CAPÍTULO XVII- O ASSASSINATO DO PAPA
 
 
O dia 20 de abril de 1314 nasceu ensolarado e com o céu excepcionalmente limpo no condado de Gard, sul da França. Pudera, a primavera tinha chegado mais cedo naquele ano e os vinhedos da famosa Côte Du Rhone estavam começando a florescer. O velho castelo de Roquemaure, doado por Raimundo VI, de Toulouse, ao Papa Inocêncio III, para que este não o acusasse de abrigar e proteger os hereges albigenses, estava engalanado para receber Clemente V e sua corte. O Papa pernoitaria ali, para, na manhã seguinte, continuar a viagem que empreendera, de Avignon para sua cidade natal.
Roquemaure era um castelo que tinha boas histórias para contar. Situado ás margens do Ródano, no centro de uma região onde floresceu e viveu a heresia cátara, ainda conservava uma forte tradição ligada a esses estranhos inimigos da Igreja de Roma, que acreditavam num mundo regido por dois princípios – as trevas e a luz –, princípios esses que guiavam as almas dos homens para Deus ou para o Diabo, conforme se escolhesse ser vassalo de um ou de outro.
Os cátaros se diziam vassalos do verdadeiro Deus, pois haviam escolhido a luz em oposição ás trevas. Por isso odiavam a matéria e todos os seus esforços eram feitos no sentido de libertar-se dela, para que seus espíritos se convertessem em pura luz. Seus líderes se diziam em franca oposição com o clero católico. Para eles, os padres da Igreja de Roma, e o próprio Papa, só visavam o poder temporal e as riquezas que ele proporcionava. Por isso, eles queriam distância de Roma e das doutrinas da sua Igreja. Os católicos eram os “discípulos das trevas”, e o Papa, seu chefe, o próprio Diabo.
Heresia brava que a Igreja não podia tolerar. Até porque as idéias cátaras começavam a contaminar toda a sociedade da região, que abrangia, na época, uma das populações mais civilizadas e desenvolvidas da Europa, o Langedoc.
O castelo de Roquemaure fora uma das fortalezas sitiadas por Simão de Montfort, em julho de 1244, e ali foram mortos mais de uma dezena de cátaros, em uma de suas últimas e desesperadas tentativas de defesa. Dizia-se que os fantasmas dos hereges queimados costumavam aparecer lá, em meados de julho, guarnecendo as ameias do castelo, á espera das tropas do Papa, e ainda se houviam o retinir das espadas em choque, os gritos dos combatentes, o crepitar das fogueiras erguidas no patio para queimar os sobreviventes da pavorosa chacina que os cruzados de Simão de Montfort promoveram naquele dia.
Clemente V não acreditava em fantasmas. E nem estava preocupado com o fato de aquele castelo estar agora nas mãos de Filipe o Belo, pois ele havia sido adquirido pelo rei Luis IX ao Papa Bonifácio III, em 1229. Só queria uma boa cama para descansar seus ossos cansados pela viagem de vinte e seis quilômetros que fizera entre Avignon e Chateauneuf du-Pape, e mais os dez que separava essa nova morada papal de Roquemaure. Ah! e não desprezaria uma jarra do excelente vinho produzido naquela região.
Eram cerca de seis horas da tarde quando o séquito papal cruzou a pesada porta do castelo. Jean de Cherchemont, o condestável de Roquemaure, á frente de um destacamento de arqueiros, estava á sua espera em frente a ponte levadiça, que mandara baixar. O Papa desceu da sua liteira e estendeu a mão ao condestável, que a beijou.
– Estavamos á espera de Sua Santidade para as horas noas – disse o condestável. – Espero que tenhais feito boa viagem, embora isso seja quase impossível por essas nossas terríveis estradas litorâneas, com suas colinas, barrancos e suas terras de aluvião, de se desmancham sob a pata dos cavalos.
– Não se deve marcar hora para encontros quando se trata de viajar por essas estradas, meu filho – respondeu o Papa. – Por sorte, viajo bem de liteira, pois se tivesse que cavalgar, os meus rins já estariam moídos a esta hora.
– Imagino que deveis estar bem cansado e desejais vos recolher ao leito o mais rápido possível. Mas gostaríamos que compartilhasseis da nossa pobre ceia – disse, todo solícito, o condestável.
– Sem dúvida, meu filho. Essa viagem toda me deixou com fome. E tomarei, com prazer, umas taças do vosso bom vinho. A fama dos vinhos produzido em vosso feudo precede o seu nome.
– É verdade, sire, Santo Padre. E com o maior prazer vos serviremos o melhor dos nossos vinhos. A propósito, temos conosco messier Jean, um renomado vinhateiro que veio de Valence e nos trouxe um grande estoque de uma boa safra.
