Uma Mesa no Natal
Quando começa Dezembro parece que os corações amolecem para endurecerem de novo em Janeiro. Não é uma visada pessimista, mas uma constatação de que, nem sempre, há uma preocupação com os que andam sempre de dentes limpos. Talvez eu deva corrigir: preocupação há sim, mas cuidado [talvez] não. Da preocupação ao cuidado há um abismo muito grande. Posso tranquilamente comer uma ceia preocupado, mas não abrir a porta se alguém bate.
Recorro à tradição dos antigos hebreus para pensar melhor como a hospitalidade estava sempre na pauta do dia. É claro que a vida de seminomadismo, as carências, as intempéries e os desencontros tornavam a hospitalidade algo necessário, profundo, salvador. Mesmo assim, os resquícios deste modo de vida desliza pelo Antigo e pelo Novo Testamento como um sinal importante de algo a ser recuperado. Lembro-me de um fragmento egípcio datado do vigésimo século antes de Cristo, onde uma personagem chamada Sinuhe está em fuga. Em dado momento do texto, encontro isto:
“O chefe dos setyus, o qual estivera antes no Egito, reconheceu-me, deu-me água, levou-me para a sua tribo e mandou ferver leite para mim. Eles me trataram bem”.
Aqui uma clara indicação da mesa, da hospitalidade e da proximidade. Traços dessa acolhida são encontrados na atitude de Abraão em Gênesis 18; no relato de Lot em Genesis 19; na Páscoa do Egito em Êxodo 12. Da mesma forma, há inúmeras recomendações sobre o estrangeiro que deve ser hospedado na terra. Na mesma direção, o Novo Testamento se configura: observamos como Jesus anda de um lugar a outro nos Evangelhos, sendo hospedado pela sogra de Pedro, por Marta, Maria e Lázaro; por Zaqueu e pelos dois discípulos na aldeia de Emaús. E mesmo que não seja Jesus, encontramos, na parábola do Samaritano, o modelo de proximidade, atenção, desapego e compaixão.
Pois é. Assim, neste mês de Dezembro onde as cestas básicas se multiplicam e as “boas ações” se fazem ver, ouvimos o conselho do Senhor sobre uma história de mão esquerda que não deve saber o que faz a direita. Ao mesmo tempo, este convite é para que o coração esteja amolecido sempre e os ouvidos atentos a quem pede o que comer. Mesmo quando acusados de paternalistas ou assistencialistas, creio que haja valor porque a fome não espera. Me lembro, também, de Carolina Maria de Jesus que disse:
“Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. Comecei sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida?”