TRABALHO, O ATUAL ESPELHO DA SUBJETIVIDADE HUMANA: Considerações acerca da ênfase dada ao trabalho no contexto social e seus reflexos no campo individual.

UFC UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CURSO DE PSICOLOGIA

TEORIAS E PRÁTICAS EM PSICOLOGIA SOCIAL I

Professor Dr. Aluísio Ferreira de Lima

TRABALHO, O ATUAL ESPELHO DA SUBJETIVIDADE HUMANA: Considerações acerca da ênfase dada ao trabalho no contexto social e seus reflexos no campo individual.

Ensaio Acadêmico para a disciplina de Teorias e Práticas em Psicologia Social I. Sobre a relevância do trabalho na sociedade atual e sua relação com as “questões de sentido” para o indivíduo, fazendo uma breve analogia com a obra ‘A Metamorfose’ de Franz Kafka.

Sobral, Fevereiro de 2013

“Todos vós, que amais o trabalho desenfreado (...), o vosso labor é maldição e desejo de esquecerdes quem sois.”

Friedrich Nietzsche

Desde os seus primórdios, independente da civilização ou cultura em que está inserido, o homem exerce algum tipo de atividade para garantir o seu sustento. Hoje, sabe-se que o trabalho não se limita apenas a esta função e alçou proporções significativas na sociedade atual, fundamentando-a não apenas no seu aspecto coletivo, mas destacando-se também de forma íntima e pessoal para cada sujeito que nela vive.

Apesar das mudanças que ocorreram nesse sentido, se tentarmos fazer um resgate das culturas passadas, nem precisaremos ir tão longe para constatarmos que isso sempre existiu, ainda que de forma diferente. Em uma análise sobre ‘Os sentidos do trabalho na construção civil’, a pesquisadora Izabel Cristina Ferreira Borsoi apresenta uma curiosidade acerca disso: “Não só os filhos trabalhavam com os pais, mas deviam aprender o ofício do pai e o aprendiam trabalhando, mesmo que o trabalho pudesse exigir esforço físico para além do corpo infantil” (CODO E JACQUES (orgs.), 2010, p. 311). Se procurarmos, encontraremos sem dificuldades alguém em nossa própria família que executa a mesma profissão do pai ou do avô. Essa tradição vem se perdendo, mas antigamente era muito comum. Nesse mesmo debate, Borsoi expõe o relato de um entrevistado:

A minha família tudinho é ferreiro e pedreiro. Tem que pegar o ritmo da família. Se a família nasceu para ser doutor, o pai tem que ensinar aos filhos o que ele faz (Raimundo). (CODO E JACQUES (orgs.), 2010, p. 311).

O médico, a professora, o auxiliar administrativo, o motorista, a costureira, o vendedor, a estudante de psicologia... Cada indivíduo recebe uma alcunha social de acordo com a atividade desempenhada e passa a ser conhecido e reconhecido por ela. Alguns recebem um maior prestígio, outros, no entanto, passam quase despercebidos, mas o fundamental é que se tenha um trabalho.

“E não só, o trabalho é sinônimo de sobrevivência, quase orgânico, naturalizado e, por isso, deve ser enfrentado e jamais temido, seja qual for a tarefa proposta/imposta. O homem está condenado ao trabalho, como no sentido bíblico “comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gênesis).” (CODO E JACQUES (Orgs.), 2010, p. 311)

Convivemos durante toda a vida com “títulos” ocupacionais. Desde crianças, somos perguntados constantemente sobre o que fazem nossos pais ou o que vamos ser quando crescer; e quando adultos, não só o próprio ofício é de interesse alheio, como também o do cônjuge e dos filhos. Seja em um currículo, em um perfil social na internet ou mesmo em uma apresentação informal, sempre nos deparamos com a necessidade de dizer o que fazemos enquanto profissionais.

A ideia da importância do trabalho nos é apresentada logo cedo. As escolas, que têm um papel fundamental no desenvolvimento da criança enquanto pessoa e na sua socialização, em sua maioria, estão hoje quase que exclusivamente voltadas para o vestibular, incutindo em seus alunos a questão da competitividade e concorrência. Àqueles que não se inserem na categoria de trabalhador, compete-lhes enfrentar todas as mazelas que vão para muito além das dificuldades financeiras.

A situação na qual é lançado o indivíduo ao ser demitido, envolve aspectos muito mais graves do que a perda de uma fonte de renda. Ele passa a viver em um universo de incertezas quanto ao seu futuro profissional, torna-se alvo de discriminações, podendo ser mesmo excluído do convívio social (CASTEL APUD BORGES E LIMA, GOULART (org.), 2002, p. 341).

