Capítulo XIII- A sentença final
Quando Filipe deu a sua sentença final, ordenando que Jacques de Molay, o Grão-Mestre do Templo e Geoffroy de Charney fossem queimados, nenhum dos seus conselheiros disse uma palavra em contrário. Nem Carlos de Valois, que durante todo o processo contra os templários havia se manifestado contra a dissolução da Ordem, por entender que essa ação era um atentado contra a própria cavalaria e poderia prejudicar uma instituição que se tornara uma tradição em toda a Europa e já frequentara o ideário popular, disse uma palavra.
Ele sempre fora contra esse processo. Pois onde o povo buscava os seus heróis, os seus defensores, os seus paladinos? Não era na cavalaria? E a Igreja? Não havia ela coroado de láureas os defensores do Santo Sepulcro, e concedido áqueles cavaleiros o status de verdadeiros santos?
Carlos de Valois era um cavaleiro, antes de tudo. Por ser cavaleiro, respeitava os templários como uma milícia de gente valente e nobre. Não foram poucas as vezes que lutara ao lado de um cavaleiro templário e conhecia o ardor com que eles combatiam.
Mas quando as necessidades políticas falam mais alto, é conveniente que as vozes em contrário se calem, pois senão elas serão silenciadas de qualquer jeito. Carlos de Valois sabia que Filipe precisava suprimir a Ordem do Templo e que era a necessidade política que o empurrava para essa ação. Com isso, ele atingia dois objetivos ao mesmo tempo. Dava um golpe fatal no poder do Papa e colocava uma pedra fundamental no seu projeto de estado nacional, eliminando o poder do seu principal concorrente, que era o próprio Templo.
É claro que havia muitas motivações pessoais nas intenções de Filipe. A primeira era o ódio. Ele tanto odiava quanto temia os templários. Odiava principalmente a arrogância daqueles cavaleiros que não obedeciam a ninguém, e se encastelavam dentro do seu poder, como se fossem, eles mesmos, um estado dentro do estado.
Ele próprio, Filipe, tentara se tornar um templário, mas fora recusado. Ora, quem eram os templários para recusar o uso do mantô a um rei? Filipe não os perdoara por isso. E havia aquelas informações de que os templários, além de gozar de um status político independente do poder secular, também haviam criado uma igreja particular, que negava a própria fé que juraram defender e praticava ritos e costumes ofensivos á moral e aos bens costumes do povo de Cristo.
Filipe se julgava um grande defensor da fé. Não tinha ele apoiado a última tentativa dos templários para recuperar os domínios perdidos na Terra Santa? Sim. Havia até apoiado a formação uma aliança militar com os mongóis do sultão Oljeitu para uma cruzada contra os muçulmanos. Mas os templários haviam tornado inútil essa aliança pela perda de suas últimas fortalezas na Palestina. Sem essas bases, tornara-se imprudente uma nova cruzada. Assim, Filipe computava ao Templo também essa decepção. Eles haviam torpedeado um dos seus grandes sonhos, que era seguir os passos seu santo avô, o rei São Luis, comandando uma cruzada.
Carlos de Valois, o cavaleiro, sabia de tudo isso. Por isso não insistiu. Sabia que a Ordem do Templo jamais se reabilitaria e que o velho Grão-Mestre e seus dignatários já tinham seu destino tracado. A figura do altivo ancião, de longas barbas brancas, alto e forte, ainda para os seus quase setenta anos, da última vez que o viu, passou de relance pela sua memória. Sentiu pena, sentiu uma vaga tristeza, como quando se sabe que alguma coisa, ou alguém, de quem se gostava, vai desaparecer. Mas não podia fazer nada, por sacudiu a cabeça, como que para afastar uma lembrança importuna. Por fim, suspirou, deu de ombros e saiu da sala.
Jacques de Molay cochilava quando ouviu os passos dos soldados que se dirigiam para a porta da sua cela. Sabia serem soldados por causa do barulho das armas que retiniam nas estreitas paredes do corredor que levavam até o calabouço onde ele estava acorrentado, e pelo ritmo marcial desses passos, que constratavam com o andar leve do esquelético carcereiro que vinha lhe trazer a magra ração do dia, que consistia, normalmente, de pouco mais que pão e água.
