O que é arte – Parte Zero – O escultor de bois - Sentidos da Traição

Gente, por que definir arte? Arte já não foi definida? É só procurar em qualquer dicionário. Em cada dicionário vai encontrar um montão de definições porque arte tem um monte de sentidos diferentes. Um dos sentidos é o de pregar peças. Por exemplo, ‘Menino, para de fazer arte!’. De todos os sentidos que achei no dicionário on line (não achei meu dicionário impresso, falta de organização) apenas um se refere ao sentido que irei definir mais tarde:

6 Filos Complexo de regras e processos para a produção de um efeito estético determinado.*

O que vocês acharam desta definição? Como eu esperava é uma definição vaga e superficial. Um dicionário não tem espaço para abordar com precisão que merece cada uma das definições, certo? Se o fizesse ia até fugir de sua finalidade, quem busca o dicionário não está procurando uma tese de doutorado. Me surpreendeu porque usou o termo ‘regras’ , mostra que estou um pouco em consonância com o espírito do dicionário nos meus ensaiozinhos : )

Talvez seja melhor pensar ainda mais genericamente. Por que definir qualquer coisa? Pense no conceito antes que ele seja definido. Pense nos usos corriqueiros da palavra. Nossa, como ela é explorada com tanta riqueza! Usamos a interpretação pessoal e específica e criamos vários sentidos próximos, mas não exatamente iguais uns aos outros. Sentidos específicos e perfeitos a cada situação! Além de ser rico, lindo é super útil pois assim damos conta do nosso cotidiano. Então, será que definir um termo (ou seja, submetê-lo às grades de uma interpretação específica) não é um crime? Por que cometer tal atrocidade? Minhas queridas, é para responder a esta questão que escrevo este ensaiozinho : )

Minha mãe sempre me contava uma estorinha. O tio Luiz (irmão do meu avô) foi até um excelente excelente escultor de bois. Ele fazia detalhes incríveis com muita técnica, captava as proporções, mas também o movimento , a força, a inteligência do boizinho. Incrível, não é? Acreditem, a arte pode fazer ainda muito mais do que isto. Vou interromper um pouco a estorinha para chamar a atenção a uns aspectos desta escultura. Ela – do seu próprio modo – define um boi. Talvez não em sua altura (afinal a escultura é apenas um pouco maior do que uma mão), nem tampouco o peso (o boizinho de madeira é bem levezinho). Mas coisas que existem têm tantos aspectos quanto uma investigação perspicaz é capaz de produzir. Neste aspecto, qualquer coisa é infinita. A definição, por sua vez, é artificial, é produto do esforço de entender/criar o mundo. ** Percebem? As definições, como as esculturas, dão conta (e criam) um aspecto da realidade. Estão entendendo? A criação e a percepção neste momento estão juntas!

Um dos motivos pelo qual é tão difícil abordar arte é que a experiência artística é necessariamente pessoal e subjetiva (isto pretendo abordar quando do último ensaio, o que definirá arte). Eu sei que é possível uma fotografia de um boi definir algo como paixão, ódio, feiura... é possível não definir nada. Eu sei, tá? Mas não é o caso desta escultura. Nela o escultor define de fato um boi***. Algo extraordinário nesta definição é que ela pode abarcar conceitos, sentimentos, sentidos, emoções que nunca foram nomeados. A arte tem liberdade para ir muito além das duras fronteiras da ciência! Mas esta definição do nosso escultor também tem seus limites. Vários. Um biólogo não poderia se basear nesta escultura para escrever sobre o comportamento dos bois, por exemplo.

Voltando à estorinha: um dia uma cliente perguntou, ‘Como é possível um boi, tão expressivo, tão bonito? Como é que você faz isto? Como alcança tanta perfeição?’. O escultor, sem sequer tirar os olhos da madeira que estava talhando responde: é muito simples, tiro tudo o que não é boi, deixo apenas o boi.

Bonitinha a estorinha, né? Esta humildade e simplicidade são tocantes. Parece uma estoria budista. Vou recapitular o que esta fabulazinha trouxe, ok? Primeiramente temos o toco de madeira. A partir deste toco o artista que fará o boi poderá fazer o boi que quiser. Nisto se assemelha às pessoas que no uso corriqueiro das palavras podem atribuir sentidos diferentes à mesma palavra. Segundamente a escultura não tem todas as características de um boi. Tem apenas as características que o artista julgou pertinentes, interessantes, tocantes, factíveis. Do mesmo modo cada uso da palavra mesma palavra traz um sentido específico que quem usa acha pertinente à sua situação. Flexibilidade esta que se perde quando a palavra é definida, um monte de usos de seu conceito deixará de ser pertinente ao adotarmos uma definição.

