AGONIA
“Viver é muito perigoso.”
(Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas)
A agonia mata mais que doença de coração. Agonia de ver pretume da noite que não acaba, de ouvir filho chorando, de andar descalço em rua de pedra, de subir ladeira que não acaba nunca. De entrar no mato e ouvir berro da pintada, de escutar rastejo de jacaré, de ouvir chocalho de cascavel, de ouvir o vento uivando de madrugada. Agonia de ver relâmpago rasgando o céu e o estrondo do raio caindo perto.
Essas agonias matam muita gente. Tem outra agonia: a de ficar no meio de multidão. Essa é a pior: sentir-se sozinho no meio de muita gente. Por isso é que eu gosto do sertão. Lá dentro, quando se escuta o estrondo da chuva próxima, os meninos se separam dos homens. Só fica quem sabe se mexer no meio de tanto furdúncio. As águas caem com força e a água dos alagados sobe muito, inundando mata e alma.
Mas o caboclo esperto vira o cano da papo-amarelo para baixo, ajeita a cinta para a faca não cair, vira o embornal para trás e trata de fugir de descampado, lugar de cair raio. Grota de pedra é um bom refúgio, mas no sertão elas são raras. A agonia dá dor no peito, sufoca a gente. Pior que ela, só o nó na garganta de pai enterrando filho, desalento da ordem natural das coisas. O natural é os filhos enterrarem os pais, missão cumprida, amém. Mas pai enterrar filho é fazer a terra girar ao contrário, é trocar o claro do dia pelo negrume da noite, é fazer rio subir em vez de descer...
Agonia é ver gado morrendo de sede e nem uma gota de chuva despendurar do céu para melhorar o estrago... É soluço de velho sentindo falta de casa. Agonia é olhar para o papel em branco e não saber o que escrever. Agonia é sentir presente o passado, é a falta do amigo distante, é o descompasso que a morte causa no meio dos que ficam.
Agonia é desapertar parafuso enferrujado, é cortar com faca cega, é rasgar o mato sem rumo e sem sentido, é correr na macega e se sentir cada vez mais longe de casa. Agonia é ter sede e não ter o que beber, é deitar e não ter sono, é rezar para santo que não se sabe se anda muito ocupado. É pedir socorro a ninguém, no meio do nada, e achar que tudo vai acabar bem.
Agonia é gostar de longe, é esperar data muito distante no calendário, é rotina de preso contando os dias para sair da cadeia. Agonia é, mais do que tudo, ficar acoitado numa tocaia, dia e noite, noite e dia, esperando o encomendado que nunca chega... É esperar o melhor momento para apertar o gatilho e ouvir o estrondo do tiro, o corpo caindo do lado da montaria e a carreira desembalada, mato a fora, para muito longe do malfeito, e esperar para diminuir o frio do estômago e a tremedeira das pernas.
a.c.sampaio
em 12/11/2013