O rangido dos gonzos da velha porta despertou-o de vez. Sentou-se na enxerga que lhe servia de cama –, único móvel existente na cela –, esfregando os olhos, ainda mal acostumados á luz do archote, brilhando nas mãos ossudas do carceireiro. Atrás dele vinha o preboste de Paris, acompanhado por quatro arqueiros, com seus piques na mão, prontos para serem usados. O carcereiro sacou da cintura um martelo e um buril e com a maestria de quem fez aquilo a vida inteira, soltou, em questão de segundos, o resistente rebite das argolas que prendiam os tornozelos do prisioneiro á grossas correntes de ferro, chumbadas na parede da cela. O prisioneiro saudou, com um suspiro de alívio, aquele momento de liberdade. Friccionou as mãos ossudas contra os tornozelos magoados pelas argolas e levantou-se com dolorosa lentidão.
– Vinde conosco, senhor– comandou o preboste, sem nenhuma emoção na voz.
Jacques de Molay olhou para todos os cantos da sua cela. Seria a última vez que a veria? O que haviam decidido fazer com ele? Defintivamente, estava cansado daquilo tudo. Quantas e quantas vezes, naqueles terríveis últimos sete anos, se repetira aquela cena, de um carcereiro rompendo os rebites das correntes, para levá-lo para um interrogatório frente a uma comissão de inquisidores? E depois voltava ele, novamente, para ser atado á outras correntes. Não havia limites para a crueldade humana?
Em algumas dessas oportunidades tivera esperanças. Chegara a crer que o Papa intercederia por ele, que sua folha de serviços seria reconhecida, que sua posição, afinal, significava alguma coisa, e ele, dada a sua proeminência, teria, um dia, os respeitos que se deve conceder a uma tão alta dignidade. Sim. Tinha até sonhado que os templários que haviam escapado poderiam ter organizado um plano de fuga, um complô, ou mesmo uma rebelião, enfim, qualquer coisa que pudesse vir em seu auxílio. Sabia que grande parte dos membros da Ordem estavam á salvo. Muitos Irmãos escaparam e tinham fugido para outros reinos. Na própria França, a maior parte da organização estava sobrevivendo nas sombras. Seu primo, Mestre Jean de Longwy, comandante da liga feudal de Borgonha, e Mestre da compagnonnage, a poderosa confraria dos pedreiros, mantida pelo Templo, não tinha sido incomodada. Não estaria fazendo nada para libertá-lo?
Nada acontecera. Os templários, em todos os reinos cristãos, haviam sidos conduzidos como ovelhas para o matadouro. As poucas rebeliões ensaiadas foram esmagadas com a facilidade com que os arqueiros do rei reprimiam as brigas nas tavernas. Onde estava o poder do Templo? Por que soldados tão preparados, que haviam combatido com tanto fervor nos campos de batalha, haviam se entregado de forma tão covarde? Por que uma organização tão poderosa deixava se destruir sem luta?
Nesses últimos dias de prisão, após a sua retratação frente aos bispos na praça de Notre Dame, Jacques de Molay especulara muito sobre isso. De fato, chegara á conclusão que a Ordem que ele presidia havia perdido a sua razão de existir. Fora fundada e preparada para combater os inimigos da fé cristã. Sua função era preservar e defender os lugares santos. Devia defender a cristandade contra todos aqueles que queriam destrui-la. Mas o que era a Ordem agora? Tinha se transformado num organismo burocrático, que servia as autoridades seculares, fazendo o trabalho que a elas competia. Não eram os templários que intermediavam os negócios de importação e exportação, as operações financeiras, os conchavos políticos, a arrecadação e a fiscalização dos impostos?
Sim. Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão não eram mais uma Ordem de cavalaria, nem mais uma seita monástica. Tinha se transformado em um organismo estatal. Jacques de Molay era um membro da pequena nobreza, iletrado e ignorante como a maioria dos seus pares, mas não era ingênuo. Subira na hierarquia da Ordem graças á sua firmeza de caráter e a sua inabalável devoção aos estatuto jurara cumprir. Chegara ao mais alto posto da organização, um posto desejado por grandes patentes da nobreza e até por reis. Comandara um exército maior do que aquele que qualquer monarca, na Europa, poderia reunir. Tivera, sob seu estandarte, mais de quinze mil cavaleiros. Administrava uma fortuna que superava, de longe, a de qualquer potentado da terra.
No entanto, agora estava ali, naquela masmorra, apodrecendo em vida, esperando, esperando, sem saber se o dia que nascia seria o último de uma vida que fora elevada a tão prodigiosas alturas e agora era atirada nas mais abjetas profundezas. Se alguém sabia o que era, realmente, o céu e o inferno, era ele, Jacques de Molay, que os visitara, em vida mesmo, e não aquele poeta florentino, que segundo ele ouvira nos frívolos serões que fora obrigado a freqüentar nos palácios da nobreza, escrevera um longo poema que descrevia a geografia desses locais onde as almas nobres e perversas passavam a eternidade, selecionadas por suas ações.
