Ensaio
Assim que os ponteiros se encontraram, naquele final de noite, Manoel saía de casa (era um renomado padeiro) com destino ao seu trabalho. Um longo caminho escuro, estreito e perigoso ele tinha que percorrer. Entre transeuntes madrugadores, algazarra de pandilheiros, Manoel tinha que caminhar.
Ao chegar em frente à panificadora, um prédio de paredes amareladas (um local sombrio), retirou do seu bolso um molho de chaves e abriu a porta. Ele entrou e colocou um avental branco. Quase branco.
Os ingredientes para os primeiros pães foram escolhidos e postos à mesa (amido, farinha, sal, fermento etc.). A labuta deu-se início.
Em poucos minutos Manoel estava já espalhando a massa preparada. Mexeu, misturou, mexeu e misturou, e nada de chegar ao ponto a massa da qual sairiam os pães daquela manhã que se iniciava. E tentou. Mexeu a massa, misturou, adicionou açúcar, água, sal, mas logo percebeu que tudo estava contra ele. Parecia ter vida aquela massa rebelde que não atendia aos desejos do padeiro, que queria finalizar o seu trabalho, ou melhor, iniciar a sua obra.
Cinco horas da manhã da terça-feira.
Decepcionado, Manoel não conseguiu fazer os pães, os bolos, sequer um biscoito.
Afinal o que teria acontecido com a massa indomável?
Os assíduos fregueses esperavam inutilmente à porta da panificação. A porta continuou fechada. A causa, a falta da principal mercadoria matinal, o melhor pão da cidade. Nesse dia não houve expediente na mais conceituada e movimentada panificadora da cidade.
Tarde eufórica no outro lado da cidade.
Jaime, sua equipe de jogadores de futebol e todos os torcedores daquele clube vibravam interminavelmente.
Desmedida era a confiança de que o melhor time do campeonato seria campeão. Invicto, com o artilheiro da liga profissional, com grande destaque desde o início da competição, esse time tinha que ser consagrado campeão. Então, durante o último treino coletivo, o treinador convicto selecionou os seus melhores atletas. "Os onze principais" foram escalados para o jogo da decisão.
O time adversário chegara à decisão como “zebra” (termo futebolístico). Aquele era mais um motivo da certeza da vitória rondar a mente dos componentes do clube dirigido por Jaime. Os cronistas esportivos já deixavam estampadas nas colunas dos jornais matérias enfatizando a certa conquista da equipe de Jaime.
E a torcida agitada e confiante gritava:
- É CAMPEÃO! É CAMPEÃO!
A equipe adversária, visitante e inferior, foi a primeira a entrar em campo, como já era de se esperar, sob som irritante de vaias.
O árbitro deu início à partida.
Aos primeiros dez minutos de jogo o placar já mostrava 3 x 0 para o time visitante, aquele time tido como “zebra”. Depois de algum tempo a equipe invicta da competição, os jogadores considerados os melhores, já amargavam o temor da primeira derrota e o risco da perda do título tão almejado no decorrer do campeonato.
Os jogadores que prometiam espetáculo terminaram o primeiro tempo sob pressão, cobrança e protestos dos seus torcedores.
O que teria acontecido com os melhores atletas de Jaime? O que teria acontecido com aquela excelente equipe em jogos anteriores? Por que todos os seus jogadores não pareciam os mesmos? O treinador tentou fazer alguma coisa e mexeu no seu time.
Reiniciou-se o jogo. Segundo tempo.
Os quarenta e cinco minutos finais passaram-se como um raio. Porém, a equipe visitante teve tempo suficiente para colocar mais seis gols no time favorito.
Incrível!
9 x 0, esse foi o placar naquela tarde terrível. Final de campeonato.
Jaime, o melhor treinador da região, deixou escapar aquele título tão cobiçado. Algo era desnorteante na mente, nas pernas, nos pés e nas mãos daqueles que eram considerados os melhores atletas da competição.
As manchetes dos jornais do dia seguinte com certeza iriam ratificar o que fora visto naquela tarde decepcionante.
Time incompetente!
Chegou a noite. Vizinha àquela triste sede de futebol e de revolta localizava-se a escola principal da cidade. Mais uma noite de aula ali aconteceria.
Na manhã anterior entrando pela tarde de chuva miúda Valter, o professor de Matemática, havia planejado sua aula e avaliação do término de bimestre. Sua expectativa era a melhor possível. Afinal, ele tinha esperança de que seus alunos, por mais agitados e displicentes que fossem, em suas mentes trouxessem objetivos como o professor Valter também trazia. Ele esperava que aquela noite fosse a sua noite, a noite de seus alunos, a melhor noite, a grande aula.
Tentou entrar na sala e conseguiu. Passeou seus olhos ansiosos e cansados pelos quatro cantos da sala, de um mandrião a outro, fitando um aluno aplicado.
Via-se que mais da metade do seu alunado vivia na ociosidade da adolescência desinteressada. Uma advertência aqui, um pedido de silêncio ali, um “por favor”... e o tempo foi passando.
Quinze, vinte minutos passando ligeiramente diante de si.
De repente faz-se silêncio por alguns minutos, o professor expôs à turma exemplos de vida não tão distantes deles. O passado, o presente, o futuro... de um momento para outro ouviu-se um grito vindo do fundo da sala (João jogava um livro de Literatura na cara de Miguel).
Miguel que gostava dos cavaleiros medievais, empunhava um pedaço de metal que um dia teria sido uma perna de cadeira (tantas quebradas). Aquele pedaço de metal para o pequeno Miguel era agora um espadim. Tentava-se apaziguar a situação. Cinquenta minutos foram-se. A aula que Valter daria também se foi.
A campainha tocou.
Nas principais pinacotecas do país suas obras já foram expostas. Raras belezas já surgiram nas telas por ele trabalhadas.
Contudo, naquela tarde que se mostrava inspiradora, de frente com o cavalete encontrava-se Pedrinho, sem condições de pincelar suas telas. As substâncias corantes estranhas tornavam-se imagens impressionantes.
No vazio da moldura não havia guache nem nanquim, goma alguma matizaria a tela do pintor. Não havia aquarela. A paisagem, a natureza, as aves e as árvores aos seus olhos eram sem cor, sem vida, quase que invisíveis.
Com o pincel entre os dedos, Pedrinho recolheu o cavalete, a tela, recolheu tudo e agora fazia parte da natureza.
Alguns ligeiros anos depois se encontravam todas as tardes na pracinha central do hospício daquela cidade quatro senhores silenciosos. Cada qual mencionava apenas uma frase, todas as tardes, enquanto folheavam o jornal diário:
- Tentei ser padeiro!
Não sabia ele de quando era o jornal que folheava.
- Tentei ser treinador de futebol!
Não sabia ele se aquele jornal era em cores ou preto e branco.
- Tentei ser professor!
Não sabia ele que alguns dos seus clientes também se encontravam naquele lugar.
- Tentei ser pintor!
Não sabia ele que sempre foi cego e nunca foi mentalmente são.
Aquele jornal noticiava que um grande pintor surgia ao público. Mostrava uma tela que mostrava um pintor pintando quatro amigos sentados em poltronas perfiladas observando um filme em outra tela. Um filme sobre um professor cego que exercia a função de auxiliar técnico em um time de várzea, fraco, fraquíssimo, horrível. Porém, havia uma torcida imensa. Torcedores ignorantes, todos famintos, ou quase, eles traziam pedaços de péssimos pães duros. Eles gritam a uma só voz:
- Tentamos ser agitadores!
Não sabiam eles que o jogo havia chegado ao fim.