Vitae Imitatio
Reunir-se para contar e ouvir histórias é algo que o homem faz desde os primórdios da humanidade. Da antiguidade aos dias atuais, o homem sempre teve a necessidade de se expressar e, então, encontrou, ao longo do tempo, diversas formas para conseguir fazer isso de modo cada vez mais eficiente. Uma dessas formas foi o teatro.
No início, o teatro caracterizava-se como manifestações de ruas realizadas em homenagem aos deuses. Com o passar do tempo, essas manifestações foram ficando cada vez mais elaboradas e surgiram os organizadores das manifestações, o teatro foi se sofisticando e surgiram os dramaturgos, que escreviam as peças e escolhiam os atores para representar uma história. O teatro deixa de ser uma coisa de rua e passa a ser uma coisa de palco. Temos então pessoas em um palco representando uma história para uma platéia. Mas qual é a importância do teatro? Qual a função de se contar histórias?
O ato de contar histórias leva os homens a refletirem e terem novas perspectivas de mundo. Além de ser um entretenimento, a forma como a história é contada nos leva a refletir sobre problemas sociais e políticos e acerca da própria condição humana. Mas apesar de tudo isso, o teatro não deixa de proporcionar prazer e sensações. Um prazer que educa, conscientiza, ou seja, nos leva a pensar sobre a realidade, e diverte.
Porém temos uma questão aí. O teatro é uma obra de arte. E para pensarmos sobre o teatro como obra de arte devemos primeiramente indagar a respeito do que é uma obra de arte.
A palavra “arte” vem do grego téchne, que pode ser traduzido como técnica, ou habilidade. No início a arte como nos referimos hoje não implicava em obras de artes, mas sim em técnicas e habilidades. Entretanto, o que isso tem haver com teatro, cinema, etc?
Em sua Poética, Aristóteles caracteriza a arte como imitação:
"A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo, todas vem a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira diferente e não a mesma. [...] todas elas efetuam a imitação pelo ritmo, pela palavra e pela melodia, quer separados, quer combinados. [...] diferem por usarem umas de todos a um tempo, outras ora de uns, ora de outros. A essas artes me refiro quando falo em meios de imitação. [...] como aqueles que imitam pessoas em ação, estas são necessariamente ou boas ou más (pois os caracteres quase sempre se reduzem apenas a esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção do caráter), isto é, ou melhores do que somos, ou piores." (apud BRANDÃO, 1995, p.19-20)
Aristóteles via a obra de arte como imitação da realidade. E este é justamente o problema da arte, ela é uma imitação, uma representação da realidade. Por uma história encenada imitar a realidade alguns elementos são tomados como verdadeiros pelo espectador. Além de divertir, a contação de histórias influencia nosso comportamento e visão de mundo. Por mais de 2.500 anos contar histórias como entretenimento coletivo ficou restrito ao teatro. Desta maneira, conforme a sociedade crescia, poucas pessoas tinham acesso ao espetáculo de palco. Foi só há pouco mais de cem anos que a forma de se contar histórias pôde – teoricamente – ser uma coisa acessível a todos. E isto ocorreu com o advento do cinema.
O cinema começou com filmes curtos, sem narrativas definidas, quase como experiências. O primeiro filme projetado na história se chama A chegada do Trem à estação, feito pelos irmãos Lumière. Neste início, o cinema ainda não tinha uma fórmula para contar histórias. A câmera capturava o ponto de vista de um observador de teatro, fixa, enquanto que a ação se desenvolvia em frente à câmera, como se fosse um palco. Mas o cinema não poderia progredir com a linguagem do teatro. Com o aperfeiçoamento do aparato técnico a ação deixa de ser um privilégio do personagem, é agora dividida com as câmeras em um cenário natural, não mais um cenário artificial. Com o advento do cinema via-se a possibilidade de expandir a arte através da facilidade de sua reprodução e torná-la cada vez mais verossimilhante à realidade.
O cinema consegue por meio de uma “miscelânea” artística – fotografia, teatro, literatura, música – desenvolver uma forma própria de contar histórias. E principalmente a forma de prender o espectador.