O tempo estava frio e brumoso naquela segunda-feira, dia 18 de março de 1314. A névoa subia do Sena e envolvia toda os contornos da Cité. A respiração dos homens que acompanhavam o velho alquebrado e andrajoso, que subia com extrema dificuldade os degraus da torre do Templo, formavam nuvens brancas que saiam de suas bocas em cada expiração que davam, no esforço de vencer a íngreme escadaria que levava ao pátio do grande edifício. A cada instante tinham que parar, para sustentar o prisioneiro, cujas forças pareciam ser insuficientes para fazer aquela jornada.
Jacques de Molay já percorrera aquele caminho centenas de vezes antes. Quantas vezes ele não tinha visitado prisioneiros no calabouço daquele castelo? Afinal, aquele era o seu castelo. Aquele era o edifício do Templo. Ele mesmo supervisionara muitas obras ali. Construira aquelas torres, cujas ameias que se viam, agora, despontando como velhos fantasmas, em meio a neblina. Reformara aquele pátio para onde estava sendo conduzido, tornando-o muito maior, em condição de recepcionar e comportar mais de mil cavaleiros. Ah!, que saudade daqueles tempos!
O aparato policial concentrado no pátio do castelo fez o velho Grão-Mestre pensar que finalmente, alguma coisa diferente estava acontecendo. Nenhuma troupe daquela qualidade havia se reunido antes para acompanhá-lo a uma seção da Inquisição. Ele divisou, entre as centenas de arqueiros, postados como um batalhão preparado para avançar, o capitão dos arqueiros, o nobre Alan Parreiles. Lembrou-se que esse homem estivera presente, naquela fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, quando fora preso, naquele mesmo castelo. “Volto ao lugar onde tudo começou, e com as mesmas pessoas que lá estavam”, pensou Jacques de Molay.
Estava mais velho, aquele messier de Parreiles, observou. Nas têmporas, o cabelo castanho claro do capitão dos arqueiros começava a embranquecer. Sua face estava crispada e seus olhos, frios como o tempo que fazia em Paris.
– Messier Parreiles, para onde estão me levando? – perguntou Jacques de Molay.
– Para Notre Dame, messier. Ali serão lida as vossas sentenças.
– Enfim, a sentença. Será a sentença final, para acabar de vez com este martírio? – perguntou, ofegando, o Grão-Mestre.
– Não sei vos dizer, messier de Molay. Só tenho ordens de levá-lo para lá – respondeu de Parreiles.
Em meio á bruma que escondia os rostos naquelo pátio, onde, por nove anos, presidiu a muitas reuniões dos seus cavaleiros, Jacques de Molay, de repente, viu surgir três rostos macilentos, todos cobertos com barbas desgrenhadas e hirsutas. Logo, três corpos alquebrados, esqueléticos, coberto com os andrajos do que fora, um dia, os mantôs dos templários, surgiram á sua frente. E neles o velho Grão-Mestre reconheceu os seus antigos Irmãos, Geoffroy de Charney, Geoffroy de Gonnneville e Hugo de Pairaud. Ele não os via desde o dia em que ele, juntamente com o preceptor da Normandia, na praça em frente á Catedral de Notre Dame, haviam abjurado suas declarações anteriores e protestado inocência.
Jacques de Molay não havia se esquecido daquele incidente. Desprezara Gonneville e Pairaud por terem se submetido ao veredicto da comissão da Inquisição. Continuava desprezando. Não deixou de sentir um secreto prazer por vê-los ali, junto dele e de Charney, para compartilhar do mesmo destino. Que proveito lhes trouxera a submissão?,pensou ele.
Foi então que deu um abraço emocionado no Irmão Charney. Lágrimas copiosas escorreram dos olhos de ambos, que eles secaram com a manga dos seus puídos mantôs.
– É o fim, Irmão? – perguntou Charney.
– Creio que sim, meu Irmão. Coragem. Afinal, somos templários – disse ele, olhando para os dois companheiros, que continuavam com suas cabeças baixas.
O carcereiro aproximou-se deles e perguntou. – Quereis que vos tire as algemas, senhores?
Foi Molay que respondeu.
– Não temos como pagar-vos, senhor.
Essa era uma lei que vigorava em relação a prisioneiros, cujas sentenças ainda não haviam sido pronunciadas. Como cabia ao estado a sua manutenção, havia uma verba destinada para cobrir esses custos, da qual eram retiradas as despesas com comida, transporte para os interrogatórios e a até o preço das correntes com que eles eram presos em suas celas.
– Tirem-lhe essas algemas – ordenou o capitão dos arqueiros.– Eu pagarei por elas. Tirou algumas moedas de uma bolsa presa em sua cintura e as entregou ao carcereiro. As algemas foram imediatamente abertas.