Em ‘A metamorfose’, Franz Kafka aborda de forma personificada, dentre outras questões, a representação social do trabalhador, o que não torna a obra menos agressiva, do contrário, contribui para uma série de reflexões acerca dessa questão. Kafka narra à história da personagem principal Gregório Samsa, que em uma manhã, ao despertar, se vê transformado em uma barata e a partir de então, acaba se tornando de fato um “parasita” na vida de sua família, perdendo rapidamente sua identidade e dignidade. O curioso é que mesmo percebendo as mudanças no seu corpo, na sua voz, o desespero de Gregório está relacionado muito mais ao fato de chegar atrasado ao serviço e nas implicações que isso lhe causaria, como ser repreendido pelo patrão ou até mesmo demitido. A sua condição física parecia ser efêmera diante desta preocupação.

Vemos em uma das falas do livro, o patrão de Gregório afirmar: “(...) nós, homens de negócios, feliz ou infelizmente, temos muitas vezes de ignorar, pura e simplesmente, qualquer ligeira indisposição, visto que é preciso olhar pelo negócio”. (KAFKA, 1997.) Não é raro em nosso meio a existência de pessoas que se dedicam tanto ao trabalho que acabam deixando o próprio bem estar em último plano.

Nesse mesmo sentido, podemos pensar tanto naqueles impossibilitados ao trabalho ou por questões de doença ou deficiência física, como também os desempregados, que não conseguem de forma alguma arranjar emprego e por isso tornam-se dependentes de outras pessoas. São inúmeras as dificuldades enfrentadas por esses indivíduos e não envolvem apenas as limitações físicas, se estendendo também ao campo emocional e psíquico.

Isso significa que é preciso colocar no centro da reflexão sobre o adoecer a ideia de humanidade e, como temática, o indivíduo e a maneira pela qual ele se relaciona consigo mesmo e com o mundo social a que pertence (grupos, família, comunidade, sociedade mais ampla), compreendendo: como ser de razão que trabalha, como ser ético que compartilha e se comunica, como ser afetivo que experimenta e gera prazer e como ser biológico que se abriga, se alimenta e se reproduz, com um corpo que, além de determinado pelo universalismo biológico, é antes uma realidade simbólica. (LANE E SAWAYA (orgs.) 2006, p.157).

Samsa passa então a depender dos outros em todos os sentidos. A família, que antes era sustentada por ele, residindo em casa própria comprada por ele, usufruindo de todo conforto também proporcionado por ele, passa a ter que ampará-lo. A culpa por todas as dificuldades enfrentadas a partir de então passam a recair sobre o “incapacitado” Gregório, que nem mais é visto como um membro da família, mas como um estorvo, por esse motivo não sendo digno sequer de conviver no mesmo ambiente que eles, sendo isolado no próprio quarto, que aos poucos também vai perdendo a ‘cara’ do dono, tendo seus móveis e pertences retirados e outras coisas modificadas sem que Samsa pudesse opinar. À medida que os fatos se desenrolam, podemos perceber a identidade pessoal da personagem principal se esvaindo e os aspectos animalescos sendo incorporados. Samsa já não era um inseto apenas na aparência, mas em todos os sentidos e aos poucos se acostuma àquela condição.

Não é difícil imaginar que essa situação promove não apenas a ruptura do vínculo do sujeito com o seu trabalho, mas também com a s principais referências que estruturavam seu cotidiano, ou seja, com tudo aquilo que permitia sentir-se parte integrante de seu meio. Assim, os vínculos familiares e sociais ficam também fortemente abalados. (GOULART (org.), 2002, p.337).

Em seus estudos sobre motivação, Abraham Maslow, como ressaltam Glassman e Hadad (2008), afirma que o trabalho está intimamente relacionado com as questões de sentido para o homem, não sendo apenas uma fonte de renda, mas de reconhecimento, promovendo condições para que este possivelmente atinja uma autorrealização. É tão forte o sentimento de que o trabalho dignifica o homem, que estar afastado dessa condição pode gerar inúmeros conflitos e até mesmo patologias, como foi visto em um estudo sobre os ‘Impactos psicossociais do desemprego de longa duração’, por Maria Elizabeth Antunes Lima e Adriana Ferreira Borges:

A desestruturação dos laços sociais e afetivos é bastante comum e se agrava à medida que avança o tempo de desemprego, podendo provocar, além da privação material, a restrição de direitos, de segurança socioeconômica e a redução da autoestima. O isolamento social que ocorre com frequência aumenta o sofrimento e o sentimento de solidão, contribuindo para a evolução dos distúrbios. (GOULART (Org.), 2002, p. 341)

Nesse mesmo estudo, as pesquisadoras frisaram o relato de um desempregado, que em poucas palavras, descreve de forma impactante a importância do trabalho para ele:

O trabalho tem sentido de vida pra mim. O homem, sem o trabalho, não é homem. Ele é um verme, não serve pra nada (...). O homem não se faz com dinheiro. O homem se faz com o trabalho, com as próprias mãos. (operador de produção, 28 anos, desempregado há um ano e oito meses) (GOULART (Org.), 2002, p. 337).