A terceira característica desta definição (a definição do que é um boi através da escultura) é que o artista se expressa com muita liberdade. A experiência artística pode atingir as pessoas muito profundamente e falar de coisas que nem sequer foram nomeadas, o artista pode atingir a pessoa em um âmbito muito profundo. Um dos motivos para que o artista tenha este alcance é que a experiência artística não está sujeita às amarras de formalismos. **** Já a definição formal se vale dos padrões, das normas técnicas, de conhecimento amplamente aceito pelos pares para alcançar um suporte sólido, claro, conciso, sem ambiguidade. A definição técnica está em um alicerce sólido e pesado demais, dá segurança, mas mata a possibilidade dos vôos que a arte permite. *****

Agora vamos ao fim da estorinha. A escultora começa com um bloco de madeira. Nele qualquer coisa pode ser esculpido. Um avião, um sonho, uma pessoa, um dragão, um beijo, amor, desespero... O escultor, a medida em que vai talhando vai matando as possibilidades. Quando ele finaliza a obra todas as possibilidades infinitas se extinguem em favor do boi. Triste, não?... Eu acho meio triste. E a definição técnica? Tem algo que se assemelhe à definição artística neste quesito? Gente, nisto ambas são iguaizinhas. Uma definição técnica mata todas as outras definições. Pense no uso de um conceito qualquer pela população. Por exemplo, ‘Traição’. Pense na riqueza do uso do conceito pela população. Pense em como as pessoas usam este conceito de maneira rica para dar conta de sua própria realidade. Pensemos apenas no âmbito conjugal (para restringirmos um pouco os universo sobre o qual falamos). Tem gente que acha que um beijo na boca é traição. Tem gente que usa a palavra traição para sexo. Tem gente que diz que traição é apenas sexo sem camisinha. Tem gente (tive uma namorada assim) que diz que apenas olhar de uma maneira diferente já é traição. Tem gente que diz, que diz ao amigo, ‘Se você ficar com aquela menina estará me traindo’ mesmo sem ter nenhuma relação com a menina, apenas por gostar dela. Percebe a riqueza dos usos do conceito de traição? Percebe como esta liberdade permite dar conta de um monte de situações que a vida nos traz? Mas... percebe também a confusão que esta falta de padronização causa? Duas pessoas podem ter um grande conflito em casos em que uma se sente traída e a outra não sente que traiu. Prefiro me abster de falar em situações hipotéticas em que este conflito pode aparecer. Mas tenho certeza de que você já presenciou alguma discussão acalorada em uma mesa de bar debatendo os limites do que é ou não traição : )

Bem... o que eu busco fazer ao definir arte é exatamente isto. Tirar da madeira tudo o que não é boi. Busco matar a riqueza e a flexibilidade dos usos rotineiros do conceito de arte. Este é o preço de ter um alicerce sólido sobre o qual poderemos usar o conceito com clareza e objetividade. Triste, né? Sim... do mesmo modo que é triste matar as infinitas possibilidades guardadas no toco de madeira que a escultora talha. Mas, do mesmo modo que a escultora terei criado um boi – um muito bonito e expressivo, espero ; )

Revi este ensaio após tê-lo publicado. Quando o escrevi minhas principais preocupações foi ser didático e ser breve. Relendo agora acho importante rever um ponto sobre outra perspectiva. Perderei um pouco na brevidade, mas ganharei um pouco na clareza ao revelar o que motivou escrever este ensaio.

Em uma aula de filosofia lembro de um professor que dizia que não conseguíamos pensar fora dos limites da linguagem. Não pretendo entrar no mérito da questão - talvez algum dia faça um ensaio apenas sobre isto. Mas percebo que a questão colocada desta forma dá margem a um grande equívoco: Parece que quanto mais palavras, tempos verbais, estruturas, quanto mais conceitos mais amarras temos. Percebo que é justamente o contrário. As palavras não são grades que nos prendem. É difícil pensar fora das estruturas linguísticas porque elas são os degraus sobre os quais subimos, quando nos faltam geralmente paramos e tentamos fazer outro degrau. Definir um conceito a partir do uso corriqueiro da palavra é tão bonito quanto um artista que esculpe um boi a partir de um bloco de madeira. Nós (eu que defino e o artista que esculpe) matamos a riqueza de possibilidades em favor de uma criação. Espero que a minha (a definição de arte) seja tão bela quanto o boi que meu tio avô comprou.

*http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=arte

**Para uma reflexão mais profunda vejam ‘O que é arte’ Nelson Goodman.

*** Como disse, a experiência artística é necessariamente subjetiva. Então se digo que ele define um boi quero dizer que alguém ao ver a escultura entende o que é um boi. Não o boi em sua infinitude, mas em um recorte pertinente.

**** Neste ponto tenho novamente te peço paciência. Eu sei que em diversos casos existem padronizações na arte e símbolos muito bem estabelecidos. Nas estórinhas da Mônica, por exemplo, três tracinhos acima da cabeça significa espanto. Mas defenderei ao final que a experiência artística não está neste uso. Mostrarei que o padrão estabelecido pode dar subsídio à arte. Mas a experiência artística não está nele. Paciência, ok ? Este é um dos últimos temas que tratarei.

***** Em um ensaio futuro direi onde a experiência artística se dá, ok?