– Deus vos pague por isso – disse Jacques de Molay ao capitão Parreiles, esfregando os pulsos libertos dos incômodos braceletes
O capitão não respondeu. Apenas se dignou a olhar para os dois andrajosos anciãos.
– Andando, senhores. Somos esperados em Notre Dame. Vamos acabar logo com isso – ordenou.
Fora do imenso pátio do castelo, uma carroça aberta esperava por eles. Foi ordenado aos quatro prisioneiros que subissem nela. Vinte e cinco arqueiros se postaram em ambos os lados da carroça, que se moveu em direção ao enorme portão do castelo do Templo. Jacques de Molay passeou os olhos pelas imensas muralhas que desapareciam na bruma. Pela última vez estava contemplando aquele edifício, que para ele, era um lugar sagrado. Por duzentos anos os templários exerceram seu poder na terra, cumprindo as ordens que emanavam daquele castelo.
Aquilo não podia estar acontecendo. Parecia um pesadelo. Jacques de Molay pensava que, de repente, iria acordar e ver que tudo aquilo não passara de um mau sonho. Mas não. Ao se abrirem as pesadas folhas do imenso portão, um alarido ensurdecedor, formado por milhares de vozes, veio arrancá-lo desse torpor. Não imaginava que houvesse tanta gente do lado de fora do castelo. Como não pudera ouvi-los antes?
A carroça rodou lentamente pelas estreitas vielas do bairro do Templo. As pessoas, aglomeradas nas ruas, se espremiam contra as pedras dos muros. Por onde passa, o cortejo é saudado com impropérios e insultos.
– Hereges malditos!
– Assassinos!
– Sodomitas!
– Á fogueira com esses desgraçados!
Mas não é toda a multidão que se aglomera nas estreitas ruas que conduzem á praça de Notre Dame que atira impropérios e insultos aos desgraçados e imundos prisioneiros. De cabeça baixa, eles vão, em pé sobre a carroça que rola, lentamente, pelo piso de pedra que cobre a rua que desemboca na praça da catedral. A maioria dos rostos, naquela multidão, está muda. Alguns parecem até mostrar alguma tristeza. Talvez até tenham vertido algumas furtivas lágrimas, na passagem do triste cortejo com aqueles velhos e andrajosos cavaleiros a caminho do seus tristes destinos. O que os templários ainda não sabem, toda aquele turba parece saber.
Jacques de Molay e Geoffroy de Charney gostariam de ver tristeza naqueles rostos, e talvez até pensem ter vislumbrado algumas mulheres se persignando quando eles passavam, e algumas lágrimas brilhando nos olhos delas. É sempre um consolo pensar que alguém se incomoda com a nossa desgraça. Faz com que ela pareça ser mais leve.
O cortejo atingiu a ponte de Notre Dame. Do outro lado da ponte, a frente, a praça de Notre Dame. Do outro, á direita, a Ilha dos Judeus. A espessa neblina que sobe do rio não deixa ver ainda o monte de lenha que ali foi reunido e que forma um enorme feixe de cerca de três metros de altura.
Os sinos de Notre Dame, durante toda a manhã, repicavam com ensurdecedora insistência. A carroça atravessou a ponte e parou no meio da praça, onde uma enorme multidão estava concentrada.
Então, de repente, os sinos de Notre Dame pararam de repicar. Um silêncio mortal invadiu a praça. Nem nas janelas das casas em volta do grande quadrilátero, se ouvia um único murmúrio. Toda Paris ficou silente, imóvel, esperando. Como por milagre, toda a bruma que envolvia a praça se dissipou e um sol, um tanto pálido e mirrado, apareceu por trás da imensa torre de Notre Dame. Por todos os lados do majestoso edifício, podiam ser vistos os andaimes dos maçons que ainda trabalhavam para dar acabamento ao grande e magnífico templo, que era o orgulho de Paris. A rosácea central brilhava como uma coroa de luzes, destacando os grandes pórticos dessa magnífica obra da Arte Real , que se erguia sobre a ilha de La Cité, como se fosse o próprio rei dos edifícios.
De pé, sobre a carroça, de costas para a multidão silenciosa, mas de frente para uma pequena multidão formada de prelados, em seus hábitos cardinalícios, nobres cavaleiros em suas quotas de malha, o preboste de Paris, com seu traje de veludo negro e chapéu de plumas, os quatro grandes dignatários do Templo, andrajosos, esqueléticos, alquebrados, pareciam quatro espectros arrancados de seus túmulos.
Monsenhor Arnaud d’ Auch, cardeal de Albano, estava começando a ler a sentença.