– Vejo que a minha estada aqui compensará, de longe, a fadiga desta viagem – respondeu o Papa.
O séquito papal seguiu o condestável para dentro do castelo. A ponte levadiça foi levantada e o Papa foi conduzido aos seus aposentos.
 
Na cozinha, Jean du Pré, o vinhateiro, supervionava os preparativos da ceia que seria servida ao Papa e a seus convivas. Prestava especial atenção na escolha dos vinhos que seriam levados para a mesa. Sabia que o Papa apreciava os bons vinhos tintos da Côte du Rhone, e essa era das boas razões do porque ele se dera bem em Avignon, terra onde essa fonte de prazer era perene e jucunda.
Prestava especial atenção á jarra de prata onde o vinho do Papa seria servido. Especial atenção, também, á taça de prata em que o Papa o beberia. Jean du Pré poliu os dois utensílios com um estranho sorriso de satisfação. As sobrancelhas, negras e espessas, escondiam dois olhos pequeninos e maldosos. A farta barba branca escondia a enorme cicatriz que saia do canto do olho esquerdo e terminava no canto do lábio superior. Não fosse a espessa barba que lhe cobria todo o rosto, ninguém acreditaria que aquele homem era o dono de um lagar, produtor de um dos melhores vinhos da região, e não um soldado que já havia lutado em muitas guerras.
Sim, pois que Jean du Pré, o suposto fabricante de vinhos era, nada mais, nada menos do que mestre Jehan du Pré, cavaleiro templário, que escapara da inquisição e se empregara em uma das melhores casas de Valence, produtora de vinhos. Iniciado nas ciências dos Adeptos, como se chamava então a alquimia, tinha aprendido com mestre Everardo de Evreux, diversas composições químicas que se usavam como ácidos e sais no processo de obtenção da Obra, assim chamada o grande sonho dos alquimistas, ou seja, a pedra filosofal. Um deles era o chamado “serpente de Faraó”, um sal feito á base de mercúrio, um pó fino e quase inodoro, cujo gosto só poderia ser pressentido se diluído em água. Numa taça de vinho, seria imperceptível e bastaria uma pequena dose para causar a morte do consumidor em menos de duas horas, desde que ele tomasse, pelo menos umas três taças temperadas com aquele ingrediente.
O Papa Clemente estava alegre naquela noite. Afinal, fazia tempo que não visitava a sua amada Gorth, local do seu nascimento e sede da sua primeira diocese. Estava também satisfeito com os rumos que as coisas tomavam. Havia feito as pazes com Filipe o Belo, e recuperado, em parte, os poderes que lhe cabiam, como Papa. Tinha que deixar a França de lado, é claro, pois nos territórios controlados por Filipe, o poder da Igreja, tanto quanto os dos nobres, havia sido eclipsado pela autoridade real. Ele poderia conviver com isso. Aplicaria uma política de tolerância em relação aos assuntos franceses e continuaria mantendo a sua influência nos demais reinos europeus, contando, para isso, com o próprio peso da França, então a maior e mais poderosa monarquia da Europa. Afinal, contados todos os prós e contras, não tinha do que reclamar.
Só havia uma coisa que o incomodava. Sentia um aperto no coração quando pensava na Ordem do Templo. Não estivera presente na Ilha dos Judeus, para ver, de corpo presente, os dois grandes digantários do Templo na fogueira. Mas não podia deixar de fazer uma imagem da cena. Afinal, Jacques de Molay havia sido seu amigo e Igreja. Sentia tristeza e culpa ao mesmo tempo. E uma certa vergonha por não ter sido mais corajoso para enfrentar o rei Filipe.
Aliás, ele não concordara com a decisão de mandar o Grão-Mestre do Templo para a fogueira. Escrevera a Filipe dando ciência do seu desgosto por aquele desfecho, mas sabia que estava fazendo isso só por desencargo de consciência, por que em nada adiantaria. Sua culpa, nesse caso, não seria afastada. Ele sabia que os templários eram inocentes. Talvez houvesse, entre eles, alguns Irmãos que tinham se afastado do caminho. Em todas as Ordens havia. Homens que vivem juntos num claustro nem sempre são fortes o suficiente para mitigar os seus instintos. Acabam se servindo dos próprios Irmãos para satisfazer os prazeres da carne. Isso devia ter acontecido com os templários. E também, quanto ás demais acusações, não era difícil entender que homens que se envolveram com tantas doutrinas, tradições e crenças diferentes, não tivessem, em algum momento, claudicado em sua fé. Mas dificilmente se acreditaria que isso envolvesse a Ordem como um todo, tranformando-a numa organização demoníaca, herética, devassa e corrompida, como aquele processo quis demonstrar.