Em 1949, o estudioso Joseph Campbell publicou uma obra intitulada O Herói de Mil Faces. Neste livro, Campbell nos diz que todos os mitos do mundo são iguais, só mudam de nome e de cultura:
"Quer escutemos, com desinteressado deleite, a arenga (semelhante a um sonho) de algum feiticeiro de olhos avermelhados do Congo, ou leiamos, com enlevo cultivado, sutis traduções dos sonetos do místico Lao-tse; quer decifremos o difícil sentido de um argumento de Santo Tomás de Aquino, quer ainda percebamos, num relance, o brilhante sentido de um bizarro conto de fadas esquimó, é sempre com a mesma história — que muda de forma e não obstante é prodigiosamente constante — que nos deparamos, aliada a uma desafiadora e persistente sugestão de que resta muito mais por ser experimentado do que será possível saber ou contar. Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. [...] As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. [...] Por que é a mitologia, em todos os lugares, a mesma, sob a variedade dos costumes? E o que ensina essa visão?" (1997, p. 5-6)
Os filmes que são recordes de bilheterias, assim como os filmes menores que conhecemos, seguem um padrão de narração – demonstrado por Campbell – que pode ser encontrado nas superproduções cinematográficas e até mesmo em novelas, e o mais interessante é que, na maioria das vezes, essa forma de se contar histórias não é feita de maneira proposital, embora se encaixe nessa estrutura. Não que toda história seja cem por cento contida dos elementos do Mito do Herói (teoria de Campbell), mas sempre encontraremos quase todos estes elementos em um roteiro. Logo a indústria cinematográfica percebeu que a teoria de Campbell podia ser usada como estrutura para se contar histórias, transformando-a em uma técnica. Temos como exemplo o roteirista Christopher Vogler que em 1988 publicou o livro A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica Para Roteiristas, fruto de um memorando para os estúdios Disney, usando a teoria de Campbell.
A partir da teoria de Campbell criam-se mecanismos para prender o espectador. Expressa-se nitidamente um caráter manipulatório no cinema. Se ele é manipulatório, as técnicas que ele desenvolve para prender o espectador podem distorcer a realidade. Mas qual o problema disso, se a literatura, o teatro e a pintura também distorcem a realidade?
O problema é que por ser a arte mais vista é também a que mais influencia. As pessoas começam a se vestir e muitas vezes incorporar falas dos personagens ao seu linguajar. Um problema maior ainda surge quando se cria a televisão. Com a televisão, o acesso às histórias se torna maior, muitas pessoas assistem a mesma coisa, muitas vezes são influenciadas pelas mesmas coisas e acabam falando sempre sobre as mesmas coisas. Seguindo a estrutura de narrativas, o cinema criou uma linguagem própria, e essa técnica foi trazida para a TV. Normalmente o telespectador não percebe que esse tipo de narrativa é imposta, sem deixar tempo para a reflexão. Principalmente as novelas, em que há muitos elementos da realidade, fazendo com que nos identifiquemos mais com os personagens, assim, nem pensamos se o que está sendo transmitido condiz com a realidade. Podemos, de repente, esbarrar com uma obra que influencia nossas opiniões sem percebermos. O cinema e a TV costumam estabelecer uma verdade que não retrata a realidade.
Toda história contada por um filme tem uma intenção. Há os filmes que são feitos para serem vendidos e levantarem dinheiro, mas há também produções pensadas como obra de arte, e nesse caso o diretor e o roteirista tentam passar uma mensagem e não simplesmente vender essa arte.
Cada vez mais o cinema e a TV colocam uma série de modelos de comportamentos e opiniões em geral que acabam por influenciar a sociedade. Tais questões marcam nosso comportamento nos levando a reproduzir sempre as mesmas coisas, nos fazendo perder a nossa autenticidade. Imitamos o que assistimos. Houve uma inversão, antes o que assistíamos era uma imitação do que nós éramos e fazíamos, hoje a vida em sociedade é uma imitação do que assistimos.
=====================================================
PARA SABER MAIS:
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica, São Paulo, Cultrix, 1995.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces, São Paulo, Cultrix/Pensamento, 1997.