Você é você mesmo?
A racionalidade é uma característica inerente ao ser humano que o destaca no meio animal tornando-lhe um ser exclusivo. Apesar dessa imensa vantagem sobre os demais, o homem difere no que diz respeito à questão da sua própria independência, que posta em análise pode ser considerada relativa.
Diferenciando-se dos seres irracionais, desde que é gerado o homem fica sob a dependência de outros para que possa se desenvolver. A gestação precisa ser acompanhada, a mãe necessita de cuidados e de uma alimentação controlada para que o bebê tenha um desenvolvimento saudável. Ao nascer, depende dos cuidados de alguém que o alimente e higienize. Até mesmo atitudes mais simples como falar e andar precisam ser ensinadas. Conviver com outros humanos é condição para se humanizar, pois através dessa convivência somos possibilitados a desenvolver habilidades e executar tarefas que dificilmente aprenderíamos sozinhos.
Toda criança tem sua própria lógica e maneira de enxergar o mundo. Seu jeito inocente de falar, pronunciando palavras incorretamente e conjugando da mesma forma em todas as pessoas verbais, para os adultos pode ser considerado errado, mas para elas é absolutamente coerente. Crianças falam com todo mundo até o momento que são instruídas a “Não falar com qualquer pessoa”. Mesmo que a intenção dos pais fazendo isso seja protegê-los, acabam implantando em seus inconscientes a ideia de que devem selecionar as pessoas com quem se relacionar e isso no futuro pode acarretar problemas sérios de preconceito e exclusão social. Valores relacionados à sexualidade também são incutidos desde cedo. Meninos andam de roupa íntima ou mesmo nus até certa idade, mas desde pequenas as meninas são ensinadas a estarem sempre vestidas e esse valor é mantido na fase adulta, onde é normal um homem sem camisa, já uma mulher fazendo o mesmo é visto como algo indecoroso. Atualmente é menos frequente, mas ainda existem pais que instruem seus filhos a brincarem apenas com crianças do mesmo sexo, sendo que para elas não há nenhuma diferenciação, inclusive física, já que a maioria provavelmente até desconhece. Também na maneira de se divertir dos pequeninos existe uma interferência adulta, onde os próprios brinquedos são explicitamente impostos. Carrinho, bola, estilingue são direcionados à meninos, enquanto bonecas e instrumentos de cozinha são dirigidos à meninas. Mas quem determinou isso? O que impede um menino de se distrair com um brinquedo “feminino” se assim quiser ou vice-versa? Dessa forma, desde crianças acabamos sendo privados de nossas próprias vontades pelas imposições sociais.
Na infância somos sempre determinados a satisfazermos nossos próprios anseios. Quase toda criança já se desfez de uma roupa ou sapato no meio de uma festa porque estava sentindo-se desconfortável, foi repreendido por falar com sinceridade algo que não deveria ou gritou com os pais para sair de um lugar que não estava lhe agradando. É bem certo que alguns pudores incompreendidos por uma criança são extremamente necessários para se viver bem em sociedade, mas diante de tanta manipulação, as pessoas acabam perdendo sua própria essência tornando-se frutos do meio em que vivem.
Essa influência não se dá apenas nas atitudes práticas, mas ocorre com muita força na formação do caráter do indivíduo, na maneira como ele age em sociedade e na construção de valores, contribuindo consideravelmente na criação de uma identidade que intencionamos ser própria, mas que na verdade acaba não sendo, já que carrega tantos traços externos.
A mídia e a elite é quem têm mostrado atualmente como devemos ser, ditando padrões de moda, beleza, comportamento, vocabulário e até relacionamentos. A internet abriu espaço para novas formas de nos relacionarmos com as pessoas através das redes sociais e isso também veio de forma imposta, onde muitos se veem obrigados a acompanhar esse modismo tecnológico simplesmente para não serem classificados como antiquados e atrasados.
Valores distorcidos como discriminação e preconceito não nascem de um só indivíduo, geralmente são formados no seio de um grupo qualquer, familiar, escolar ou organizacional, também são práticas ensinadas. Ser diferente em um meio social, na maioria das vezes é visto como algo negativo. Frequentemente, as pessoas que fogem um pouco dos padrões sociais, sejam de comportamento ou mesmo na maneira de se vestir, sofrem insultos e preconceito por parte dos demais. Situações como essas podem ocorrer nos mais diversos espaços sociais e podem variar de leves provocações à severas agressões morais ou físicas resultando por vezes em morte.