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.
Quando Filipe deu a sua sentença final, ordenando que Jacques de Molay, o Grão-Mestre do Templo e Geoffroy de Charney fossem queimados, nenhum dos seus conselheiros disse uma palavra em contrário. Nem Carlos de Valois, que durante todo o processo contra os templários havia se manifestado contra a dissolução da Ordem, por entender que essa ação era um atentado contra a própria cavalaria e poderia prejudicar uma instituição que se tornara uma tradição em toda a Europa e já frequentara o ideário popular, disse uma palavra.
Ele sempre fora contra esse processo. Pois onde o povo buscava os seus heróis, os seus defensores, os seus paladinos? Não era na cavalaria? E a Igreja? Não havia ela coroado de láureas os defensores do Santo Sepulcro, e concedido áqueles cavaleiros o status de verdadeiros santos?
Carlos de Valois era um cavaleiro, antes de tudo. Por ser cavaleiro, respeitava os templários como uma milícia de gente valente e nobre. Não foram poucas as vezes que lutara ao lado de um cavaleiro templário e conhecia o ardor com que eles combatiam.
Mas quando as necessidades políticas falam mais alto, é conveniente que as vozes em contrário se calem, pois senão elas serão silenciadas de qualquer jeito. Carlos de Valois sabia que Filipe precisava suprimir a Ordem do Templo e que era a necessidade política que o empurrava para essa ação. Com isso, ele atingia dois objetivos ao mesmo tempo. Dava um golpe fatal no poder do Papa e colocava uma pedra fundamental no seu projeto de estado nacional, eliminando o poder do seu principal concorrente, que era o próprio Templo.
É claro que havia muitas motivações pessoais nas intenções de Filipe. A primeira era o ódio. Ele tanto odiava quanto temia os templários. Odiava principalmente a arrogância daqueles cavaleiros que não obedeciam a ninguém, e se encastelavam dentro do seu poder, como se fossem, eles mesmos, um estado dentro do estado.
Ele próprio, Filipe, tentara se tornar um templário, mas fora recusado. Ora, quem eram os templários para recusar o uso do mantô a um rei? Filipe não os perdoara por isso. E havia aquelas informações de que os templários, além de gozar de um status político independente do poder secular, também haviam criado uma igreja particular, que negava a própria fé que juraram defender e praticava ritos e costumes ofensivos á moral e aos bens costumes do povo de Cristo.
Filipe se julgava um grande defensor da fé. Não tinha ele apoiado a última tentativa dos templários para recuperar os domínios perdidos na Terra Santa? Sim. Havia até apoiado a formação uma aliança militar com os mongóis do sultão Oljeitu para uma cruzada contra os muçulmanos. Mas os templários haviam tornado inútil essa aliança pela perda de suas últimas fortalezas na Palestina. Sem essas bases, tornara-se imprudente uma nova cruzada. Assim, Filipe computava ao Templo também essa decepção. Eles haviam torpedeado um dos seus grandes sonhos, que era seguir os passos seu santo avô, o rei São Luis, comandando uma cruzada.
Carlos de Valois, o cavaleiro, sabia de tudo isso. Por isso não insistiu. Sabia que a Ordem do Templo jamais se reabilitaria e que o velho Grão-Mestre e seus dignatários já tinham seu destino tracado. A figura do altivo ancião, de longas barbas brancas, alto e forte, ainda para os seus quase setenta anos, da última vez que o viu, passou de relance pela sua memória. Sentiu pena, sentiu uma vaga tristeza, como quando se sabe que alguma coisa, ou alguém, de quem se gostava, vai desaparecer. Mas não podia fazer nada, por sacudiu a cabeça, como que para afastar uma lembrança importuna. Por fim, suspirou, deu de ombros e saiu da sala.
Jacques de Molay cochilava quando ouviu os passos dos soldados que se dirigiam para a porta da sua cela. Sabia serem soldados por causa do barulho das armas que retiniam nas estreitas paredes do corredor que levavam até o calabouço onde ele estava acorrentado, e pelo ritmo marcial desses passos, que constratavam com o andar leve do esquelético carcereiro que vinha lhe trazer a magra ração do dia, que consistia, normalmente, de pouco mais que pão e água.
O rangido dos gonzos da velha porta despertou-o de vez. Sentou-se na enxerga que lhe servia de cama –, único móvel existente na cela –, esfregando os olhos, ainda mal acostumados á luz do archote, brilhando nas mãos ossudas do carceireiro. Atrás dele vinha o preboste de Paris, acompanhado por quatro arqueiros, com seus piques na mão, prontos para serem usados. O carcereiro sacou da cintura um martelo e um buril e com a maestria de quem fez aquilo a vida inteira, soltou, em questão de segundos, o resistente rebite das argolas que prendiam os tornozelos do prisioneiro á grossas correntes de ferro, chumbadas na parede da cela. O prisioneiro saudou, com um suspiro de alívio, aquele momento de liberdade. Friccionou as mãos ossudas contra os tornozelos magoados pelas argolas e levantou-se com dolorosa lentidão.