Clemente V guardava, a sete chaves, o pergaminho com o relatório dos bispos que primeiro interrogaram os dignatários do Templo. Neles, a conclusão era pela inocência daqueles ho-mens e da Ordem, em geral. Por isso ordenara que o Pergaminho de Chinon, como ele o chamava, com as conclusões dos inquisidores e a sua própria sentença de absolvição fosse ocultado até que as condições políticas se modificassem. Fora atropelado pelas ações de Filipe, mandando queimar os dois, e agora já não adiantava divulgar essa sua decisão. Jacques de Molay e Geoffrey de Charney tinham sido queimados. Os outros altos dignatários do Templo definhavam nas masmorras. Logo estariam mortos, se é que já não estavam.
Soubera do anátema lançado por Jacques de Molay sobre ele, o rei e sua família e sobre os ministros do rei, que foram responsáveis pela destruição do Templo. Seu camareiro, o bispo Arnaud de Auch, que assistira as últimas horas de vida de Molay, sendo inclusive o responsável pela leitura da sentença que mandava os dois dignatários do Templo para a fogueira.  Rindo, dissera ao Papa que o velho Grão-Mestre, em meio ás chamas que começavam a torrar-lhe as barbas, lançara sobre todos aqueles que lhe causaram a perdição, uma terrível maldição. Segundo o bispo, todos estariam mortos durante aquele mesmo ano.
O Papa desdenhara daquele vaticínio, pois estava com apenas cinqüenta anos e nenhum sinal em sua saúde que indicasse uma possível morte prematura. No entanto, ele sabia com quem estava lidando e conhecia o ambiente em que vivia. Papas e reis, nem sempre morriam de morte natural. Por isso tinham camareiros e escudeiros que andavam na sua sombra dia e noite, protegendo suas costas, provando a comida que comiam e vestindo primeiro as roupas que eles usariam, pois não foram poucos os reis e os prelados da Igreja que morreram envenenados pela comida que comiam ou pela roupa que usavam.
Todavia, ali, naquele castelo onde se dizia que as almas dos hereges cátaros que ali foram queimados costumavam aparecer de vez em quando, Clemente pensava não correr perigo algum. Não obstante, tomara todas as precauções, mandando revistar o quarto que lhe havia sido reservado, e verificar toda a roupa de  cama, bem como as roupas que vestiria pela manhã. Quanto á comida e o vinho, seu escudeiro a provara antes e continuava ali, em pé, as suas costas, aparentemente bem. O vinho era bom, podia beber á vontade. E ele bebeu a jarra toda.
“ Neste castelo de fantasmas” pensou, “talvez eu esteja mais seguro do que em meu próprio palácio em Avignon.” 
As primeiras dores começaram mal ele havia se deitado. Era como se alguém tivesse dando um nó em suas tripas. Depois veio a sensação, dilacerante, de que todo o seu ventre estava pegando fogo. Uma dor atroz, que o obrigou a sentar-se na cama, apertando com braços o ventre em brasa, lutando contra a ânsia de vômito que começava a subir-lhe pela garganta.
– Arnaud! – gritou. Mas a voz perdeu-se na garganta, misturada à golfada de sangue pisado, enegrecido, que saiu-lhe pela boca como lava expulsa pela cratera de um vulcão.
– Arnaud! – Tentou chamar de novo, mas o que saia de sua boca era mais sangue, cada vez mais negro e malcheiroso, em meio a restos de comida ainda não digeridos. Levantou-se, cambaleando, arrastando aos lençóis manchados pela pasta nauseabunda que golfava de sua boca a cada contração que seu ventre dava. Saiu tateando, escostando-se pelas paredes, procurando, na penumbra do quarto, iluminado por uma única vela, a porta. Não conseguiu chegar até ela. Escorregou no próprio vômito e caiu. Ficou no chão, os braços agarrados ao ventre, contorcendo-se, até que se pos em uma posição fetal, os olhos sem brilho. Um último jorro de sangue chegou até a garganta, mas não teve forças para ser expulso em jato. Ficou parado na cavidade bucal, escorrendo aos poucos pelos lábios roxos, manchando a barba do Papa já sem vida.  
Era o dia 20 de abril de 1314. Há pouco menos de mês, no dia 18 de março, Jacques de Molay, o último Grão-Mestre da Ordem do Templo e o preceptor da Normandia Geoffroy de Charney haviam sido queimados em Paris, na Ilha dos Judeus. As intimações para que seus algozes comparecessem perante o tribunal divino começavam a ser cumpridas. 
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Do romance "Filhos da Víuva", A Conspiração dos Templários- romance- título provisório, no prelo.