutos. Após anos nós mudamos muito mais. Podemos ter esquecido o que vimos, ou muitos de seus detalhes. Mesmo assim podemos ter um maior acervo de experiências, de conceitos, de ferramentas.... Após conhecer a dor profunda de uma paixão não correspondida minha experiência vendo um filme romântico pode ser muito mais intensa (pois agora vejo detalhes que minha falta de experiência não permitia ver). Ou pode ser uma experiência mais banal (pois já vivi aquilo, já conheço). O fato é que mudamos constantemente e isto muda drasticamente a nossa experiência com as obras.
Concluindo. Existem dois motivos pelos quais gostamos de revisitar uma obra. O primeiro é que ela não é sempre a mesma. Ela cresce a medida em que a conhecemos mais profundamente. O segundo motivo é que nós mudamos. Novas experiências fazem com vejamos a obra com novas perspectivas, com mais vida, mais experiência. Esta distinção é bem esclarecedora. Mas sendo minuciosos é preciso admitir que ambas os motivos são apenas um só. Haja visto que o motivo pelo qual a obra cresce é que nós mudamos ao ver a obra.
Outro ponto que tem que ver com o interesse é o tempo que o expectador consegue manter a concentração. Aqui em Brasília vi umas exposições de quadros em que cada pessoa ficava em média muito pouco tempo em cada quadro. Pouca gente fica vinte minutos em um quadro. Na verdade dois minutos já é bastante tempo. Esta pessoa aguentaria ber Bambi? Com certeza aguentaria ver aqueles filmes que são apenas uma série de piadinha de dez segundos, uma atrás da outra. Por outro lado, uma pessoa que fica vinte minutos apreciando um quadro conseguiria ver Madagascar e suas piadas frenéticas? Não digo que um jeito é melhor do que o outro. Mas acredito que alguém que consiga modular a atenção (para conseguir focar vinte minutos em uma coisa ou que consegue focar em vinte coisas diferentes em vinte minutos) está aberto a muito mais experiências.
Tenho que concluir o texto pois minha meta que cada ensaio tenha no máximo três laudas. Gostaria apenas de registrar que quem deu a ideia de que somos diferentes a cada vez que apreciamos uma obra foi o professor Júlio Cabrera. Se alguém tiver curiosidade de saber em detalhes a ligação entre o título e este ensaio ou quiser saber quando e como nasceram as ideias basta mandar uma mensagem : )
* Escrevi uma resenha em que defendo a tese de que vários elementos ‘007 - Operação Skyfall’ só são inteligíveis porque o público conhece a estrutura. http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdefilmes/3958466