– Vinde conosco, senhor– comandou o preboste, sem nenhuma emoção na voz.
Jacques de Molay olhou para todos os cantos da sua cela. Seria a última vez que a veria? O que haviam decidido fazer com ele? Defintivamente, estava cansado daquilo tudo. Quantas e quantas vezes, naqueles terríveis últimos sete anos, se repetira aquela cena, de um carcereiro rompendo os rebites das correntes, para levá-lo para um interrogatório frente a uma comissão de inquisidores? E depois voltava ele, novamente, para ser atado á outras correntes. Não havia limites para a crueldade humana?
Em algumas dessas oportunidades tivera esperanças. Chegara a crer que o Papa intercederia por ele, que sua folha de serviços seria reconhecida, que sua posição, afinal, significava alguma coisa, e ele, dada a sua proeminência, teria, um dia, os respeitos que se deve conceder a uma tão alta dignidade. Sim. Tinha até sonhado que os templários que haviam escapado poderiam ter organizado um plano de fuga, um complô, ou mesmo uma rebelião, enfim, qualquer coisa que pudesse vir em seu auxílio. Sabia que grande parte dos membros da Ordem estavam á salvo. Muitos Irmãos escaparam e tinham fugido para outros reinos. Na própria França, a maior parte da organização estava sobrevivendo nas sombras. Seu primo, Mestre Jean de Longwy, comandante da liga feudal de Borgonha, e Mestre da compagnonnage, a poderosa confraria dos pedreiros, mantida pelo Templo, não tinha sido incomodada. Não estaria fazendo nada para libertá-lo?
Nada acontecera. Os templários, em todos os reinos cristãos, haviam sidos conduzidos como ovelhas para o matadouro. As poucas rebeliões ensaiadas foram esmagadas com a facilidade com que os arqueiros do rei reprimiam as brigas nas tavernas. Onde estava o poder do Templo? Por que soldados tão preparados, que haviam combatido com tanto fervor nos campos de batalha, haviam se entregado de forma tão covarde? Por que uma organização tão poderosa deixava se destruir sem luta?
Nesses últimos dias de prisão, após a sua retratação frente aos bispos na praça de Notre Dame, Jacques de Molay especulara muito sobre isso. De fato, chegara á conclusão que a Ordem que ele presidia havia perdido a sua razão de existir. Fora fundada e preparada para combater os inimigos da fé cristã. Sua função era preservar e defender os lugares santos. Devia defender a cristandade contra todos aqueles que queriam destrui-la. Mas o que era a Ordem agora? Tinha se transformado num organismo burocrático, que servia as autoridades seculares, fazendo o trabalho que a elas competia. Não eram os templários que intermediavam os negócios de importação e exportação, as operações financeiras, os conchavos políticos, a arrecadação e a fiscalização dos impostos?
Sim. Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão não eram mais uma Ordem de cavalaria, nem mais uma seita monástica. Tinha se transformado em um organismo estatal. Jacques de Molay era um membro da pequena nobreza, iletrado e ignorante como a maioria dos seus pares, mas não era ingênuo. Subira na hierarquia da Ordem graças á sua firmeza de caráter e a sua inabalável devoção aos estatuto jurara cumprir. Chegara ao mais alto posto da organização, um posto desejado por grandes patentes da nobreza e até por reis. Comandara um exército maior do que aquele que qualquer monarca, na Europa, poderia reunir. Tivera, sob seu estandarte, mais de quinze mil cavaleiros. Administrava uma fortuna que superava, de longe, a de qualquer potentado da terra.
No entanto, agora estava ali, naquela masmorra, apodrecendo em vida, esperando, esperando, sem saber se o dia que nascia seria o último de uma vida que fora elevada a tão prodigiosas alturas e agora era atirada nas mais abjetas profundezas. Se alguém sabia o que era, realmente, o céu e o inferno, era ele, Jacques de Molay, que os visitara, em vida mesmo, e não aquele poeta florentino, que segundo ele ouvira nos frívolos serões que fora obrigado a freqüentar nos palácios da nobreza, escrevera um longo poema que descrevia a geografia desses locais onde as almas nobres e perversas passavam a eternidade, selecionadas por suas ações.