Em nossa sociedade, podemos observar com frequência a formação de grupos onde os indivíduos possuem características semelhantes. São pessoas que andam sempre juntas, vestem-se, pensam e falam de forma parecida. Já na escola, inicia-se a formação de grupos internos, as chamadas “panelinhas”, onde as pessoas são literalmente separadas de acordo com uma ou mais particularidades. Nerds, patricinhas, e emos, são apenas algumas das tantas denominações existentes. O fato de não fazer parte de nenhuma dessas “tribos” ou de pertencer a uma que seja considerada inferior as demais tornam o indivíduo uma potencial vítima de preconceito. Muitos iniciam essa prática não por satisfazer-se em ofender o outro, mas por medo de se tornar uma vítima também. Essas pessoas vivem se omitindo, agindo sempre de forma a agradar os outros. A fase da adolescência carrega profundos traumas para a vida de muitas pessoas. Tentativas incessantes de se tornar alguém que seja aprovado pela maioria, levam muitos a se envolverem com drogas, álcool, promiscuidade, afastando-se da família, amigos e dos sonhos que tivera um dia. Muitos jovens são impiedosamente excluídos de um ambiente social por não corresponderem às expectativas da turma.
Ao ingressar no mercado de trabalho a influência do meio é ainda mais fortalecida. A competitividade e o desejo de ascensão profissional favorecem o surgimento de relações por interesse, as pessoas estão cada vez mais determinadas a fazer qualquer coisa para conquistar seus objetivos, mesmo que isso implique em prejudicar a vida de alguém. Provocações repetitivas também ocorrem nesses ambientes, humilhações a um determinado indivíduo ou grupo, deteriorando as suas condições de trabalho, afetando a moral e a dignidade, colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional. Muitos ambientes de trabalho atualmente tornaram-se lugares no qual predominam o cinismo, a falsidade, o sarcasmo, a negação dos afetos e a indiferença em relação ao outro.
E é nesse contexto que nossa sociedade tem se desenvolvido, de maneira que não enxergamos mais aquilo que nos era tão visível em nossa infância, quando nos aproximávamos das pessoas apenas por curiosidade, vontade de brincar ou mesmo por acaso; ou quando preferíamos a roupa que nos proporcionasse conforto do que aquela que provocaria admiração e arrancaria elogios dos que estavam em volta; ou ainda quando não hesitávamos em defender nossa opinião, sem receio do que ela pudesse acarretar, sem noções de consequência. Os valores vão sendo deturpados, as coisas simples da vida vão perdendo sua importância.
Saramago foi muito sensível em sua colocação na obra Ensaio sobre a Cegueira ao dizer que “Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos voltados para dentro”. Não conseguimos enxergar além das aparências, das imposições sociais mesquinhas e dos valores torpes criados por nós mesmos.
[Somos bichos disfarçados de civilização. Certo crítico desconhecido, em análise a dita obra de Saramago confirmou esta afirmação] Diariamente poluímos, destruímos, exploramos, chantageamos, ameaçamos e desprezamos uns aos outros. Somos egoístas, mentirosos, traidores, machistas, agressores, sexistas, gananciosos, aproveitadores, orgulhosos e o pior de tudo é que somos incapazes de perceber isto, mesmo estando diante dos nossos olhos. [...] Nosso modelo de desenvolvimento fracassou e não conseguimos percebê-lo. Nossas relações sociais também fracassaram, mas igualmente não conseguimos percebê-las. Por todos os lados vemos e ouvimos sinais de que as coisas não estão bem, mas somos incapazes de vê-las e ouvi-las. No fundo, somos incapazes de sentir. Estamos anestesiados. Por mais avançada que seja nossa consciência, ainda somos inconscientes de muitas coisas.
Parece contraditório, mas à medida que vivemos para satisfazer a sociedade, estamos em busca da nossa própria satisfação, ou seja, nossa realização se detém minimamente em agradar os outros, mas não no sentido positivo, de ajudá-los, contribuindo e acrescentando algo em suas vidas ou por questões de gentileza, mas agradá-los tornando-nos um deles, agindo como eles julgam conveniente, cidadãos adestrados e omissos, que deixam para trás quem realmente são para assumir uma postura cômoda e inerte. Na verdade o que chamamos de agradar é apenas uma tentativa de aceitação. Julgamo-nos tão independentes, mas acabamos por depender do outro a ponto de necessitarmos de sua aprovação. Negamos-nos a enxergar com nossos próprios olhos e preferimos ver com os olhar do outro, julgando antes de analisar, condenando antes de entender e como em o Mito da Caverna de Platão, o conhecimento que temos do mundo e das pessoas acaba se tornando apenas uma sombra do que realmente é, ao passo que nós mesmos acabamos mostrando ao mundo apenas uma sombra do que de fato somos.
Referências Bibliográficas
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995
BOCK, A. M. B.; TEIXEIRA, M. L.T; FURTADO, O. Psicologia Fácil. São Paulo: Saraiva, 2011