Em pouco tempo todos na família de Samsa se viram obrigados a trabalhar e se desfazerem de alguns bens a fim de não perderem o pouco que lhes restava. O pai, que há mais de cinco anos não se ocupava em nada, a mãe, que mesmo acometida por uma asma se disponibilizou a costurar e a irmã, que com apenas dezessete anos se viu compelida a ajudá-los, deixando de lado o seu grande sonho de ser violinista e tornando-se caixeira. Todos esses fatores contribuíam para o declínio moral de Gregório.

Na impossibilidade de transportá-lo, os familiares de Samsa tiveram que permanecer naquela casa, onde as despesas eram altas e por esse motivo passaram a alugar alguns quartos, como numa pensão. Gregório não tinha contato algum com os hóspedes, afinal, era o opróbrio da família, mas certo dia, atraído pelo som do violino de sua irmã, aproximou-se da sala onde aqueles jantavam enquanto apreciavam a música da garota e como era de se esperar, suscitou imenso espanto, provocando um grande tumulto até que eles foram embora, extremamente ofendidos e sem pagar pela estadia. Após esse episódio, a família decidiu a partir de uma sugestão da irmã, livrar-se daquele fardo: “Quando se tem de trabalhar tanto como todos nós, não se pode suportar, ainda por cima, este tormento constante em casa. Pelo menos, eu já não aguento mais.” (KAFKA, 1997.)

Não é difícil imaginar os complexos enfrentados por pessoas que se veem nessa situação, dependentes e incômodas. Partindo desse pressuposto, são até compreensíveis as atitudes desesperadoras cometidas por muitos que se encontram desempregados, como por exemplo, o suicídio.

Quando Gregório é encontrado morto em seu quarto pela empregada, (não se sabe o motivo) apesar de toda a consternação, fica explícito também em seus familiares outro sentimento que soa mais expressivo que aquele. Seria algo semelhante a um alívio, que é confirmado nas cenas que seguem, quando eles tiram o restante do dia para descansar e o final da tarde para dar um passeio:

Falaram das perspectivas futuras, que, bem vistas as coisas, não eram más de todo. Discutiram os empregos que tinham, o que nunca tinham feito até então, e chegaram à conclusão de que todos eles eram estupendos e pareciam promissores. (KAFKA, 1997, p.57).

E mais uma vez vemos a questão do trabalho aqui presente. ‘A Metamorfose’ nada mais é do que uma forma figurativa que Kafka encontrou de retratar de forma crítica a relevância dada ao trabalho. Não é possível afirmar convictamente até que ponto essa ênfase é positiva. Sabemos de sua importância e que dele dependemos, até mesmo por questões de sobrevivência e equilíbrio social. Foi sempre assim desde as primeiras civilizações e continuará sendo.

(...) O trabalho é sem dúvida um dos gêneros principais da vida social em seu conjunto, um gênero de situação do qual uma sociedade dificilmente pode abstrair-se sem comprometer sua perenidade; e da qual um sujeito dificilmente pode afastar-se sem perder o sentimento de utilidade social a ele vinculado, sentimento vital de contribuir para essa perenidade, em nível pessoal. (CLOT, 2007, p.69)

No entanto, sabe-se também da importância do homem enquanto sujeito que pensa, sente e se relaciona. Será que juntamente com um emprego, é perdida assim tão facilmente também a humanidade deste homem?

REFERÊNCIAS

CLOT, Yves, A Função Psicológica do Trabalho, Petrópolis: Vozes, 2006.

CODO, W., JACQUES, M. G (Orgs.), Saúde Mental e Trabalho, Leituras, Petrópolis: Vozes, 2010.

GLASSMAN, W. E., HADAD. M.; Psicologia: abordagens atuais, trad. Magda França Lopes – 4.ed., Porto Alegre: Artmed, 2008.

GOULART, Iris Barbosa (Org.), Psicologia Organizacional e do Trabalho: teoria, pesquisa e temas correlatos, São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

KAFKA, Franz, A Metamorfose, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LANE, S. T. M., SAWAYA, B. B (Orgs.), Novas Veredas da Psicologia Social, São Paulo: Brasiliense, 2006.

Priscilla Carvalho
Enviado por Priscilla Carvalho em 03/11/2013
Código do texto: T4554737
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