O tempo estava frio e brumoso naquela segunda-feira, dia 18 de março de 1314. A névoa subia do Sena e envolvia toda os contornos da Cité. A respiração dos homens que acompanhavam o velho alquebrado e andrajoso, que subia com extrema dificuldade os degraus da torre do Templo, formavam nuvens brancas que saiam de suas bocas em cada expiração que davam, no esforço de vencer a íngreme escadaria que levava ao pátio do grande edifício. A cada instante tinham que parar, para sustentar o prisioneiro, cujas forças pareciam ser insuficientes para fazer aquela jornada.
Jacques de Molay já percorrera aquele caminho centenas de vezes antes. Quantas vezes ele não tinha visitado prisioneiros no calabouço daquele castelo? Afinal, aquele era o seu castelo. Aquele era o edifício do Templo. Ele mesmo supervisionara muitas obras ali. Construira aquelas torres, cujas ameias que se viam, agora, despontando como velhos fantasmas, em meio a neblina. Reformara aquele pátio para onde estava sendo conduzido, tornando-o muito maior, em condição de recepcionar e comportar mais de mil cavaleiros. Ah!, que saudade daqueles tempos!
O aparato policial concentrado no pátio do castelo fez o velho Grão-Mestre pensar que finalmente, alguma coisa diferente estava acontecendo. Nenhuma troupe daquela qualidade havia se reunido antes para acompanhá-lo a uma seção da Inquisição. Ele divisou, entre as centenas de arqueiros, postados como um batalhão preparado para avançar, o capitão dos arqueiros, o nobre Alan Parreiles. Lembrou-se que esse homem estivera presente, naquela fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, quando fora preso, naquele mesmo castelo. “Volto ao lugar onde tudo começou, e com as mesmas pessoas que lá estavam”, pensou Jacques de Molay.
Estava mais velho, aquele messier de Parreiles, observou. Nas têmporas, o cabelo castanho claro do capitão dos arqueiros começava a embranquecer. Sua face estava crispada e seus olhos, frios como o tempo que fazia em Paris.
– Messier Parreiles, para onde estão me levando? – perguntou Jacques de Molay.
– Para Notre Dame, messier. Ali serão lida as vossas sentenças.
– Enfim, a sentença. Será a sentença final, para acabar de vez com este martírio? – perguntou, ofegando, o Grão-Mestre.
– Não sei vos dizer, messier de Molay. Só tenho ordens de levá-lo para lá – respondeu de Parreiles.
Em meio á bruma que escondia os rostos naquelo pátio, onde, por nove anos, presidiu a muitas reuniões dos seus cavaleiros, Jacques de Molay, de repente, viu surgir três rostos macilentos, todos cobertos com barbas desgrenhadas e hirsutas. Logo, três corpos alquebrados, esqueléticos, coberto com os andrajos do que fora, um dia, os mantôs dos templários, surgiram á sua frente. E neles o velho Grão-Mestre reconheceu os seus antigos Irmãos, Geoffroy de Charney, Geoffroy de Gonnneville e Hugo de Pairaud. Ele não os via desde o dia em que ele, juntamente com o preceptor da Normandia, na praça em frente á Catedral de Notre Dame, haviam abjurado suas declarações anteriores e protestado inocência.
Jacques de Molay não havia se esquecido daquele incidente. Desprezara Gonneville e Pairaud por terem se submetido ao veredicto da comissão da Inquisição. Continuava desprezando. Não deixou de sentir um secreto prazer por vê-los ali, junto dele e de Charney, para compartilhar do mesmo destino. Que proveito lhes trouxera a submissão?,pensou ele.
Foi então que deu um abraço emocionado no Irmão Charney. Lágrimas copiosas escorreram dos olhos de ambos, que eles secaram com a manga dos seus puídos mantôs.
– É o fim, Irmão? – perguntou Charney.
– Creio que sim, meu Irmão. Coragem. Afinal, somos templários – disse ele, olhando para os dois companheiros, que continuavam com suas cabeças baixas.
O carcereiro aproximou-se deles e perguntou. – Quereis que vos tire as algemas, senhores?
Foi Molay que respondeu.
– Não temos como pagar-vos, senhor.
Essa era uma lei que vigorava em relação a prisioneiros, cujas sentenças ainda não haviam sido pronunciadas. Como cabia ao estado a sua manutenção, havia uma verba destinada para cobrir esses custos, da qual eram retiradas as despesas com comida, transporte para os interrogatórios e a até o preço das correntes com que eles eram presos em suas celas.
– Tirem-lhe essas algemas – ordenou o capitão dos arqueiros.– Eu pagarei por elas. Tirou algumas moedas de uma bolsa presa em sua cintura e as entregou ao carcereiro. As algemas foram imediatamente abertas.
– Deus vos pague por isso – disse Jacques de Molay ao capitão Parreiles, esfregando os pulsos libertos dos incômodos braceletes
O capitão não respondeu. Apenas se dignou a olhar para os dois andrajosos anciãos.
– Andando, senhores. Somos esperados em Notre Dame. Vamos acabar logo com isso – ordenou.
Fora do imenso pátio do castelo, uma carroça aberta esperava por eles. Foi ordenado aos quatro prisioneiros que subissem nela. Vinte e cinco arqueiros se postaram em ambos os lados da carroça, que se moveu em direção ao enorme portão do castelo do Templo. Jacques de Molay passeou os olhos pelas imensas muralhas que desapareciam na bruma. Pela última vez estava contemplando aquele edifício, que para ele, era um lugar sagrado. Por duzentos anos os templários exerceram seu poder na terra, cumprindo as ordens que emanavam daquele castelo.
Aquilo não podia estar acontecendo. Parecia um pesadelo. Jacques de Molay pensava que, de repente, iria acordar e ver que tudo aquilo não passara de um mau sonho. Mas não. Ao se abrirem as pesadas folhas do imenso portão, um alarido ensurdecedor, formado por milhares de vozes, veio arrancá-lo desse torpor. Não imaginava que houvesse tanta gente do lado de fora do castelo. Como não pudera ouvi-los antes?
A carroça rodou lentamente pelas estreitas vielas do bairro do Templo. As pessoas, aglomeradas nas ruas, se espremiam contra as pedras dos muros. Por onde passa, o cortejo é saudado com impropérios e insultos.
– Hereges malditos!
– Assassinos!
– Sodomitas!
– Á fogueira com esses desgraçados!
Mas não é toda a multidão que se aglomera nas estreitas ruas que conduzem á praça de Notre Dame que atira impropérios e insultos aos desgraçados e imundos prisioneiros. De cabeça baixa, eles vão, em pé sobre a carroça que rola, lentamente, pelo piso de pedra que cobre a rua que desemboca na praça da catedral. A maioria dos rostos, naquela multidão, está muda. Alguns parecem até mostrar alguma tristeza. Talvez até tenham vertido algumas furtivas lágrimas, na passagem do triste cortejo com aqueles velhos e andrajosos cavaleiros a caminho do seus tristes destinos. O que os templários ainda não sabem, toda aquele turba parece saber.
Jacques de Molay e Geoffroy de Charney gostariam de ver tristeza naqueles rostos, e talvez até pensem ter vislumbrado algumas mulheres se persignando quando eles passavam, e algumas lágrimas brilhando nos olhos delas. É sempre um consolo pensar que alguém se incomoda com a nossa desgraça. Faz com que ela pareça ser mais leve.
O cortejo atingiu a ponte de Notre Dame. Do outro lado da ponte, a frente, a praça de Notre Dame. Do outro, á direita, a Ilha dos Judeus. A espessa neblina que sobe do rio não deixa ver ainda o monte de lenha que ali foi reunido e que forma um enorme feixe de cerca de três metros de altura.
Os sinos de Notre Dame, durante toda a manhã, repicavam com ensurdecedora insistência. A carroça atravessou a ponte e parou no meio da praça, onde uma enorme multidão estava concentrada.
Então, de repente, os sinos de Notre Dame pararam de repicar. Um silêncio mortal invadiu a praça. Nem nas janelas das casas em volta do grande quadrilátero, se ouvia um único murmúrio. Toda Paris ficou silente, imóvel, esperando. Como por milagre, toda a bruma que envolvia a praça se dissipou e um sol, um tanto pálido e mirrado, apareceu por trás da imensa torre de Notre Dame. Por todos os lados do majestoso edifício, podiam ser vistos os andaimes dos maçons que ainda trabalhavam para dar acabamento ao grande e magnífico templo, que era o orgulho de Paris. A rosácea central brilhava como uma coroa de luzes, destacando os grandes pórticos dessa magnífica obra da Arte Real , que se erguia sobre a ilha de La Cité, como se fosse o próprio rei dos edifícios.
De pé, sobre a carroça, de costas para a multidão silenciosa, mas de frente para uma pequena multidão formada de prelados, em seus hábitos cardinalícios, nobres cavaleiros em suas quotas de malha, o preboste de Paris, com seu traje de veludo negro e chapéu de plumas, os quatro grandes dignatários do Templo, andrajosos, esqueléticos, alquebrados, pareciam quatro espectros arrancados de seus túmulos.
Monsenhor Arnaud d’ Auch, cardeal de Albano, estava começando a ler a sentença.
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.